terça-feira, julho 3

Mutilar a história

Circula pela Net um texto de Paulo Mendo link, antigo ministro da saúde do PSD, que sob o pretexto de defesa do Serviço Nacional de Saúde (SNS) consegue várias coisas contraditórias: descrever a gestação do SNS e a transição relativamente suave que houve entre o caetanismo e o pósrevolução, com razoável respeito pelos factos; induzir os leitores na interpretação casuística de que foram os médicos que criaram o SNS, o que só em parte procede; nomear um inimigo não identificável, que “ataca à bruta e às claras o SNS”; culpabilizar os governos socialistas de tudo o que de mau ocorreu na Saúde (isentando Arnaut, já entronizado no altar da pátria); elogiar Paulo Macedo, mas acusar os cortes brutais de 1 milhão de euros; finalmente, apresentar-se como paladino do SNS e seu permanente e inquebrantável defensor. Ataca quase tudo o que os socialistas fizeram ou apoiaram, de reconhecidamente bom: os hospitais EPE, as parcerias público privadas (PPP), as concentrações em centros hospitalares, os cuidados continuados e até as USF. Mendo foi um afável, bem pensante e bem falante governante, incapaz de vencer os obstáculos mais duros, nas três vezes que passou pelo Governo, desistindo depressa e sobretudo cedendo, a gosto ou a contragosto, às forças políticas que o apoiavam, gerando situações que os posteriores tiveram sempre que desembrulhar. Mas sobretudo, Mendo omitiu o seu pouco conhecido mas infelizmente decisivo papel, quando Secretário de Estado da Saúde, na única tentativa legislativa de destruição do SNS.
Não se contesta a descrição que Mendo faz, da criação do SNS, do papel importante e percursor que nela teve o Relatório sobre as Carreiras Médicas liderado pela Ordem dos Médicos de então e em que participaram Miller Guerra, António Galhordas, Mário Mendes, Albino Aroso, Paulo Mendo e outros que a história não pode esquecer. Mas se as ideias do SNS eram adoptadas pela classe médica de esquerda, as soluções institucionais só surgiram com os dirigentes dos serviços centrais do ministério: as carreiras hospitalares e a valorização do hospital público, em 1968 (Coriolano Ferreira), a responsabilidade pública pela saúde, a reorganização do ministério e a valorização dos cuidados de saúde primários, em 1971 (Gonçalves Ferreira e Arnaldo Sampaio). Mendo, acertadamente, menciona essa confluência de opiniões. Mas sem a mudança política gerada pelos militares de Abril, o SNS não teria sido possível. E a glória de Arnaut residiu em ter sido ele a lutar, primeiro no Governo e depois no Parlamento, pela legislação habilitante. A solução escolhida foi pouco elaborada, confundindo o ministério com o SNS. A tentativa do governo Pintasilgo de regulamentar a lei de bases só parcialmente surtiu. A criação, logo em 1979, das três carreiras médicas foi revogada pelo governo da AD e reposta, em 1982, pela mão de Paulo Mendo, ex-governante do PS em 1977, migrando para a AD pouco depois de 1980. Fica a seu crédito. Mas também a seu débito deve contar-se a derrota que sofreu com as Finanças, levando à criação de carreiras de médicos-funcionários de ordenado fixo, na origem das muitas ineficiências do sistema, impotente para fazer aceitar um sistema de incentivos na prestação pública que fixasse médicos a hospitais e centros de saúde. Tal como a permissividade de criação dos Serviços de Atendimento Permanente (SAP), verdadeiro atentado à personalização da medicina familiar e factor de desperdício em medicamentos e redundância em actos desnecessários.
Mendo ataca grosseiramente Maria de Belém acusando-a de muitos males sem os definir. Mas vale a pena dizer que, em Maio de 1995, quando tudo valia para ganhar as eleições de Outubro que derrotaram Cavaco, Mendo decidiu que a medicina privada em qualquer lugar e sistema pudesse prescrever medicamentos comparticipados pelo SNS. A partir desta medida, o controlo dos gastos públicos em medicamentos passou a ser impossível; nela radicam fraudes que chegam, volumosas, aos dias de hoje.
Mendo ataca as parcerias com o sector privado, mas foi ele que lhes abriu a porta, ao deixar a Maria de Belém um contrato já firmado com o primeiro hospital público de gestão privada, o de Amadora-Sintra, impossível de recusar ao novo governo.
Mendo ataca o Governo actual (mas desculpa o ministro) de estar a poupar na despesa da Saúde, sapando as bases de um SNS com impecável registo de resultados. Ataca a contratação maciça de médicos assalariados, e a correspondente destruição das carreiras e das suas garantias de qualidade. Tem toda a razão aí. Mas não se entende por que esteja a ilibar os culpados e a culpar os antecedentes. Estamos perante a fábula do lobo e do cordeiro, só faltando acusar Sócrates de todos esses males. Desfere ataques a torto e a direito a hospitaisempresa, esquecendo tudo o que ao longo da vida foi a favor dessa solução. Ataca as PPP sem qualquer conhecimento de causa, à boleia das rodoviárias, omitindo o rigor contratual que preside aos cinco contratos hospitalares em vigor, obra dos socialistas. Ataca os centros hospitalares, convencido de que ainda vivemos na abundância que o levou a praticar a dispersão e o desperdício, comprometendo-se com pesados investimentos públicos em hospitais distritais controversos com financiamento recusado pelos fundos comunitários. Ataca os cuidados continuados por centralizados (como poderia ser de outra forma o seu lançamento?), as USF por estarem a burocratizar-se (como retribuir o bom desempenho sem registos correctos?).
Mas o que não se pode tolerar a Mendo é o esquecimento da sua responsabilidade na tentativa de revogação, em legislação ordinária, (Decreto-Lei 254/82, de 29 de Junho, artigo 17.º) da maior parte da Lei de Bases do SNS de 1979, traduzindo-se na extinção do SNS. A tentativa não passou: foi frustrada pelo Tribunal Constitucional (acórdão 39/84, de 11 de Abril) que declarou a inconstitucionalidade do referido artigo 17.º, repristinando, isto é, repondo em vigor, a lei de Bases de 1979.
A avaliar pela sua actual profissão de fé no SNS, Mendo deve estar pesadamente arrependido de ter sido um dos autores, ou promotor, ou pelo menos consentidor, daquele triste e execrável acto.
Deixo para o final a declaração de interesses. Como é sabido, defendi sempre o SNS. Mas nunca o congelei na sua formulação originária, pois sempre entendi que ele deve ser modernizado. Isso me distingue, entre outros, de socialistas ilustres, como Arnaut e Alegre. Continuo pronto para esse debate. Pela primeira vez estou aqui a criticar um antecessor e a defender uma antecessora das injustiças de opinião do primeiro o qual, para além do apreço que merece, tenho a reconhecer que se esqueceu da história. Faço-o de cabeça erguida e sem reservas. A minha simpatia para com Paulo Mendo e tantos outros conhecidos e anónimos defensores do SNS obriga-me a ser rigoroso e a manifestar o meu desagrado sem ambiguidades
António Correia de Campos, JP 02.07.12

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