domingo, abril 18

RELATÓRIO DE ACTIVIDADE DOS HOSPITAIS SA DE 2003

O RELATÓRIO DE ACTIVIDADE DOS HOSPITAIS SA DE 2003, tem sido objecto das mais variadas críticas: Falta de transparência e rigor, omissão de dados de informação essenciais, preocupação de maquilhar os dados.
Inserimos a seguir alguns dos artigos e análises de maior interesse sobre o assunto.
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MANUEL PEDRO GAGANHA.
FRANCISCO RAMOS
JOÃO CÂNDIDO SILVA
ANTÓNIO CORREIA DE CAMPOS (Entrevista).

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De MANUEL PEDRO BAGANHA, publicado no Diário Económico de 14.04.04

Foi apresentado no dia 31 de Março o Relatório de Actividade do Ano 2003 do conjunto dos 31 hospitais empresas. Da sua leitura resultam algumas críticas e dúvidas.

O relatório afirma que se verificou um “aumento significativo da actividade hospitalar” (8,7% em termos de doentes padrão), que foi acompanhado de um crescimento reduzido dos custos totais (2,4% numa base comparável). Em consequência do aumento da actividade ter sido superior ao aumento dos custos totais, o custo unitário reduziu-se em 5,8%. Mesmo sem levantar dúvidas quanto à veracidade dos números, não são de aceitar algumas das inferências constantes do relatório.

No quadro apresentam-se as principais componentes de custo (em milhões de euros) e o nível de actividade medido em doentes-padrão.

Da análise do quadro podemos concluir que os custos com pessoal representam cerca de 54% dos custos totais e que é o seu reduzido crescimento que explica o aumento, de apenas 2,4%, nos custos totais. Como a grande maioria dos trabalhadores dos hospitais SA estão integrados na administração pública, não foi o recurso à gestão empresarial que permitiu um maior controle dos custos mas o congelamento dos vencimentos na administração pública.

Das diversas componentes de custos, apenas duas – materiais consumidos e aquisição de serviços – variam com o nível de actividade. Os custos com o pessoal e com amortizações teriam sido os mesmos caso os hospitais tivessem tido uma actividade muito menor. O mesmo acontece com os outros custos (provisões e custos extraordinários).

É assim, no mínimo, estranha a afirmação do relatório (página 8) que aquela redução de 5,8% no custo unitário “teria permitido, caso a actividade hospitalar se mantivesse constante, a redução dos custos para 1836 milhões de euros, concretizando uma poupança de 113 milhões de euros”. Como é obtido este valor? Calculando 5,8% de 1949 milhões de euros.

Na realidade os custos variáveis unitários tiveram um ligeiro aumento (1064 euros por doente padrão em 2003 contra 1059 euros em 2002), enquanto os custos fixos unitários tiveram um decréscimo acentuado (1627 euros por doente padrão em 2003 contra 1797 euros em 2002).

O relatório é omisso quanto a eventuais lucros ou prejuízos. Contudo, menciona que o volume de negócios do conjunto dos hospitais SA foi de 1849 milhões de euros em 2003. Podemos concluir que o conjunto dos hospitais SA tiveram um prejuízo de 147 milhões de euros (1849-1996)?
Afirma-se ainda no relatório que os capitais próprios ascendem a 1220 milhões de euros e que o valor dos activos é de 1916 milhões de euros. Daqui decorre que o passivo ascende a 696 milhões de euros. Como a generalidade destes passivos se devem referir a materiais e serviços adquiridos, podemos concluir que os prazos de pagamento nos hospitais SA excedem 10 meses (696/790 x 12 meses)?
É pena que lacunas, omissões e erros como os descritos apareçam neste relatório. Apenas contribuem para a descredibilização do processo de empresarialização da gestão hospitalar.
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Manuel Pedro Baganha é Professor da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa.
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FRANCISCO RAMOS
AS CONTAS DOS HOSPITAIS SA
Publicado no Semanário Expresso de 09 de Abril.

O processo de transformação dos hospitais do Serviço Nacional de Saúde em sociedades anónimas de capitais públicos tem sido objecto de forte polémica. A Empresarialização da gestão hospitalar é reclamada e legislada desde 1977, mas a inércia, corporativismo e incapacidade de afirmação do interesse público são factores que, ao longo dos últimos 25 anos, têm impedido a sua concretização.
Em 1995 aconteceu a primeira grande ruptura: a concessão de gestão do hospital público Amadora-Sintra a uma entidade privada. A lógica de gestão empresarial de um hospital público foi então, finalmente, posta no terreno. Em 1998, o hospital de Santa Maria da Feira foi criado com o estatuto de "experiência inovadora de gestão" Ainda instituto público, por ausência de legislação reguladora das EPE (Entidades Públicas Empresariais), que viria a ser publicada no ano seguinte de 1999, o Hospital da Feira foi o segundo golpe fatal no imobilismo da gestão hospitalar portuguesa. Este cirúrgico processo de mudança foi prosseguido em Matosinhos e em Portimão (Hospital do Barlavento Algarvio).
Em 1998, iniciou-se também o estudo e preparação das Parcerias Público-Privado (PPP) para a construção de novos hospitais do SNS, mas desta inovação ainda nada há a contar: apenas decorre o prazo para apresentação de propostas para o desejado Hospital de Loures.
No início de 2003, o actual governo abandonou a anterior estratégia gradualista e decretou a transformação de 34 hospitais em 31 sociedades anónimas de capitais exclusivamente públicos. O balanço do primeiro ano foi apresentado esta semana. A pública prestação de contas da coisa pública deveria ser uma rotina, mas sabemos que em Portugal ainda deve merecer público elogio. Saúdem-se pois os responsáveis políticos de Ministério da Saúde pela iniciativa.
Os cabeçalhos das notícias, extraídos certamente da síntese dos resultados de 2003, dão acolhimento a resultados muitíssimo positivos: fortes acréscimos de produção, ligeiro aumento da despesa, poupança de muitos milhões, acentuado crescimento da produtividade por colaborador! Está pois de regresso a teoria do oásis, desta vez aplicada aos hospitais AS numa economia em forte recessão.
Uma primeira análise, um pouco mais fina, vem colocar em causa estas conclusões.
Os números da produção são incompatíveis. A redução do número de camas, a estabilização da taxa de ocupação média e a ligeira redução da demora média conduzem a um aumento de doentes tratados em internamento de 0,6%. Será que a diferença para os anunciados 4,2% se deve às conhecidas deficiências do ensino da matemática ?
A evolução da despesa operacional foi de 5,6% (ou de 4,2% na lógica, aceitável, de base comparável). Números que nunca aparecem nas sínteses divulgadas, que optam por englobar os custos extraordinários. A credibilidade e transparência da informação não serão valores essenciais na prestação pública de contas ?
Tudo visto e ponderado, o conjunto dos hospitais AS terá obtido uma anunciada poupança de 113 milhões de euros ! Os hospitais são, por natureza, entidades com múltiplos produtos finais. Desde há muito se utilizam indicadores agregados que possibilitem uma visão de conjunto. Neste caso, a actividade agregada teve um acréscimo de 8,7% (já se duvidou dois parágrafos acima), o que originou um aumento de custos variáveis de 160 milhões de euros. Ficamos assim a saber que nestes hospitais a estrutura de custos variáveis representa 92,1% dos custos totais. Enorme novidade para todos os analistas, gestores e interessados da gestão hospitalar, convencidos que estavam pela profusa informação internacional, que a organização hospitalar tem um elevado peso de custos fixos. Esta nova estrutura de custos, no entanto, justificou a anunciada e virtual poupança a verificar-se no caso de não aumento de actividade.
Estes três exemplos da análise do relatório de actividade do ano de 2003 dos hospitais AS mostram uma tão evidente falta de rigor, que mancham definitivamente as possíveis conclusões a retirar deste processo de mudança. Recuso-me a acreditar nas teses conspiratórias de que todo o processo se insere numa lógica de privatização do serviço público. Isto seria crer na desonestidade dos actuais responsáveis políticos. Nada me permite essa conclusão. Mas, os factos mostram que. além da inércia e do corporativismo, também a incompetência é uma fortíssima inimiga do interesse público.

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De João Cândido Silva, publicado no Diário Económico de 17.04.04.

Imagine-se uma empresa cotada em bolsa que, no acto anual de apresentação de contas, decide omitir elementos essenciais para se poder ajuizar sobre a evolução da sua exploração.

Por razões não esclarecidas, os seus responsáveis surgem perante os accionistas exibindo apenas as folhas de custos. E, apesar de solicitados a prestarem informação adicional que permita uma avaliação global das actividades, recusam-se a fazê-lo.

Qualquer investidor ficará desconcertado face à mera hipótese de uma situação destas vir a suceder. O caso não será para menos. Mesmo que os respectivos gestores se desdobrem em esforços para sublinhar as virtudes do seu desempenho, assinalando o facto de os encargos necessários à sustentação das operações terem registado, eventualmente, um arrefecimento no seu ritmo de crescimento.

É de elementar bom senso que, se o controlo dos custos é um dado fundamental para a boa saúde financeira de uma empresa, de nada vale estar na posse de uma informação que confirme esse facto se não for possível analisá-la em conjunto com outras rubricas das demonstrações de resultados. No mercado de capitais, varrido nos tempos mais recentes por fraudes contabilísticas de criatividade variável, uma situação deste género não passa, ainda, de uma absurda ficção. Mas o mesmo não se pode dizer em relação às contas dos hospitais SA.

Dando seguimento à tradicional opacidade nas relações entre o Estado e os contribuintes, o Governo apresentou há dias os números relativos à actividade daquelas unidades do sistema de saúde. Mas quem quer que esperasse, certamente por ingenuidade, ficar a saber se, para já, a aposta do Executivo na empresarialização de 31 estabelecimentos está a produzir fruto positivos terá ficado perplexo.

Os números divulgados, e até agora os únicos conhecidos em relação ao exercício de 2003, referem-se apenas aos encargos, que atingiram 1900 milhões de euros. E os ministros da Saúde e das Finanças regozijaram-se com a moderação conseguida no percurso daquele indicador.

Mas desconhece-se, ainda, se o défice dos hospitais SA terá aumentado, ou não, o que impede que se tire uma conclusão essencial que é a de saber se o objectivo do Governo, que pretendia mais eficiência através da empresarialização, foi alcançado. Ou se, pelo contrário, o sorvedouro de dinheiros públicos se manteve na Saúde.

O Governo quis convencer a opinião pública de que a cura está a ser eficaz. Mas revelou sofrer de falta de transparência, uma doença crónica que parece atacar quem quer que se atreva a assumir cargos políticos.

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ANTÓNIO CORREIA DE CAMPOS
Entrevista de Mário Baptista e Bruno Proença - Diário Económico 19.04.04.

O ex-ministro de um governo socialista discorda da forma como a empresarialização dos hospitais foi concretizada.

O antigo ministro da saúde, António Correia de Campos, explica como as contas dos hospitais SA foram«maquilhadas» e como isso descredibiliza o projecto.

Os resultados apresentados pelo Governo sobre o desempenho dos Hospitais SA são credíveis?
Têm um sentido geral de alguma credibilidade, mas os números estão maquilhados de uma forma absolutamente desnecessária. Os custos operacionais aumentaram realmente 5,6%, um resultado inferior ao do ano anterior, quando atingiu os 7%. Os dados de 2003 são plausíveis porque houve contenção nos gastos com pessoal com o congelamento dos salários acima dos mil euros e é provável que o discurso da tanga tenha acentuado a redução dos gastos supérfluos ou adicionais.

No entanto, a manipulação de números é visível quando se transforma os 5,6% em 3,9% com 36 milhões de euros contabilizados como custos e perdas extraordinárias, que são valores dos anos anteriores. Se estamos a comparar um ano com o outro, isso não é sério.

Esses são os custos do próprio processo da empresarialização?
Não, esses são outros. Além de transformar os 5,6% em 3,9%, desconta alguns custos com a empresarialização, como os descontos para a Caixa Geral de Aposentações, seguros de acidentes de trabalho e o preço dos revisores oficiais de contas. Porém, estes custos são endógenos à solução, portanto não há razões para que sejam deduzidos. Sobre os medicamentos, o próprio relatório diz que o modelo de financiamento foi alterado. O Governo veio depois dizer que isto não era mais do que o que tem sido feito nos anos anteriores, mas isso não é verdade. Antes, os medicamentos prescritos nas consultas externas e urgências e depois levantados nas farmácias eram facturados no fim do ano aos hospitais pelas ARS, de acordo com o princípio do prescritor-pagador. Agora, o Governo cessou esse princípio, o que é um enorme precedente. Se é assim, daqui para a frente, os hospitais podem descarregar encargos com medicamentos nas ARS. Esta alteração valeu 48 milhões de euros em 2003.

E os problemas com as contas ficam por aqui?
O relatório faz uma comparação entre 2003 e o ano anterior. Mas porquê apenas 2002? Devia haver uma série maior porque permitia ver a tendência consistente de aumento da produção dos hospitais.

Por outro lado, há mudança de critérios. O Governo criou as altas de internamento, que é uma figura nova que não existe nas regras para a uniformização das normas hospitalares. O que devia existir é os doentes tratados, que aumentaram pouco mais de 1% em 2003.

Há uma falta de transparência muito grande. O Governo não teve qualquer relutância em utilizar sempre os elementos mais favoráveis, mesmo quando eles eram artificiais.

O novo modelo de gestão não introduziu uma melhoria nos hospitais?
Introduziu. Um aumento de cerca de 6% nos gastos é um bom resultado. Não é preciso mais. Eu sou partidário da empresarialização, não sou é partidário da maquilhagem dos dados para ampliar resultados que não precisam de o ser.

O que pensa da estrutura criada para concretizar os hospitais SA?
Sou totalmente contra este método desresponsabilizante porque estabeleceu uma estrutura central de comando e controlo muito mais forte do que alguma vez existiu no Ministério da Saúde e que, aliás, é uma total violação da legislação de 1993 e da Lei de Bases do Serviço Nacional de Saúde de 1989. Segundo esta legislação, quem controla são as ARS e não esta unidade de missão central, que é temporária. O problema que se coloca é saber se quando cessar a acção desta unidade, as pessoas podem suportar o ‘desmame’.

Na sua opinião, a maquilhagem é feita pela unidade de missão?
Sim, os hospitais estão inocentes no meio disso tudo, embora haja alguns que dizem coisas tontas.

Portanto, a unidade de missão anula a necessidade haver ARS para os hospitais SA?
Completamente.

As receitas não foram apresentadas porquê?
Porque há uma diferença muito grande entre aquilo que está definido no OE para 2003 para os hospitais SA, que são 1200 milhões, e o somatório dos gastos, que são mais de 1990 milhões. O Governo não sabe como explicar esses 700 milhões, nem onde vai buscar dinheiro para os pagar.

E quais são as soluções possíveis?
Como sempre se fez: varrer para debaixo do tapete, isto é, passar do défice orçamental para a dívida pública ou podem fazer-se aumentos do capital social dos hospitais SA. Resta saber se a União Europeia (UE) aceita isto.

Porém, quando aceita receitas extraordinárias para que o défice baixe artificialmente de mais de 5% para 2,8%, a UE está a ser enganada, mas tem vantagens nisso. Interessou-lhe ter um efeito de demonstração de um pequeno país supostamente cumpridor, que vendeu créditos de uma forma ainda pouco transparente. Tanto o que engana como o enganado estão interessados no engano. O que se passa nos Hospitais SA é a transposição dessa lógica de falta de ética e rigor empresarial que tem dado péssimos resultados. A convicção é que todos os accionistas são tolos, ou incultos ou ignorantes ou que gostam de ser enganados. Só que os accionistas dos SA somos todos nós e alguns de nós não gostam de ser enganados.

A única maneira de conter o desperdício é alicerçar a gestão num modelo empresarial?
O modelo empresarial é um sub-produto do conceito fundamental, que é a competição dentro do sector público. Não é colar-lhes a ganga do mecanismo empresarial, porque este tem coisas boas mas também tem aspectos maus. Ainda assim, o mercado tem automatismos que são mais eficientes que os mecanismos normativos dos sistemas hierárquicos.

<strong>Pensa que os hospitais SA vieram para ficar ou o processo é reversível?
A única garantia de que tenho de que o processo continua é manter-se esta equipa ministerial. Se mudar, isto está condenado. Os ataques de fora e de dentro vão ser tão fortes, que isto estará condenado ao fracasso porque o processo não foi assimilado, nem aculturado.

Preferiu-se a ruptura com o actual modelo. Veja-se as pessoas que foram escolhidas para as administrações. Não há entrosamento com o tecido existente. Colocou-se na prateleira a administração hospitalar que lá estava e escolheram-se gestores por critério político. Mesmo que 30% tivessem experiência de gestão, não foi por isso que foram escolhidos.

A reforma dos Hospitais SA está completamente dependente deste ministro da Saúde?
Estou totalmente convencido disso, infelizmente. Se o Governo quiser manter a reforma dos SA, tem de manter esta equipa. No meu raciocínio é claro que com uma nova equipa isto vai por água abaixo. Não digo que acabem os hospitais SA, mas os aspectos que prejudicam as corporações vão ser amaciados. As corporações vão ser convidadas para participar no processo.

O ministro deve continuar até ao final do mandato ?
Respondo assim: se este ministro não continuar, esta experiência dos hospitais SA vai ao ar. A experiência ainda não está destruída, mas com este relatório (da Unidade de Missão, os responsáveis do Ministério), deram um passo larguíssimo para destruir a credibilidade da experiência. Foi um passo tenebroso e eu não percebo como é que gente inteligente dá este passo. É a introdução do pior espiríto de mercado ao nível central.

Qual o melhor e o pior destes dois anos de mandato ?
O que correu esperadamente melhor foi a aplicação dos genéricos e os preços de referência, embora hajam sinais de que os efeitos irão desaparecer. Não há números deste trimestre, mas, no final do ano passado, já havia indicadores de que os gastos tinham retomado o crescimento. Eu preferia um acordo com a indústria para que baixassem os custos todos os anos, fazendo devolver ao Ministério o dinheiro para além do "plafond" que tínhamos fixado. Isto estava a funcionar, permitindo recuperar 30 milhões de euros em 2001.

E quanto ao que está a correr pior ?
O que está a correr pior é a partidarização da Saúde e o desinteresse pelos Cuidados Primários. A equipa ainda não percebeu o que isso é e pensa que a promoção da saúde é combater o bioterrorismo.

A Entidade Reguladora da Saúde, tal como existe, está apetrechada para responder aos desafios que a transferência de funções do estado para o sector privado acarreta, nomeadamente, a selecção adversa ?
A selecção adversa está no princípio e vai avançar como a nódoa do azeite em papel mata-borrão. O sistema está montado com incentivos à produção artificial. Se não se equaciona o financiamento por acto em função da intensidade de cuidados, a selecção adversa vai avançar.

Mas a configuração da ERS pode resolver o problema ?
Teoricamente sim, mas vamos ver. É uma incógnita. Seja como for, é uma entidade indispensável numa conjuntura de mudança de paradigma do hierárquico para o empresarial. Embora isso não esteja a acontecer. O que está a ser feito é a manutenção do paradigma hierárquico com uns pozinhos empresariais.

Porquê ?
O sistema está a ser deturpado na sua pureza porue, para se jogar o jogo empresarial a sério, já tinha havido integração vertical nos cuidados primários e continuados. Ainda para mais, as instituições vieram de cima. ~E um planeamento digno da União Soviética dos anos 60. É o antagonismo completo do mercado, porque há uma linha de comando e controlo completamente autoritária só para mostrar que esta é uma experiência fantástica. E é precisamente isso que vai deitar por terra esta experiência.

Concorda com a integração dos centros de saúde na gestão dos hospitais ?
Deviam fazer-se algumas experiências. Se adoptamos uma filosofia de empresarializar hospitais, temos de ir até às últimas consequências. E essas consequências arrastam problemas. Mas a integração vertical ascendente, ou seja, os hospitais articularem-se com centros de saúde, e o financiamento por capitação são aspectos positivos. Tem igualmente de haver uma integração descendente, isto é, os hospitais terem, a jusante da sua exploração, unidades de cuidados continuados. Prefiro que tenham unidades de cuidados continuados sob a sua responsabilidade técnica, com mecanismos de incentivos para haver transferência de doentes, mas sem se desvincular da responsabilidade do tratamento.

E quanto aos cuidados primários, o que é que o Ministério da Saúde ainda não fez para este sector ?
Primeiro, prioridade à avaliação da experiência de Matosinhos. Se for considerada positiva, é possível repetir noutros sítios. Há outras alternativas, como por exemplo, a separação total entre o prestador e o pagador. As Administrações Regionais de Saúde seriam os compradores, ou seja, os pagadores de serviços aos hospitais e aos Centros de Saúde.

Perfil
O pai da empresarialização dos hospitais
António Correia de Campos foi o último ministro da Saúde dos governos de António Guterres e é actualmente professor na Escola Nacional de Saúde Pública. A empresarialização dos hospitais públicos foi lançada por este antigo governante, que defendia porém um processo de implementação menos abrupto.