Considerações sobre a natureza da continuidade
Enquanto a tutela da Saúde se deslocava da Fundação Calouste Gulbenkian para Santo Tirso com passagem pelo Centro Cultural de Belém, mostrando às plateias os progressos que ao fim de um terço do mandato tinha conseguido, o retrato da saúde dos portugueses, evidenciado pelo Inquérito Nacional de Saúde, realizado em 2014, tinha perdido brilho e muitas das suas cores tinham desaparecido.
A circunstância de os dados se reportarem àquele ano e só serem conhecidos agora, não significa que no início do seu mandato, na qualidade da função governativa que ia ocupar, lhe devesse ser estranho aquele diagnóstico.
O padrão epidemiológico da morbilidade era inequívoco quanto às causas que lhe estavam subjacentes.
O Inquérito Nacional de Saúde não fez mais do que dar evidência estatística ao que já era conhecido.
Por essa razão as medidas que têm vindo a ser tomadas nestes meses que a tutela leva de exercício do cargo são tudo menos aquelas que se ajustam ao que muitos dos indicadores de saúde exigem.
No princípio, embora timidamente, o discurso ainda incorporava algumas referências à promoção da saúde.
Ultimamente, o modelo biomédico readquiriu o seu estatuto, instalou-se e passou a dominar toda a iniciativa que tem origem no Ministério da João Crisóstomo.
Vejamos então do que estamos a falar.
Podemos apreciar A Toilette de Vénus, de Rubens, mas sabemos que ela não vai ser diabética, nem hipertensa, nem cardíaca, nem vai sofrer de artroses dos joelhos, nem doença oncológica, nem vai precisar de cuidados médicos, nem de internamento, nem do INEM, nem da UCI, nem do dinheiro dos nossos impostos para se tratar.
Vai continuar pelos séculos fora a olhar-se ao espelho com os seus cabelos loiros a escorrem-lhe pelo ombro direito.
E também não vai aumentar nem diminuir de peso.
Na passagem do século XVI para o século XVII aquele era o padrão de beleza feminina dos flamengos.
Mais recentemente, podemos também apreciar O Picador, de Botero, mas daí não virá mal nem ao cavalo, nem ao jaez, nem a quem vai picar, nem aos serviços de primeiros socorros da praça de toiros, nem ao próprio.
Bem diferente é a epidemia que está instalada entre a população adulta portuguesa. Informa aquele inquérito que “mais de metade da população com 18 ou mais anos (4,5 milhões) tinha excesso de peso ou obesidade, 43,9% tinha um peso normal (3,8 milhões) (INE, Inquérito Nacional de Saúde, 2016, pág. 7).
A dimensão do alto risco é a que os valores mostram.
É verdade que num mundo perfeito nenhum português deveria ter um índice de massa corporal superior a 24, mas daí àquele valor vai o salto de uma incúria das políticas de saúde.
A Gauss iria custar-lhe construir uma curva de normalidade com estes valores.
E aos contribuintes vai-lhes custar andar a pagar durante as próximas dezenas de anos o que podia ter sido prevenido.
E desde logo se tivesse começado a ser aplicada uma estratégia que, em vez do cimento, desse prioridade ao conhecimento e á sua difusão.
Não se tendo atacado o problema quando ele começou a tomar as proporções que agora se conhece em toda a sua extensão, pelo menos ainda se tinha ido a tempo de ganhar alguns anos de vida e de anos de vida sem incapacidade.
Pelo contrário, o investimento terá de ir inevitavelmente para consultas médicas, para medicação, para as linhas verdes do enfarte agudo do miocárdio, do acidente vascular cerebral, para os antidiabéticos, para as quimioterapias, as radioterapias ou as cirurgias. E ainda escasseia.
Os idosos
Há notícia de que os idosos institucionalizados apresentam défices alimentares importantes quando comparados com os idosos que se mantêm em ambiente domiciliário, qualquer coisa como 43,5% contra 17,5% . link
E que as taxas de depressão são também mais elevadas naqueles idosos.
Não constituindo um dado surpreendente, ele decorre da ausência de uma política que integre as diversas dimensões e necessidades desta população. Agora que vai ser discutida a descentralização administrativa importa que seja acompanhada pela descentralização de competências de maneira a que a generalidade das funções sociais sejam planeadas e integradas tendo em conta as particularidades de cada comunidade social.
Não representando todo o argumento para a descentralização, as políticas de proximidade são aquelas que estão em melhores condições para ajustar as soluções aos problemas, numa perspectiva de aproveitamento exaustivo dos recursos locais. Como o caso das condições problemáticas da vida de grande parte dos idosos, que
devem beneficiar dos apoios indispensáveis para se manterem no seu domicílio, se essa for a sua vontade.
E ao sector da saúde nada lhe deve ser indiferente quando se está perante contextos sociais em que com maior facilidade se vão instalar ou agravarem patologias que contribuem para o aumento da incapacidade e para as taxas de mortalidade que ultimamente vêm sendo conhecidas.
De Manchester nem bom vento nem bom tempo, de espera
Também foi afirmado no Fórum do SNS, realizado em Santo Tirso, que um gesto tão simples como dar ao doente o número do telemóvel de quem lhe está a gerir a doença iria resolver a peste verde, tipo Linha Saúde 24 peripatética, a doença que ataca à volta de 50% das urgências hospitalares.
Simplificando, é a cor daquelas pulseiras, atribuídas aos doentes que se dirigem aos serviços de urgência hospitalar, que o informam: não, não é urgente, isto vai-lhe dar umas sete horas para ficar sentado a pensar que da próxima vez não se deve dirigir aqui.
Este é o ponto de vista de quem decide da entrega do adereço.
E o ponto de vista de quem espera?
Para esse ponto de vista, disseram, há o telemóvel e as maravilhas que ele pode fazer.
Por exemplo: - oh senhor Manuel, pela sua saúde não vá às urgências porque o seu caso não é assim tão grave, dirija-se ao centro de saúde mais próximo, de preferência da sua área de residência, ou onde está inscrito, e vai ver que lhe resolvem o achaque.
Podemos estar a ver mal, mas esta é mesmo a solução para essa calamidade que dá pelo nome de obstáculos organizacionais no acesso fora de horas aos centros de saúde?
O que lá foi dito sobre a solução para o que, do ponto de vista clínico, não representa uma urgência é uma consulta telefónica.
Não será, porém, o alargamento permanente do horário de atendimento nos centros de saúde, de maneira a desenvolver-se uma cultura de utilização prioritária e apropriada destes serviços sempre que algum acontecimento desta natureza se atravessa na vida corrente das pessoas?
É que os obstáculos, organizacionais e financeiros, no acesso às urgências geraram um défice de 2, 7 milhões de actos médicos que, não tendo sido realizados, tiveram seguramente consequências sobre a saúde de quem deles carecia
Para não se transformarem as urgências e outros tipos de atendimento equivalentes no epicentro do sistema público de saúde, como a certa altura aconteceu com os SAP, é necessário que o SNS adquira outra configuração, a configuração de parcerias públicas com capacidade de decisão das comunidades locais.
É no conhecimento dos recursos locais e da extensão da sua capacidade de resposta que as soluções alternativas podem ser encontradas e ter lugar.
A continuidade é uma rendição
Na Fundação Calouste Gulbenkian, a tutela deu notícia do que desde sempre esteve à vista logo que tomou posse: a defesa da continuidade. A qual, dada a proximidade cronológica, só pode ser entendida como a continuidade da política de saúde do governo anterior.
Bem se esforçou a propaganda do governo do brutal aumento de impostos para impor o então ministro da Saúde como a face benevolente das suas políticas.
Ao dar aquele sinal político, de dar cobertura ao percurso do seu antecessor, a actual tutela escolheu o caminho mais fácil, ir pelo caminho já traçado, na presunção de que tal como está, com trinta e oito de existência, o SNS irá cumprindo a sua missão ancorado nos pressuposto que o viu nascer.
Porém, sendo um serviço público, o SNS tem por missão responder pela integralidade dos valores pelos quais está em défice em muitos dos seus aspectos. A continuidade, tal como vem sendo aplicada ao longo dos últimos anos, fez do SNS um prestador cego às razões do que vai acontecendo, acumulando disfunções organizacionais, atrasos e sobrancerias.
Está transformado no bombeiro a quem foi atribuída a missão de retirar os que, no meio do rio, esbracejando, estão prestes a afogar-se, sem cuidar-se de saber o que se está a passar a montante.
A continuidade, enquanto ideologia do sistema público de saúde, é adversária da inovação, Camus diria que é o seu Sísifo, é o equivalente a carregar antigas práticas, muitas delas obsoletas, sempre com o argumento na ponta da língua para justificar a lógica do imobilismo: era assim que os nossos avós faziam. Tem sido esta visão passadista do SNS que o fez parar no tempo, umas vezes benevolente, outras, castigadora.
Se há declaração e prática que estaria vedada ao governo saído dos acordos de 10 de Novembro de 2015, era de que iria adoptar uma política de continuidade.
Deitar contas aos mortos
Defendia o poeta Gedeão que o sonho é uma constante da vida.
E durante anos cantámos essa constante, e continuamos a cantá-la, talvez porque, como figura poética, seja inultrapassável e resuma uma das características que nos distingue como espécie, sonhar, isto é, projectar a perfeição do desejo ou, quem sabe, aspirar á sublime tentativa de alcançar o belo.
Sendo o sonho uma constante, a constante da vida é, porém, a morte.
Porque, até ver, ela é irremediavelmente irreversível.
Talvez seja por isso que a espécie humana inventou, nuns casos, e descobriu, noutros casos, a medicina, essa engenharia que tem como finalidade prolongar a vida para que, no todo, ou em parte, o sonho individual permaneça e se possa cumprir.
Também por isso as sociedades foram aperfeiçoando o modo e a maneira como foram garantindo a todos o acesso a cuidados de saúde com a sofisticação tecnológica que hoje se conhece, até se chegar aos sistemas públicos de cobertura universal, de que o exemplo mais qualificado é o Serviço Nacional de Saúde, tal como o conhecemos desde 1948, na Grã-Bretanha, e desde 1979, em Portugal.
Ao terem como uma das suas principais missões tratar e curar a doença, é nas oscilações do volume de óbitos verificados num dado período de tempo que podemos avaliar a contribuição que os serviços de saúde estão a dar para manter e prolongar a vida.
As variações da mortalidade em Portugal, na série temporal 2007-2016, podem ser consultadas em link onde o respectivo quadro permite analisar a sua distribuição e as incidências que se foram verificando ao longo da década, sobretudo nos períodos mais críticos, o verão, associado às ondas de calor, e o inverno, relacionado com o frio e os síndromes gripais, cuja combinação representam um risco acrescido para os grupos mais vulneráveis, principalmente os idosos.
Apesar disso, e dado o conhecimento que se tem destes acontecimentos e da sua constância, torna-se possível prever e planear as respostas a estas situações de maneira a prevenir a ocorrência mais indesejável, a morte evitável.
Nestas circunstâncias é inqualificável e inadmissível o que se passou durante o ano de 2016 no que respeita ao volume de óbitos verificados.
Para uma média anual de 107 574 óbito naquela série temporal, no ano transacto registaram-se em Portugal 112 410 óbitos, representando um
excesso de 4 836 óbitos relativamente ao esperado. Na década, este foi o pior valor verificado.
Os meses de Abril, Maio, Agosto, Setembro, Outubro e Dezembro foram os piores meses de todo o período, e só em
dois meses – Janeiro e Fevereiro – não se registaram excesso de óbitos.
Comparativamente, o ano de 2007 foi o que apresentou melhores valores, sem nenhum mês com mortalidade excessiva. Bastaram, no entanto, dez anos para o SNS deixar de dar as respostas a que nos tinha habituado e que eram esperadas e exigíveis. Relativamente à média da década, entre 2007-2016 verificou-se uma variação de 8 279 óbitos.
Embora a tutela tenha afirmado que, no que se refere à mortalidade sazonal, este inverno tinha sido o melhor dos últimos anos, os dados aí estão para a desmentir.
Considerando que naquela década e nos meses de Dezembro, Janeiro e Fevereiro se verificou uma média de 32 082 óbitos, o inverno de 2016/17 foi o que apresentou maior excesso de óbitos, 3130, logo a seguir ao inverno de 2104/2015, com 3789 óbitos.
Quando os sistemas de saúde, sejam eles predominantemente públicos ou predominantemente privados, apresentam estes valores há responsabilidades que têm de ser assumidas.
A Constituição da República não deixa de fazer referência a este tipo de ocorrências: O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem (Artº22º).
E a pergunta que obrigatoriamente exige uma resposta é: o que não foi feito para prevenir este tipo de catástrofe, porque disso se trata?
Quando é que estas situações vão começar a ter o tratamento judicial que a Constituição prevê?
Quando é que a natureza destas omissões vai começar a ser tratada como ofensas à vida?
Várias personalidades responsabilizaram o valor dos óbitos de 2016 pelo envelhecimento da população, querendo supostamente dizer que, subitamente, os idosos tomaram a decisão de começarem a morrer antes do esperado.
Pergunta impertinente: desde que ano, mês e dia é que o aumento da esperança de vida contribui para o aumento da mortalidade? Aprende-se onde estas coisas se ensinam que a esperança de vida é um estabilizador do fenómeno.
O excesso muito excessivo de óbitos não pode ser explicado nem pelo envelhecimento da população nem pela virulência do vírus H3N2, que já esteve presente noutras alturas sem as consequências que se verificaram neste inverno. A explicação pode ser outra: conjugaram-se temperaturas baixas, presença do H3N2, idosos com multipatologias, baixas condições de vida e, uma vez mais, indiferença da tutela, que não accionou o sistema de alerta e resposta para prevenir esta calamidade, e minimizar as ocorrências.
Envolver o envelhecimento da população, que não é uma doença mas uma vulnerabilidade, no excesso de óbitos é irresponsável, mistificador e um argumento arremessado para fazer crer que estamos perante uma fatalidade, e contra fatalidades não há argumentos.
O aumento de três pontos percentuais do volume de idosos na população, entre 2007-2016 (1,8 milhões – 2,1 milhões), não explica a brutal variação de mortalidade no período, cujo aumento foi de oito por cento. Quer-se fazer crer que é a mão invisível de Deus a fazer das suas. Mas não é assim.
Teria bastado que os responsáveis da Saúde tivessem tido outra atenção com os idosos e, juntamente com outros sectores das comunidades locais, tivessem feito o que era exigível que tivesse sido feito: protegê-los dos riscos anunciados.
Notícias de Xangai
Realizada entre 21-24 de Novembro de 2016, e na sequência da Carta de Ottawa de 1986 e de outras conferências que se sucederam, a 9ª Conferência de Promoção da Saúde realizada em Xangai, entre outros aspectos realçou a importância das seguintes medidas:
Os autarcas concordaram em integrar a saúde como uma dimensão central em todas as políticas das cidades; em promover o envolvimento das comunidades por meio de múltiplas plataformas, entre elas escolas, locais de trabalho e novas tecnologias para avançar em saúde; e em reorientar a saúde municipal e os serviços sociais para a equidade e cobertura universal de saúde.
O evento em Xangai marca o 30º aniversário da primeira conferência global, realizada no Canadá, que emitiu a Carta de Ottawa sobre a Promoção da Saúde.
Esse documento deixou clara a necessidade de compromisso político, acção e investimentos para tratar de saúde e equidade e que o sector de saúde sozinho não poderia garantir que as pessoas atingissem o mais alto nível de saúde.
Mais de mil pessoas participam da Conferência em Xangai, incluindo o primeiro-ministro da China, mais de 40 Ministros da Saúde e outros setores, chefes de cinco agências das Nações Unidas e cerca de 100 autarcas . Centenas de especialistas em saúde internacionais também estão participando em diversos assuntos.
Não sei se Portugal se fez representar e participou nas discussões da Conferência. De qualquer maneira, aí está, mais uma vez, a declaração de que a saúde das populações trasncende em muito a abordagem biomédica e exige outro compromisso em que as comunidades locais sejam parceiro decisivo das decisões.
Cipriano Justo, Tempo Medicina
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