Adão e Eva
Olhámo-nos um dia,
E cada um de nós sonhou que achara
O par que a alma e a cara lhe pedia.
– E cada um de nós sonhou que o achara...
E entre nós dois
Se deu, depois, o caso da maçã e da serpente,
... Se deu, e se dará continuamente:
Na palma da tua mão,
Me ofertaste, e eu mordi, o fruto do pecado.
– Meu nome é Adão...
E em que furor sagrado
Os nossos corpos nus e desejosos
Como serpentes brancas se enroscaram,
Tentando ser um só!
Ó beijos angustiados e raivosos
Que as nossas pobres bocas se atiraram
Sobre um leito de terra, cinza e pó!
Ó abraços que os braços apertaram,
Dedos que se misturaram!
Ó ânsia que sofreste, ó ânsia que sofri,
Sede que nada mata, ânsia sem fim!
– Tu de entrar em mim,
Eu de entrar em ti.
Assim toda te deste,
E assim todo me dei:
Sobre o teu longo corpo agonizante,
Meu inferno celeste,
Cem vezes morri, prostrado...
Cem vezes ressuscitei
Para uma dor mais vibrante
E um prazer mais torturado.
E enquanto as nossas bocas se esmagavam,
E as doces curvas do teu corpo se ajustavam
Às linhas fortes do meu,
Os nossos olhos muito perto, imensos,
No desespero desse abraço mudo,
Confessaram-se tudo!
... Enquanto nós pairávamos, suspensos
Entre a terra e o céu.
Assim as almas se entregaram,
Como os corpos se tinham entregado,
Assim duas metades se amoldaram
Ante as barbas, que tremeram,
Do velho Pai desprezado!
E assim Eva e Adão se conheceram:
Tu conheceste a força dos meus pulsos,
A miséria do meu ser,
Os recantos da minha humanidade,
A grandeza do meu amor cruel,
Os veios de oiro que o meu barro trouxe...
Eu, os teus nervos convulsos,
O teu poder,
A tua fragilidade
Os sinais da tua pele,
O gosto do teu sangue doce...
Depois...
Depois o quê, amor? Depois, mais nada,
– Que Jeová não sabe perdoar!
O Arcanjo entre nós dois abrira a longa espada...
Continuamos a ser dois,
E nunca nos pudemos penetrar!
José Régio
7 Comments:
Este problema final hoje, sem querer ofender o Régio que é um dos autores portugueses que eu mais respeito, com o Viagra, estaria ultrapassado. Realmente sem penetração não há amor que resista. Esperto foi o investigador que descobriu a fórmula deste medicamento. Resolveu o problema dele (ao que parece era casado com uma boa como o chocolate - é que eu não gosto de milho), resolveu o problema de milhões de homens, que deixaram de fazer fraca figura por estas razões e ainda por cima ficou cheio de dólares.
Parece-me ser uma alegoria ao pecado original. O homem jamais poderá almejar o amor original do adão e eva. Se este já é tão bom, imagino como seria antes da história da maçâ. Quer dizer, por causa de um glutão andamos para aqui a penar. Eu de qualquer maneira ainda não desisti da perfeição. Quem sabe, talvez consiga me aproximar da performance do adão.
A propósito do mesmo tema, escreveu Shelley (e eu aproveito para testar a capacidade desta caixa de comentários):
"And We will talk, until thought's melody
Become too sweet for utterance, and it die
In words, to live again in looks, which dart
With thrilling tone into the voiceless heart,
Harmonizing silence without a sound.
Our breath shall intermix, our bosoms bound,
And our veins beat together, and our lips
With other eloquence than words, eclipse
The soul that burns between them and the wells
Which boil under our being's inmost cells,
The fountains of our deepest life, shall be
Confused in Passion's golden purity,
As mountain-springs under the morning sun.
We shall become the same, we shall be one
Spirit within two frames, oh! wherefore two?
One passion in twin-hearts, which grows and grew,
Til like two meteors of expanding flame,
Those spheres with it become the sama,
Touch, mingle, are transfigured; ever still
Burning, yet ever inconsumable:
In oneanother's substance finfing food,
Like flames too pure and light and unimbued
To nourish their bright lives with baser prew,
Which point to Heaven and cannot pass away:
One hope within two wills, one will beneath
Two overshadowing minds, one life, one death,
One Heaven, one Hell, one immortality,
And one annihilation. Woe is me!
The wingèd words on which my soul would pierce
Into the height of love's rare Universe,
Are chains of lead around its flight of fire -
I pant, I sink, I tremble, I expire!"
Este excerto do poema "Epipsychidion", apesar de ser mais metafórico, não deixa de ser tão belo como o do nosso Régio e não menos ousado.
Obrigada por nos deliciar com a leitura integral de "Adão e Eva":)
Esta caixa de comentários, de facto, aguenta tudo.
sama é same
finfing é finding
love é Love
De resto, acho que está tudo bem:)
1. - Agradeço o interesse que de há muito a Francisca tem dispensado à SaudeSA.
Inseri o "Adão e Eva" do José Régio, motivado pelo excelente texto que a Francisca publicou no Guarda Factos. Lamento não tê-lo feito tão bem quanto o desejaria.
Tenho procurado, ultimamente, actualizar a leitura do José Régio na esperança de ainda ir a tempo de colmatar erros passados resultantes de prioridades mal decididas e de tentar não desiludir, na próxima oportunidade, a Francisca.
2. - A propósito do poema do Shelley que a Francisca fez o favor de trazer a estes comentários, parece-me que o autor trata o tema com mais subtileza(inspiração?).
Não é o tema mas a forma (pouco poética) que me surpreende no Régio (neste poema). Mas admito que esteja a ver(sentir) erradamente as coisas. Vou tentar apurar a verdade através do conhecimento.
A poesia deve, quanto a mim, além de tudo, expressar um sentimento que nos faça acreditar, através da sua leitura, que é sincero, verdadeiro (Invoco aqui o Pessoa, e o poeta fingidor), como neste poema:
Nua
Porque me despes completamente
sem que eu nem perceba...
E quando nua
por incrível que pareça
sou mais pura...
Porque vou ao teu encontro
despojada de critérios...
liberto os mistérios
sem perder o encanto
do prazer...
Porque
quando nua
sou única
e exclusivamente
tua...
3. - Mais uma vez os meus agradecimentos pela colaboração e ... inspiração.
We looked at each other one day,
And each of us dreamt having found it
The pair the soul and the face were asking for.
- And each of us dreamt having found it…
1. Eu é que estou grata (e muito) pela oportunidade de vos ler e comentar.
Para além da informação sempre actual e questões pertinentes á volta da saúde - algumas até demasiado complexas pela estatística a que é alérgica uma pessoa de românicas:)) - podemos sempre contar com a partilha das vossas sensibilidades, que são variadas e profundas.
Fiquei muito tocada pelo seu gesto e não percebo como poderia t~e-lo feito melhor.
Desculpe-me a sugestão mas não leia Régio se não lhe apetecer.
Ler é - pode e deve ser sobretudo - saborear.
Acha que me desilude por não gostar de morangos? Há tantas frutas no paraíso!...
2. Agora, o difícil da coisa:
Lembrei-me do Shelley apenas pelo tema, pelo acto em si, mais precisamente.
Com toda a sinceridade, é-me impossível fazer uma comparação entre eles. São correntes diferentes e génios diferentes.
Se descobrir a verdade não se esqueça de a partilhar comigo:)
Quanto a mim, acho que a poesia pode expressar tudo, até uma ilusão. O que encontro de encantador nela são as leituras múltiplas e a plasticidade de um sonho (ainda que se afirme desfeito).
Mas o que é que eu sei?
Sei que gostei do poema da Isabel Machado que transcreveu.
Sei que pode haver muitos porquês para isso.
E sei que adorei a tradução de Régio:)
3. E quanto a gratidão e inspiração, puxo da Elizabeth Barrett Browning: "How do I love thee? Let me count the ways."
Boa terça, apesar do sabor a terça:)
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