terça-feira, julho 10

ADSE


Reflexão sobre o anunciado ocaso

I. A criação da ADSE, em 1963, já no preâmbulo da derrocada do regime salazarista, na altura confrontado com a guerra colonial que lhe viria a ser fatal, tinha como objectivo “aliviar “ a situação desfavorável em que se encontravam os funcionários públicos, comparativamente aos trabalhadores das empresas privadas.
Este sistema da ADSE, sendo um esquema de “assistência em todas as formas da doença”, era um importante objectivo político. Esta medida social visava profundos propósitos de consolidação política do regime: o reforço da retaguarda do regime. O Exército (mais que os outros ramos das FA), desde a revolta de 28 Maio de 1926, foi transformado na “guarda pretoriana” da ditadura, no interior. Era o esteio do salazarismo. Daí saíam os presidentes da República, os administradores das grandes empresas, os membros da comissão de censura, etc. O início da guerra colonial, uma insensata aventura política desse malogrado regime, carregada de mistificações epopeicas e de saudosismos sobre um fátuo Império Português, para além de demonstrar a incapacidade de incorporação dos novos ventos advindos do fim da II Guerra (a descolonização), afastou o Exército da corte do Poder, mobilizando-o – rapidamente e em força - para África.
Era necessário, consolidar a frente interna, dita, metropolitana. Para além do Exército, restavam os funcionários públicos. Algumas prebendas ou “privilégios”, como p. exº., esquemas sociais (tipo ADSE), políticas fiscais (funcionários públicos com parcos vencimentos mas isentos de impostos) e, para alguns (os fiéis à situação), o exercício vitalício do posto de trabalho, inerente a outro conceito caro ao regime: a “segurança” nos empregos públicos, já que a segurança social era embrionária.

Os direitos à Segurança Social e à Saúde tornam-se claramente visíveis depois do 25 de Abril
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O Decreto-Lei 476/80, do governo Sá Carneiro, tem mais vastas preocupações, começando pela designação. Transforma a Assistência na Doença aos Servidores do Estado (ADSE) na Direcção-Geral de Protecção Social aos Funcionários e Agentes da Administração Pública (ADSE). Verifica-se aqui o salto qualitativo: assistência na doença para protecção social. O seu âmbito alarga-se de modo decisivo: promoção da saúde, prevenção da doença, cura e reabilitação. Entra francamente no seio das preocupações sociais: os encargos de família, bem como, preconiza a intervenção a “favor do beneficiário no caso de eventos de carácter geral e típico que tenham como consequência uma alteração desfavorável do equilíbrio entre as suas necessidades e os meios que dispõe para as satisfazer”. Este articulado, sobrescrito por Sá Carneiro – eminente personagem política do liberalismo em Portugal – exasperaria até à medula quaisquer destes actores neo-liberais que, hoje, por cá pululam (“Compromisso Portugal”, etc.). O VI governo constitucional foi capaz, teve a coragem política, de produzir legislação de âmbito social, em conformidade com os princípios constitucionais em vigor.
Os Decretos-Leis nºs 115/83 e 118/83, de 24 e 25 de Fevereiro, regulamentam o funcionamento e introduzem alterações orgânicas, sem beliscar a sua abrangência social. Posteriormente, o Decreto-Lei n.º 158/96, de 3 de Setembro, reformula a missão e as funções da Direcção-Geral como órgão operativo coordenador e gestor da protecção social aos funcionários e agentes da Administração Pública, debruçando-se, com especial relevância e polémica, sobre a (re)estruturação de carreiras na função pública.

Em 1999 é aprovada uma nova lei orgânica da ADSE (Decreto-Lei n.º 279/99) e progressivamente são introduzidas legislações complementares como a composição e normas de funcionamento das Juntas Médicas, regulamentação do funcionamento e esquema de benefícios e, finalmente, a nova Lei Orgânica (Decreto Regulamentar nº 23/2007 e a Portaria nº 351/2007).
Verifica-se, assim, como uma simples “assistência na doença” se tornou num complexo edifício de protecção social aos trabalhadores do Estado.

II. Depois da breve e incompleta resenha histórica debrucemo-nos sobre a questão política recentemente levantada pelo relatório para a sustentabilidade do SNS.
O grande argumento da Comissão para advogar o ocaso da ADSE é aquilo que classifica como a iniquidade do subsistema (ADSE), fundamentando-se em questões de limitação do acesso (restrito a um “grupo de profissional”).
Embora, a equidade e a acessibilidade sejam pilares fundamentais do SNS, ninguém concebe, ou concebeu, durante o seu já longo trajecto, a ADSE, como um Serviço que carregasse no seu bojo características ou pretensões para o universo populacional. Só agora foi equacionada essa “preocupação”. É, sempre foi, um sistema restrito aos servidores do Estado, que foi alargado aos cônjuges e descendentes. Confundir estas duas situações é, como costumo dizer, equiparar um guarda-chuva com a feira de Espinho. Aplicar critérios, eminentemente políticos e sociais, de universalidade, que abrangem – como o nome indica - a totalidade da população, a uma parte (mesmo que funcionalmente inserida no todo) é enviesar a justificação. É “espremer” argumentos até eles salpicarem os fantasmas que atormentam os orçamentos. É, também, tomar a nuvem por Juno.
Outro problema é os chamados direitos adquiridos. Há uma esquizofrénica tentação de cortar nos direitos adquiridos, sempre com as mesmas justificações: -salvar o Estado (deveria dizer-se aliviar o OE), passar agora um mau bocado para não ser pior (o mau bocado não tem fim), os radicalismos conduzem ao fim dos direitos dos trabalhadores (não há direitos “oferecidos”), etc.
Ninguém, em bom juízo, defende a persistência de direitos adquiridos “ad eternum”. Se assim fosse ainda vivíamos em tempos de escravatura. Mas sua reversão, ou supressão, à revelia (na ausência) de profundas e equitativas reformas das políticas redistributivas e fiscais será sempre considerada, pela população, como injusta e, aqui sim, iníqua. E a retalho, nunca, porque as primeiras (e por vezes únicas) vítimas serão sempre os mais fracos!

O complexo edifício dos direitos sociais lentamente construído pelas lutas e reivindicações populares, apoiado por correntes doutrinárias e políticas, tornou-se, nos dias de hoje, economicamente e financeiramente, muito sensíveis. Foram benefícios construídos ao longo de séculos, nomeadamente a partir dos finais do séc. XVIII (Revolução Francesa), e a sua dinâmica interna e as influências externas (do Mundo desenvolvido) geraram, naturalmente, uma tendência evolutiva progressiva. Integram o conceito de progresso social. Contrariar esta dinâmica, por razões orçamentais ou outras, é um complicado problema político. Porque o anúncio de eventuais rupturas na área social ou do trabalho obriga, sempre, a desenvolver políticas de grandes equilíbrios, múltiplas concertações e infindáveis ajustamentos. Se é verdade que o Estado dispõe de um orçamento limitado, os rendimentos disponíveis dos cidadãos também o são. Muitos funcionários públicos vivem hoje no limiar da pobreza. Portanto, são necessários para enfrentar este conjunto de problemas corajosas opções políticas, incompatíveis com a 2ª. metade de uma legislatura governamental. São difíceis as unanimidades nesta área social e, quando as há, alguma coisa estará mal, ou então não existiriam (perderiam a razão da existência) partidos políticos com diferentes correntes de ideias (ideologias), sindicatos, movimentos sociais, etc.
Citando Aristóteles: “A pior forma de desigualdade é tentar tornar iguais coisas desiguais”.

É neste contexto que, por ora, o XVII Governo Constitucional (não vale a pena falar do MS) “congelou” as sugestões deste relatório. Se não fosse este “por ora” quase não valia a pena discutir as implicações do relatório da sustentabilidade do SNS. Mas as recomendações estando, aparentemente, congeladas, poderão “só” estar postergadas. Aliás, a nota do MS, de 22 Junho, a anunciar a disponibilização deste relatório, já totalmente devassado, explicita que: “não haverá lugar, no presente mandato, à alteração do actual modelo de financiamento do sistema de saúde estando pois excluídas a criação de qualquer novo imposto, e alterações aos sistemas de isenções das actuais taxas moderadoras.” E por aqui se queda. Todavia, será ajuizado inferir que nenhuma das recomendações, constantes do relatório, deverá ser implementada. Esta, abordagem é, essencialmente, profilática e visa, fundamentalmente, abrir espaços de discussão.

III Finalmente, a parte técnica, isto é, a sustentabilidade financeira.
Alega-se no relatório, e é verdade, que uma parte substancial do financiamento da ADSE provém do OGE, tal como o SNS. A tal dupla “cobertura. Todavia, como já acima referimos, ninguém ao aderir à ADSE, fez “opting out”. Pelo que o escândalo, a existir, estará nos olhos ou no pensar de quem assim o desejaria.
A relação entre as análises dos custos e as capacidades de resposta estão longe de ser conclusivas. Na ausência de indicadores de qualidade valorizam-se níveis de saúde “auto-reportados”. Melhor, desvaloriza-se a ausência de dados confiáveis, ao sabor de um inexorável (?) toque a finados.
Não se conhecem que tipos de metodologias foram utilizados para a obtenção desses “níveis auto-reportados”: observacionais?, transversais?, descritivas?, entrevistas face a face estruturadas?, um sistema mix?
Perante tal vacuidade mais valia não esgrimir este argumento.
Poderá, ainda, afirmar-se que a ADSE vive, financeiramente, “encostada” ao SNS. Na realidade, os beneficiários da ADSE, são cidadãos, pagam impostos e pertencem, como é óbvio, ao universo dos portugueses. São, desde há largos anos, contribuintes líquidos para o orçamento público. Não abdicaram dos retornos sociais esperados, constitucionalmente consagrados, obrigação do Estado. Mais uma vez interessa reafirmar que não fizeram, como ninguém em bom juízo fará, “opting out” do SNS.

Mas a gritante “desigualdade” em relação a um serviço universal, equitativo e tendencialmente gratuito, reside num simples facto. Os beneficiários da ADSE subsidiam, directamente, o seu subsistema, através de contribuições que incidem sobre os seus rendimentos (1.5% para os activos, e por ora, 1% para os aposentados). Não fogem, nem podem fugir, a esta contribuição. São, portanto, cidadãos que funcionalmente integram o SNS, estão á margem da mitigada (ou tendencial) gratuitidade do SNS. É verdade que este contributo é largamente insuficiente para manter este pesado sistema em funcionamento. Mas ninguém pode negar, ou desvalorizar, a existência de um “auto-financiamento”, mesmo que deficitário.
Segundo se depreende a ADSE apresentará (?) níveis de gastos inferiores à capitação do SNS. Estes são, desde logo, “ensombrados” por projecções futuras (envelhecimento da população, volume de aposentados, etc.), como se estes problemas não fossem questões transversais a todos os sistemas (excepto das seguradoras privadas que fogem deles). As previsões de aumentos de custos servem, aqui e agora, como arma de arremesso contra a ADSE, mas não têm especificidade. Poderiam ser usados contra qualquer sistema. E logo se levanta, para a ADSE, um inquietante dilema: terá capacidade de resposta perante as projecções evolutivas desenhadas?

Finalmente, o relatório levanta sérias dúvidas (prévias) sobre medidas recentemente tomadas pela ADSE no sentido de controlar o aumento da despesa, aumentar as receitas, e melhorar a gestão. É sua a missão determinista: não acreditar!
Tecnicamente, a comissão prefere sugerir o seu fim e a sua integração no SNS em nome da reposição da equidade perdida.
Quais as consequências da transformação de ≈ 1 milhão e trezentos mil beneficiários directos e indirectos da ADSE, em utentes a “tempo inteiro” do SNS?
Sem falarmos em custos - deixariam de cobrar os tais 1,5% nas remunerações dos funcionários públicos - em que medida a acessibilidade no SNS viria a ser afectada?

Creio que, algumas das questões, muitas das interrogações, ficarão para um sequencial descongelamento, desmentido por ora pelo MS mas, segundo tudo leva a crer, tecnicamente programado para a próxima legislatura.

Nova declaração de interesses: sou beneficiário da ADSE.
É-Pá

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