Contra Dogmatismos
O SNS foi, certamente, a melhor realização da Revolução de Abril. E, se hoje é alvo de polémica, existe um largo consenso sobre os princípios fundadores. A grande discussão não é sobre os princípios, mas sobre os meios de os concretizar. Não defende o SNS quem está pronto a lançar anátemas sobre quem propõe alternativas. Não defende o SNS quem enterra a cabeça na areia para não ter de discutir a sua viabilidade. Defende o SNS quem estuda os problemas, propõe soluções e se atreve a pôr em causa alguns dogmas.
Dois exemplos recentes, colhidos aqui no blog, para ilustrar o que digo:
No último dos seus brilhantes comentários o semmisericórdia demonstrou que há uma relação crescente entre o PIB e as despesas de saúde e explicou o porquê dos maiores gastos com a saúde nos países ricos. Podemos ver como a posição de Portugal, relativamente à linha de regressão, é demonstrativa de ineficiência do nosso sistema de saúde. Lendo atentamente o trabalho do nosso colega concluiremos que Portugal, atendendo ao seu nível de rendimento, gasta demasiado com a saúde. Como se defende o SNS? Ignorando a evidência e reclamando sempre mais meios?
Fui breve quanto a este exemplo, por que o semmisericórdia disse o suficiente. Alongar-me-ei sobre o segundo, que tem a ver com uma notícia do Expresso de 8 de Abril, sobre o Hospital de São João e os comentários depreciativos a que, imediatamente, deu origem.
O que diz essa notícia? Diz, essencialmente, o seguinte:
Foram criadas, no âmbito do desenvolvimento do plano estratégico do HSJ, seis Unidades Autónomas de Gestão (UAG). Foram extintos os departamentos e alguns dos mais de cinquenta serviços existentes. Mudaram os critérios de escolha dos Directores de Serviço. Aumentou o afastamento da estrutura do Hospital em relação à Faculdade de Medicina do Porto.
Analisemos cada um destes pontos:
Criação das UAG :
As UAGs não são mais do que os Centros de Responsabilidade (CR), previstos na Lei de Gestão Hospitalar (Dec-Lei nº 19/88). O preâmbulo daquele diploma considerava a criação dos CR como significativa novidade, em consonância com o princípio de que os hospitais se devem ser organizados e administrados em termos empresariais.
Esta forma de organização nunca foi estimulada quer pela tutela quer pelos órgãos de gestão dos hospitais e os escassos exemplos conhecidos visavam mais permitir o exercício de medicina privada do que propiciar um novo modelo de gestão.
Mais de dez anos passados sobre a publicação da Lei de Gestão Hospitalar é aprovado o Dec-Lei 374/99 que estabelece o regime geral a que deve obedecer a criação dos Centros de Responsabilidade Integrados (era conveniente arranjar uma nova designação …).
Uma coisa é legislar, outra é aplicar o que as leis determinam, a verdade é que o exemplo verdadeiramente digno de registo é o CRI de Cirurgia Torácica dos HUC que, aliás, antecedeu a lei.
A dificuldade em criar CRI em hospitais SPA é compreensível: trata-se afinal de tentar enxertar uma ilha de gestão empresarial num universo burocrático, o que não faz muito sentido. Mas já se compreende mal que hospitais SA/EPE não aproveitem o seu estatuto para mudar de paradigma. O HSJ está a fazê-lo e, quanto a este ponto, creio que é correcta a decisão.
Extinção de serviços:
As células básicas da organização tradicional dos hospitais são os serviços. A organização em serviços decorre duma visão essencialmente técnica e desligada da visão global da gestão de recursos. Nos grandes hospitais universitários o peso do Serviço é muito forte, Na ausência dum plano estratégico a tendência tem sido para que cada serviço defina a sua própria estratégia e se desenvolva a partir duma agenda pessoal do Director de Serviço, muito absorvido com a técnica e sem grandes preocupações com a eficiência. Não é em vão que alguns autores falam da balcanização hospitalar. Os resultados estão à vista. Uma gestão desumanizada para o doente, vítima da ausência de síntese e cara para a colectividade.
Quanto a este ponto, o que se poderia perguntar é se, ao mudar de paradigma, não se justificaria acabar com os serviços e criar, no seio das UAG, as unidades funcionais melhor ajustadas ao processo produtivo.
Critérios de escolha dos directores:
De acordo com o Dec-Lei 374/99 o director do CRI é “nomeado pelo Conselho de Administração de entre médicos com perfil adequado, segundo critérios de formação, competência, experiência e liderança”.
A necessidade das qualidades referidas é corroborada pelo Prof. Manuel Antunes, quando se refere aos Directores dos CRI – “Como é evidente, no entanto, o médico terá que ter formação e características de competência e liderança adequadas á gestão dum projecto deste género.”- (A Doença da Saúde).
Em boa lógica a nomeação do Director de Serviço deve ser feita pelo CA do Hospital sobre proposta da Direcção da UAG, com base naqueles mesmos critérios.
As relações Hospital – Faculdade:
Não seria preciso que o Director Clínico o tivesse afirmado para deduzir que o afastamento entre o Hospital e a Faculdade de Medicina vai aumentar. Sabe-se que os clínicos hospitalares privilegiam a componente assistencial e os universitários as vertentes de ensino e investigação. “Em condições ideais” diz o Prof. Manuel Antunes na obra já citada “a gestão do hospital universitário seria assegurada pela respectiva faculdade. Mas acrescenta “Contudo, a extrema complexidade dos hospitais centrais torna extremamente difícil a gestão pelas faculdades de medicina.”
Esta é uma questão difícil que merece uma discussão a sério, feita por quem tenha capacidade para tanto.
Concluindo, penso que, no plano dos princípios, a reestruturação do HSJ está a ser feita de forma correcta. O caminho escolhido é obviamente difícil. A menos que os comentaristas tenham informações privilegiadas, sobre a forma como o processo de mudança está a ser implementado, parece-me que os comentários são prematuros e injustos. Se a gestão do processo estiver a ser feita com recta intenção o CA do HSJ estará, inequivocamente, a defender o SNS.
O SNS é pertença dos cidadãos. Todos somos responsáveis pelo seu futuro. A situação do SNS é demasiado complexa para que alguém pense que o problema não é consigo.
Dois exemplos recentes, colhidos aqui no blog, para ilustrar o que digo:
No último dos seus brilhantes comentários o semmisericórdia demonstrou que há uma relação crescente entre o PIB e as despesas de saúde e explicou o porquê dos maiores gastos com a saúde nos países ricos. Podemos ver como a posição de Portugal, relativamente à linha de regressão, é demonstrativa de ineficiência do nosso sistema de saúde. Lendo atentamente o trabalho do nosso colega concluiremos que Portugal, atendendo ao seu nível de rendimento, gasta demasiado com a saúde. Como se defende o SNS? Ignorando a evidência e reclamando sempre mais meios?
Fui breve quanto a este exemplo, por que o semmisericórdia disse o suficiente. Alongar-me-ei sobre o segundo, que tem a ver com uma notícia do Expresso de 8 de Abril, sobre o Hospital de São João e os comentários depreciativos a que, imediatamente, deu origem.
O que diz essa notícia? Diz, essencialmente, o seguinte:
Foram criadas, no âmbito do desenvolvimento do plano estratégico do HSJ, seis Unidades Autónomas de Gestão (UAG). Foram extintos os departamentos e alguns dos mais de cinquenta serviços existentes. Mudaram os critérios de escolha dos Directores de Serviço. Aumentou o afastamento da estrutura do Hospital em relação à Faculdade de Medicina do Porto.
Analisemos cada um destes pontos:
Criação das UAG :
As UAGs não são mais do que os Centros de Responsabilidade (CR), previstos na Lei de Gestão Hospitalar (Dec-Lei nº 19/88). O preâmbulo daquele diploma considerava a criação dos CR como significativa novidade, em consonância com o princípio de que os hospitais se devem ser organizados e administrados em termos empresariais.
Esta forma de organização nunca foi estimulada quer pela tutela quer pelos órgãos de gestão dos hospitais e os escassos exemplos conhecidos visavam mais permitir o exercício de medicina privada do que propiciar um novo modelo de gestão.
Mais de dez anos passados sobre a publicação da Lei de Gestão Hospitalar é aprovado o Dec-Lei 374/99 que estabelece o regime geral a que deve obedecer a criação dos Centros de Responsabilidade Integrados (era conveniente arranjar uma nova designação …).
Uma coisa é legislar, outra é aplicar o que as leis determinam, a verdade é que o exemplo verdadeiramente digno de registo é o CRI de Cirurgia Torácica dos HUC que, aliás, antecedeu a lei.
A dificuldade em criar CRI em hospitais SPA é compreensível: trata-se afinal de tentar enxertar uma ilha de gestão empresarial num universo burocrático, o que não faz muito sentido. Mas já se compreende mal que hospitais SA/EPE não aproveitem o seu estatuto para mudar de paradigma. O HSJ está a fazê-lo e, quanto a este ponto, creio que é correcta a decisão.
Extinção de serviços:
As células básicas da organização tradicional dos hospitais são os serviços. A organização em serviços decorre duma visão essencialmente técnica e desligada da visão global da gestão de recursos. Nos grandes hospitais universitários o peso do Serviço é muito forte, Na ausência dum plano estratégico a tendência tem sido para que cada serviço defina a sua própria estratégia e se desenvolva a partir duma agenda pessoal do Director de Serviço, muito absorvido com a técnica e sem grandes preocupações com a eficiência. Não é em vão que alguns autores falam da balcanização hospitalar. Os resultados estão à vista. Uma gestão desumanizada para o doente, vítima da ausência de síntese e cara para a colectividade.
Quanto a este ponto, o que se poderia perguntar é se, ao mudar de paradigma, não se justificaria acabar com os serviços e criar, no seio das UAG, as unidades funcionais melhor ajustadas ao processo produtivo.
Critérios de escolha dos directores:
De acordo com o Dec-Lei 374/99 o director do CRI é “nomeado pelo Conselho de Administração de entre médicos com perfil adequado, segundo critérios de formação, competência, experiência e liderança”.
A necessidade das qualidades referidas é corroborada pelo Prof. Manuel Antunes, quando se refere aos Directores dos CRI – “Como é evidente, no entanto, o médico terá que ter formação e características de competência e liderança adequadas á gestão dum projecto deste género.”- (A Doença da Saúde).
Em boa lógica a nomeação do Director de Serviço deve ser feita pelo CA do Hospital sobre proposta da Direcção da UAG, com base naqueles mesmos critérios.
As relações Hospital – Faculdade:
Não seria preciso que o Director Clínico o tivesse afirmado para deduzir que o afastamento entre o Hospital e a Faculdade de Medicina vai aumentar. Sabe-se que os clínicos hospitalares privilegiam a componente assistencial e os universitários as vertentes de ensino e investigação. “Em condições ideais” diz o Prof. Manuel Antunes na obra já citada “a gestão do hospital universitário seria assegurada pela respectiva faculdade. Mas acrescenta “Contudo, a extrema complexidade dos hospitais centrais torna extremamente difícil a gestão pelas faculdades de medicina.”
Esta é uma questão difícil que merece uma discussão a sério, feita por quem tenha capacidade para tanto.
Concluindo, penso que, no plano dos princípios, a reestruturação do HSJ está a ser feita de forma correcta. O caminho escolhido é obviamente difícil. A menos que os comentaristas tenham informações privilegiadas, sobre a forma como o processo de mudança está a ser implementado, parece-me que os comentários são prematuros e injustos. Se a gestão do processo estiver a ser feita com recta intenção o CA do HSJ estará, inequivocamente, a defender o SNS.
O SNS é pertença dos cidadãos. Todos somos responsáveis pelo seu futuro. A situação do SNS é demasiado complexa para que alguém pense que o problema não é consigo.
Dino_Sauro
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