Toca a Reunir
RESPOSTAS A UMA CARTA-ABERTA
As respostas à minha carta-aberta da semana passada foram surpreendentes. Desde comovidos aplausos a silêncios prudentes, desde críticas arrasadoras a correcções pontuais, aconteceu tudo. Para além dos leitores de A Capital, que felizmente estão a aumentar, as citações do meu texto no Público provocaram um interesse que o texto não merecia. Volto à carta, por uma única razão: quis desabafar com os meus leitores e levar alguns deles a observar uma realidade que me parece cada vez mais chocante. Não, não é verdade que a coluna tivesse intuitos paternalistas, género «recomendações aos jovens de alguém com mais experiência da vida». Já festejei as bodas de prata do meu trabalho com gente mais nova, em diversos contextos, desde o clínico ao de intervenção social, tenho a certeza de que não lhes quero dar conselhos. Desejo apenas, com toda a energia que possuo, construir com eles um país onde as pessoas não tenham vergonha de se entreolhar. E por isso eu digo: a continuarmos assim, com este "governo" que nos deve inquietar, ficaremos com crescente mal-estar, ou teremos de fingir e aliviar para canto, como se diz no futebol. Quando o senhor ministro Morais Sarmento diz que está a rasgar novas fronteiras com estes dois últimos governos, ocorrem-me duas ideias: em primeiro lugar, sinto que os limites fronteiriços devem ser muito próximos, porque logo li o El País e não vi nenhum entusiasmo em Espanha; em segundo lugar, apeteceu-me pedir ao eng. Sócrates para mudar o nome dos novos Estados Gerais, porque para confusões já basta assim. Verdadeiramente o que me interessou na minha crónica/carta da semana passada foi alertar para sinais inquietantes da mudança que o "governo" quer pôr em prática, e que podem escapar aos menos atentos (onde podem, eventualmente, estar alguns jovens). Parecem mudanças pouco intensas, mas que são carregadas de significado.
Vejamos alguns exemplos: O Serviço Nacional de Saúde deverá passar a ser designado por Sistema Nacional de Saúde - parece a mesma coisa, mas não é. O Serviço pressupõe a organização de uma rede de cuidados a toda a população, independentemente da sua condição social, devendo, portanto, ser gratuito; o Sistema engloba um conjunto de serviços, da mais diversa índole, em que a componente economicista do lucro pode ser a dominante. A independência dos media é afirmada, nem pode ser de outra forma numa democracia (exclama o "governo"), mas logo se introduz a ideia de limites à independência, ou de contenção nos comentários. Fala-se de combate à evasão fiscal, e todos concordamos, mas nada de significativo se vislumbra para derrotar os grandes fugitivos, que todos sabemos quem são. E de caminho critica-se a metadona e a despenalização do consumo da droga e insinua-se que o mal vem das visitas aos presos, para ao mesmo tempo se sugerir que os professores podem passar a ajudar os juízes, esquecendo que a principal causa do stress no pessoal docente é justamente a perda da sua identidade. Meus amigos, é mesmo hora de tocar a reunir.
Vejamos alguns exemplos: O Serviço Nacional de Saúde deverá passar a ser designado por Sistema Nacional de Saúde - parece a mesma coisa, mas não é. O Serviço pressupõe a organização de uma rede de cuidados a toda a população, independentemente da sua condição social, devendo, portanto, ser gratuito; o Sistema engloba um conjunto de serviços, da mais diversa índole, em que a componente economicista do lucro pode ser a dominante. A independência dos media é afirmada, nem pode ser de outra forma numa democracia (exclama o "governo"), mas logo se introduz a ideia de limites à independência, ou de contenção nos comentários. Fala-se de combate à evasão fiscal, e todos concordamos, mas nada de significativo se vislumbra para derrotar os grandes fugitivos, que todos sabemos quem são. E de caminho critica-se a metadona e a despenalização do consumo da droga e insinua-se que o mal vem das visitas aos presos, para ao mesmo tempo se sugerir que os professores podem passar a ajudar os juízes, esquecendo que a principal causa do stress no pessoal docente é justamente a perda da sua identidade. Meus amigos, é mesmo hora de tocar a reunir.
Meus Amigos: Confio em vocês. Sou a favor do fosso intergeracional e adoro que os mais novos não concordem com os mais velhos. As sociedades avançam por rupturas, as famílias crescem emocionalmente quando se confrontam sem se afrontarem. Cresci numa família democrática. Os meus pais estimulavam a discussão com os dois filhos e não se importavam de gastar horas a defender os seus pontos de vista. Foi assim que aos 12 anos comecei a entender a democracia, quando o meu irmão, sete anos mais velho, me explicou Humberto Delgado. Não quero recordar-vos Salazar e Caetano. Sei que isso está fora do nosso (meu e vosso) tempo. Apenas quero reivindicar uma coisa: os corajosos da minha geração fizeram o 25 de Abril de 1974 para que vocês, geração dos meus filhos, crescessem em liberdade. Quando digo a alguém da vossa idade que, há trinta anos, não se podia dizer tudo o que apetecia, quase não acreditam. Compreendo: viveram a poder exclamar o amor e a saudade, a ternura e a raiva. Quando queriam, puderam romper, sem medo, com tudo com que não concordavam. É por isso que peço para estarem muito atentos. Não uso frases do passado, género «fascismo, nunca mais» ou «a democracia está em perigo». Não é verdade, e são expressões que vos causam tédio. Quero apenas dizer-vos que, se não ousarem, falharão no essencial: deixarão de construir uma sociedade melhor para os vossos filhos (nesse aspecto, os «velhos» não falharam, vive-se hoje bem melhor do que na juventude dos meus pais). Pois bem: vejam o "governo" da República. Portugal transformou-se no paraíso dos humoristas. Existem tantas graças sobre os nossos "governantes", que se atropelam nas cabeças dos criativos de humor. E se tantas vezes não sabemos se a «Sit Down Comedy» de Luís Filipe Borges, neste jornal, ou as páginas do Inimigo Público são notícias a brincar ou descrições realistas, a verdade é que nos assalta a certeza de que Portugal vai mal. Nesta semana vi estudantes espancados e a levar com gás, como era habitual no meu tempo, mas julgava impossível no vosso tempo; ouvi o director-geral das Prisões a propor a redução das visitas aos presos, para melhorar o problema da droga no sistema prisional; e indignei-me com o ministro da Presidência a falar dos limites à independência, a propósito da televisão pública. Se deixarmos estes factos sem protesto, o risível "governo" que temos proporá mais: voltarão os jactos de tinta e mais prisões sobre estudantes; serão definitivamente proibidas as visitas aos presos, e o problema da droga no sistema será resolvido; os directores de programação das televisões e os directores de alguns jornais reportarão directamente ao ministro da tutela; o insucesso escolar acabará, graças a um despacho da prof. Maria do Carmo Seabra: todos os alunos com duas negativas no Natal serão automaticamente expulsos da escola. E o "governo" continuará a sorrir, centenas de conselheiros de imagem ajeitarão as gravatas dos ministros e o cabelo das ministras, todos dirão que tudo vai bem. Sei que vocês não aguentarão mais. Ouço-vos em toda a parte, por enquanto em surdina, em breve até que a voz vos doa. E por isso vos peço: ajudem a derrubar este governo. Pela verdade e dignidade da vossa geração. Para que, tal como os vossos pais quando contaram 1974, possam dizer aos vossos filhos: sabes, fizemos um segundo 25 de Abril, só com arte e coragem, e o governo foi--se embora. Com toda a v(n)ossa força
Daniel Sampaio
Publicado no Jornal A Capital
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