Acesso, literacia, meio caminho andado
Tratar o igual como igual e o
desigual como desigual
Quem está doente e entra num centro de saúde ou num hospital recebe o
diagnóstico do que padece e um acolhimento que continua a tratar todos da mesma
maneira. A igualdade que deveria facilitar o acesso acaba por travá-lo, já que
quem é menos favorecido, porque tem menos meios ou conhecimentos, perde-se mais
vezes no caminho que terá de percorrer para poder tratar-se dentro do Serviço
Nacional de Saúde (SNS).
À semelhança do que acontece noutras dimensões da vida, nem tudo o que
parece ser acaba por ser. “Em abstracto, poder-se-ia considerar que um sistema
de saúde que garantisse ‘oferta de serviços’ estaria a cumprir a sua missão em
termos de acesso. Sabemos, contudo, que a simples ‘disponibilidade’ de serviços
não esgota todas as vertentes do acesso”, explica Marta Temido, presidente da
Administração Central do Sistema de Saúde.
Por mais questões que possam ser colocadas sobre o funcionamento do
SNS, “não” é uma resposta que se repete. A responsável exemplifica: “É
assegurado que quem vive em territórios de baixa densidade dispõe dos mesmos
serviços de quem vive no litoral? A população está protegida do risco
financeiro de adoecer ou sujeita a pagamentos diretos elevados no momento do
consumo? São oferecidos horários de atendimentos alargados e espaços de espera
adequados? Discrimina-se positivamente os mais frágeis?”
Os estudiosos do sector sabem que viver longe dos centros urbanos, ter
rendimentos reduzidos ou pouca instrução ou literacia em Saúde, por exemplo,
são barreiras para quem acede aos cuidados. Para livrar o caminho de obstáculos
é preciso “redefinir o funcionamento das organizações em razão dos interesses
dos doentes e não apenas da conveniência dos prestadores”, afirma Marta Temido.
Ao contrário do slogan, não somos todos iguais: “É preciso tratar o igual como
igual e o desigual como desigual.”
Quem está doente quer ser tratado como e quando precisa e não como é a
regra no sistema. A informação trouxe conhecimento e exigência. “Para as
pessoas, a qualidade do seu percurso nos cuidados de saúde em buscas das
respostas de que necessitam e dos resultados que desejam é algo que importa,
que é tangível”, salienta Constantino Sakellarides, professor catedrático
jubilado de políticas de saúde e coordenador da equipa estudos para avaliar a
reforma dos cuidados primários.
Mais do que saber como funciona o serviço, o cidadão quer “que haja um
caminho próprio que o leve no tempo certo, ao lugar certo, às pessoas certas”,
afirma o professor. “A consciência da necessidade desta transformação — das
organizações para as pessoas — é hoje a principal força transformadora dos
sistemas de saúde europeus.”
E no dia a dia a transformação terá de notar-se no primeiro nível de
acesso. Nos cuidados primários implicará mudar muita coisa. “A nível nacional e
regional, dar a todos os portugueses a oportunidade de terem uma equipa de
saúde familiar ou dotar todos os centros de saúde com centrais telefónicas, páginas
web interativas e quiosques eletrónicos inteligentes, utilizando a tecnologia
de proximidade para garantir uma acessibilidade fácil”, diz o presidente da
Associação das Unidades de Saúde Familiar, João Rodrigues.
Até em aspetos mais ‘terrenos’ é necessário fazer muito melhor. O
médico dá alguns exemplos: “Qualificar a acessibilidade física, colocando
preferencialmente todos os serviços no mesmo piso ou com elevadores ou rampas
para substituir as escadas; estruturar horários de atendimento em
função da vida profissional dos cidadãos e dos transportes públicos.” E no
Interior, “com muita dispersão geográfica, criar-se o conceito de ‘consultório
móvel’ totalmente equipado para ir ao encontro da população”.
Mais uma vez, como em noutras dimensões da vida, há um preço a pagar.
“Intui-se facilmente que esta nova centralidade (o “percurso é meu”) torna mais
evidente a necessidade de investir na capacidade de as pessoas tomarem decisões
mais inteligentes sobre a saúde e sobre a forma como utilizam os cuidados,
aquilo a que chamamos literacia em saúde”, alerta Constantino Sakellarides.
Literacia em Saúde é ‘meio
caminho andado’
Mesmo quem mais se preocupa com as questões financeiras e económicas
garante que “a longo prazo, o elemento central será as necessidades de saúde da
população e não os custos de prestar cuidados ou as fontes de financiamento
para dar proteção financeira, como os seguros públicos ou privados de saúde”,
explica o economista de Saúde Pedro Pita Barros. “A sustentabilidade financeira
do SNS vai ser garantida através de hábitos de vida mais saudáveis, da
capacidade de uma nova visão para o SNS mais flexível em acomodar a
participação das pessoas na gestão da sua saúde e da sua doença.”
Em termos individuais, os desafios serão pagar as contas e saber o que
fazer. “No SNS como o conhecemos, as principais barreiras financeiras estão na
despesa com medicamentos. As taxas moderadoras, por mercê das isenções que
existem, não são o elemento de despesa mais relevante e também não são os custos
de transporte. A maior despesa decorrente de um contacto do cidadão com o SNS
está nos medicamentos a comprar”, afirma o professor da Universidade Nova de
Lisboa.
O saber, neste caso, ocupa muito lugar. “Numa visão para o futuro, as
barreiras de conhecimento sobre como o cidadão pode relacionar-se melhor com o
SNS serão parte importante das barreiras de acesso”, diz Pedro Pita Barros. “Um
SNS que seja mais flexível na resposta que dá aos cidadãos terá maior
diversidade de opções de relacionamento, que geram a necessidade de
conhecimento dos cidadãos.” E o professor dá um exemplo: “Ainda hoje, passados
dez anos, nem sempre o cidadão sabe se a unidade de cuidados primários que
utiliza quando se sente doente é USF-A, USF-B ou UCSP nem o que as siglas significam.”
Sabe?
Semanario
expresso, textos Vera Lúcia Arreigoso, 29.04.17
Nota: "Programa Nacional de Educação para a Saúde, Literacia e Autocuidados". link link
Relatório “Literacia em Saúde em Portugal” (2016), FCG link
Despacho n.º 3454/2017,24.04.17, principais ações a desenvolver em 2017, no âmbito do "Programa Nacional de Educação para a Saúde, Literacia e Autocuidados". link
Relatório “Literacia em Saúde em Portugal” (2016), FCG link
Despacho n.º 3454/2017,24.04.17, principais ações a desenvolver em 2017, no âmbito do "Programa Nacional de Educação para a Saúde, Literacia e Autocuidados". link
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