terça-feira, julho 3

Não é possível cortar mais no SNS


António Sarmento, professor catedrático da Faculdade de Medicina do Porto e consultor da Ordem dos Médicos, sublinha que Portugal gasta muito menos em saúde do que outros países da Europa e defende que já não é possível cortar mais no Serviço Nacional de Saúde

Concorda com as medidas que têm sido adoptadas? Os cortes parecem-lhe adequados?
Por vezes é muito difícil cortar desperdícios sem cortar outras coisas que não o são e que podem ser importantes, por melhor que seja a nossa intenção. Acredito que este ministro da Saúde é uma pessoa com boa vontade, e sério e está bem intencionado. Mas devemos medir os resultados das opções que tomamos e, se forem maus, é necessário corrigir.
[Quanto aos cortes], é como tirar um tumor. Quando tiro um tumor a um doente, não consigo tirar só o tecido maligno, se calhar vou tirar também algum tecido bom à volta. Mas, se tiro de mais, mato o doente. Nos já cortámos muito. E gastamos muito menos em saúde por habitante do que gastam outros países da Europa. Penso até que, com pouco, fazemos muito.

Quais são as alternativas, então?
Cortar mais noutras áreas, menos importantes. Se eu tiver um ferimento grave e começar a sangrar, todo o organismo vai privar-se do sangue para o desviar para os órgãos vitais, coração e o cérebro, adiando a morte, dando tempo a que se consiga parar a hemorragia. Se estivermos à espera que a crise passe, mas não deixarmos desmantelar uma coisa que era boa, se calhar vamos ter que desviar muito do outro lado para manter o SNS a funcionar. Os governos têm de definir prioridades. O impacto humano de reduzir 20% na saúde é muito maior do que, por exemplo, nos numerosos institutos públicos. Como cidadão, preferia que reduzissem 30% nas novas estradas do que no SNS.
O ministro diz que não tem a certeza de que o SNS é sustentável. A preocupação tem-se centrado sobretudo nos indicadores financeiros... É necessário fazer a monitorização continua de vários índices de qualidade. Não só a mortalidade, mas também a morbilidade, o absentismo, o número de dias de doença. Isto deve ser feito com rigor e agora é mais importante do que nunca. É fulcral ter a noção [do que se esta a passar] com uma base cientifica rigorosa.

Os cortes estão a afectar o acesso e a qualidade assistencial?
O trabalho, agora, é muito mais penoso e mais difícil do que há dois anos. A nossa preparação é para tratar doentes, mas perdemos cada vez mais tempo a tratar de coisas que podiam ser feitas por outras pessoas.
Há muita papelada. Quando há pouco dinheiro, multiplicam-se os circuitos para haver mais vigilância. É-nos, por exemplo, mais difícil dar alta [aos doentes]. Com a diminuição das verbas, é muito mais difícil, há cada vez menos instituições de acolhimento.

A crise pode afectar o SNS de forma significativa?
Os valores da profissão médica não podem andar ao sabor das crises. Há três princípios fundamentais em que assenta a profissão médica: a primazia do interesse do doente, o respeito pela sua autonomia e a justiça distributiva. Para proteger os doentes dos efeitos da crise é preciso manter intocáveis os princípios fundamentais da nossa profissão. Destaco, a propósito, a importância de um movimento que surgiu há alguns anos e que levou a elaboração de um documento chamado Carta do Profissionalismo Médico. Neste, são reafirmados os valores essenciais da profissão que não deverão ser afectados por nenhuma das grandes alterações económicas, sociais e politicas ocorridas nos últimos anos. Também é necessário apostar na motivação, no estimulo, na preparação técnica. Porque ninguém consegue fazer uma coisa que muitas vezes transcende os seus próprios interesses sem motivação. Não é uma questão de dinheiro. É de reconhecimento, de condições de dignidade para tratar os doentes. Nos hospitais os dramas são tão grandes que precisamos de paz.

A paz está posta em causa?
Está, mas também está nas nossas mãos mantê-la. Sempre que se desinveste nos sistemas sanitários, as catástrofes não demoram a ocorrer. No fim da União Soviética, quando desinvestiu no controlo sanitário, as consequências fizeram-se sentir rapidamente. A difteria [quase inexistente] passou a ocorrer com dezenas de milhares de casos anuais. A Ucrânia era a zona mais rica da ex-União Soviética e em poucos anos os ucranianos tiveram que emigrar para o resto da Europa. Conheci um médico ucraniano que trabalhou como operário na Casa da Musica para sustentar a família. Portanto, tudo é possível.

Ainda é possível cortar mais no SNS?
Não me parece que seja possível cortar mais. Se se tiver que cortar mais, que se corte noutras áreas. Aqui [no SNS], já não vejo por onde.

Não acha demagógico o ministro dizer que é possível fazer cortes sem afectar a qualidade?
Acho que a diminuição do financiamento é perigosa, mas, para dizer que já teve consequências, tinha que fazer a tal monitorização. Agora, havendo menos dinheiro, há menos qualidade. Sem dinheiro, fazem-se menos coisas. Havia luxos? Havia. Havia desperdícios? Havia. Mas isto é difícil de gerir.

Há mais dificuldades actualmente no acesso ao SNS?
Acho que sim. As barreiras burocráticas administrativas são maiores. Não sei se a monitorização da qualidade dos cuidados de saúde está a ser feita ou não com rigor. Por outro lado, o dinheiro escasseia em tudo e é evidente que isto tem repercussões. Não temos dúvida que pouco dinheiro é pior saúde.

Como ex-presidente do Colégio da Especialidade de Infeccciologia da Ordem dos Médicos, o que pensa da central de compras organizada por 14 hospitais do Norte para comprar medicamentos em bloco?
Uma central de compras é uma ideia óptima. Mas não pode haver um acesso a medicamentos diferente no Norte e no Sul do pais, temos que ter politicas nacionais. O que não é aceitável é a falta de equidade.

Os medicamentos escolhidos são os mais adequados?
Qualquer lista que tenha limitação de fármacos ou que apresente propostas terapêuticas tem que ter anexa uma fundamentação cientifica sólida e os seus autores devem estar claramente identificados. Na lista a que tive acesso, e que me foi enviada pela Ordem dos Médicos, os requisitos fundamentais que acabei de referir não existiam.

Entrevista de Alexandra Campos, JP 02.07.12

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