Acesso aos cuidados de saúde
Começa a ser um inferno.
É preciso levantar cedo e apanhar a camioneta. É preciso viajar uma hora e meia até Odemira. E depois é preciso subir o morro devagarinho, já que o centro de saúde se encontra bem lá no alto e é onde funciona o serviço de urgência. De outra maneira, Maria Helena Gonçalves, de 62 anos, residente em S. Martinho das Amoreiras, pequena localidade nos arredores de Odemira, não será observada pelo médico. É que lá não há centro de saúde, só há médico de oito em oito dias, às quintas-feiras, quando vai dar consulta num lar de idosos, em São Teotónio. Quem quiser aproveitar, tem é de pagar. Mas hoje não é quinta-feira. E Helena sente-se doente.
Na sala de espera do serviço de urgência do Centro de Saúde de Odemira, aguarda pela sua vez de ser atendida. Mas à sua frente tem dois doentes mais urgentes, um com suspeita de enfarte, outro com suspeita de AVC. Os dois médicos de serviço estão ocupados em estabilizá-los. Se perder a camioneta das 13h30 para regressar a casa, só voltará a ter transporte à noite, às 19h30. Maria Helena vive de uma reforma muito pequena, não tem dinheiro para pagar táxi e o seu caso não é suficientemente grave para chamar o INEM.
Longe do atendimento médico, sem dinheiro e sem transportes, assim vivem milhares de pessoas no interior do país.
O médico Denis Pizhin, natural da Crimeia, Ucrânia, está sozinho na urgência do Centro de Saúde de Odemira. O outro médico teve de acompanhar um doente em estado crítico até ao hospital de referência da zona, o de Santiago do Cacém, a cerca de 80 quilómetros de distância.
Denis Pizhin, de 31 anos, veio da Crimeia em 2008, logo depois de se licenciar em Medicina. O estágio, já o fez cá. Hoje, é um médico "prestador de serviços", contratado através de empresas que angariam clínicos para os hospitais e, em troca, recebem percentagens.
Por hora, ganha 24 euros brutos, cerca de 15 euros líquidos, diz, com um sorriso crítico. "Quase o mesmo que uma empregada doméstica". Por dia, vê cerca de 60, 70 pessoas, a maioria com situações ligeiras, conta. Os casos mais graves, cerca de 30 por cento, calcula, vão de crises asmáticas a enfartes, que têm de seguir para o hospital de Santiago do Cacém ou para o de Beja.
Desde que veio para Portugal, Denis já aprendeu muito profissionalmente, mas também já viu muito. Já trabalhou na urgência de várias unidades de saúde no interior do Alentejo. Em Beja, onde actualmente só há "consulta aberta". Em Ferreira do Alentejo, que "já nem consulta aberta tem", em Moura. Agora, além de Odemira, presta serviço em Ponte de Sor e no distrito da Guarda.
Faltam medicamentos
Na urgência de Odemira, "há duas semanas que não há soro" habitualmente usado nos hospitais. "Temos de nos desenrascar com outros tipos de soros", diz. "Há sempre falta de medicamentos essenciais", entre os quais medicamentos para evitar os vómitos ou reagentes laboratoriais, como, por exemplo, tropomina, fundamental no diagnóstico de enfarte.
"As populações destas localidades estão evidentemente em risco", afirma o médico. "Passar férias no litoral alentejano, pode ser perigoso". No Verão, "os lisboetas que precisam de ir à urgência, dizem muitas vezes que isto parece África".
À falta de transportes públicos, soma-se o mau estado das estradas, cheias de curvas e de buracos, por onde as ambulâncias têm muitas vezes de passar para ir buscar doentes, e que também têm de percorrer para os levar para o hospital.
A falta de uma comunicação eficaz entre os centros de saúde e os hospitais e a desarticulação entre os bombeiros e o INEM são apontadas por Denis como outros factores que agravam ainda mais as dificuldades do acesso aos cuidados médicos nas zonas do interior do país. Muitas das situações revelam-se mesmo fatais, particularmente no caso de acidentes graves na estrada. Há casos de mortes que poderiam ter sido evitadas "se houvesse outra organização", diz o médico.
Como exemplo, conta o episódio que envolveu um homem, vítima de um desastre nos arredores de Odemira, que começou por ser transportado para a urgência do centro de saúde. Dali, foi transportado para Santiago do Cacém, onde foi decidido que, face à gravidade do seu estado, teria de ir para o Hospital de S. José, em Lisboa. Só lá chegou mais de oito horas após o acidente e acabou por morrer pouco tempo depois. Se tudo se tivesse processado mais rapidamente, o homem "poderia não ter morrido", afirma Denis.
Há outros casos recentes, como o de uma criança estrangeira de 22 meses que morreu no Centro de Saúde de Odemira depois de ter sido atropelada, em Agosto do ano passado. Deu ali entrada em paragem cardio-respiratória, quando lá se encontravam apenas um médico e um enfermeiro, um número de profissionais considerado "insuficiente" para prestar a assistência necessária, segundo o que então considerou a Ordem dos Enfermeiros.
Também o bastonário dos médicos, José Manuel Silva, manifestou então as suas preocupações, lembrando que, segundo a lei, a equipa de uma urgência básica deverá ter dois médicos e dois enfermeiros em presença física. É "inaceitável" - considerou - "a saída de um enfermeiro de uma forma rotineira e frequente, deixando a unidade com um elemento, número que fica abaixo dos mínimos aceitáveis".
Mas, passado quase um ano, a situação mantém-se: quando um dos enfermeiros tem de acompanhar um doente crítico, fica apenas um enfermeiro no centro.
As crescentes dificuldades de aceder aos cuidados de saúde com que se debatem muitas pessoas, sobretudo idosas que vivem em localidades do interior, é testemunhada por Pedro Rabaça, de 44 anos, enfermeiro no hospital de Portalegre que também presta serviço no INEM. Este profissional vai buscar pessoas que vivem "no fim do mundo, longe de tudo, do poder de decisão, dos técnicos". Em zonas onde "faltam especialidades médicas, meios de diagnóstico, onde não há médicos de família, não há urgências e faltam enfermeiros".
Os efeitos da redução dos transportes de doentes financiados pelo Estado já são notórios. Face a uma situação de urgência, as pessoas que vivem em "povoações muito isoladas" e cujas reformas "mal dão para comer" ou conseguem uma boleia, ou alugam um táxi ou ficam à espera de piorar para que o INEM aceite ir buscá-las sem terem de pagar, conta Pedro Rabaça. A situação é tão preocupante, diz este enfermeiro que "há idosos que estão a trocar medicamentos por produtos básicos".
Na sala de espera do serviço de urgência do Centro de Saúde de Odemira, aguarda pela sua vez de ser atendida. Mas à sua frente tem dois doentes mais urgentes, um com suspeita de enfarte, outro com suspeita de AVC. Os dois médicos de serviço estão ocupados em estabilizá-los. Se perder a camioneta das 13h30 para regressar a casa, só voltará a ter transporte à noite, às 19h30. Maria Helena vive de uma reforma muito pequena, não tem dinheiro para pagar táxi e o seu caso não é suficientemente grave para chamar o INEM.
Longe do atendimento médico, sem dinheiro e sem transportes, assim vivem milhares de pessoas no interior do país.
O médico Denis Pizhin, natural da Crimeia, Ucrânia, está sozinho na urgência do Centro de Saúde de Odemira. O outro médico teve de acompanhar um doente em estado crítico até ao hospital de referência da zona, o de Santiago do Cacém, a cerca de 80 quilómetros de distância.
Denis Pizhin, de 31 anos, veio da Crimeia em 2008, logo depois de se licenciar em Medicina. O estágio, já o fez cá. Hoje, é um médico "prestador de serviços", contratado através de empresas que angariam clínicos para os hospitais e, em troca, recebem percentagens.
Por hora, ganha 24 euros brutos, cerca de 15 euros líquidos, diz, com um sorriso crítico. "Quase o mesmo que uma empregada doméstica". Por dia, vê cerca de 60, 70 pessoas, a maioria com situações ligeiras, conta. Os casos mais graves, cerca de 30 por cento, calcula, vão de crises asmáticas a enfartes, que têm de seguir para o hospital de Santiago do Cacém ou para o de Beja.
Desde que veio para Portugal, Denis já aprendeu muito profissionalmente, mas também já viu muito. Já trabalhou na urgência de várias unidades de saúde no interior do Alentejo. Em Beja, onde actualmente só há "consulta aberta". Em Ferreira do Alentejo, que "já nem consulta aberta tem", em Moura. Agora, além de Odemira, presta serviço em Ponte de Sor e no distrito da Guarda.
Faltam medicamentos
Na urgência de Odemira, "há duas semanas que não há soro" habitualmente usado nos hospitais. "Temos de nos desenrascar com outros tipos de soros", diz. "Há sempre falta de medicamentos essenciais", entre os quais medicamentos para evitar os vómitos ou reagentes laboratoriais, como, por exemplo, tropomina, fundamental no diagnóstico de enfarte.
"As populações destas localidades estão evidentemente em risco", afirma o médico. "Passar férias no litoral alentejano, pode ser perigoso". No Verão, "os lisboetas que precisam de ir à urgência, dizem muitas vezes que isto parece África".
À falta de transportes públicos, soma-se o mau estado das estradas, cheias de curvas e de buracos, por onde as ambulâncias têm muitas vezes de passar para ir buscar doentes, e que também têm de percorrer para os levar para o hospital.
A falta de uma comunicação eficaz entre os centros de saúde e os hospitais e a desarticulação entre os bombeiros e o INEM são apontadas por Denis como outros factores que agravam ainda mais as dificuldades do acesso aos cuidados médicos nas zonas do interior do país. Muitas das situações revelam-se mesmo fatais, particularmente no caso de acidentes graves na estrada. Há casos de mortes que poderiam ter sido evitadas "se houvesse outra organização", diz o médico.
Como exemplo, conta o episódio que envolveu um homem, vítima de um desastre nos arredores de Odemira, que começou por ser transportado para a urgência do centro de saúde. Dali, foi transportado para Santiago do Cacém, onde foi decidido que, face à gravidade do seu estado, teria de ir para o Hospital de S. José, em Lisboa. Só lá chegou mais de oito horas após o acidente e acabou por morrer pouco tempo depois. Se tudo se tivesse processado mais rapidamente, o homem "poderia não ter morrido", afirma Denis.
Há outros casos recentes, como o de uma criança estrangeira de 22 meses que morreu no Centro de Saúde de Odemira depois de ter sido atropelada, em Agosto do ano passado. Deu ali entrada em paragem cardio-respiratória, quando lá se encontravam apenas um médico e um enfermeiro, um número de profissionais considerado "insuficiente" para prestar a assistência necessária, segundo o que então considerou a Ordem dos Enfermeiros.
Também o bastonário dos médicos, José Manuel Silva, manifestou então as suas preocupações, lembrando que, segundo a lei, a equipa de uma urgência básica deverá ter dois médicos e dois enfermeiros em presença física. É "inaceitável" - considerou - "a saída de um enfermeiro de uma forma rotineira e frequente, deixando a unidade com um elemento, número que fica abaixo dos mínimos aceitáveis".
Mas, passado quase um ano, a situação mantém-se: quando um dos enfermeiros tem de acompanhar um doente crítico, fica apenas um enfermeiro no centro.
As crescentes dificuldades de aceder aos cuidados de saúde com que se debatem muitas pessoas, sobretudo idosas que vivem em localidades do interior, é testemunhada por Pedro Rabaça, de 44 anos, enfermeiro no hospital de Portalegre que também presta serviço no INEM. Este profissional vai buscar pessoas que vivem "no fim do mundo, longe de tudo, do poder de decisão, dos técnicos". Em zonas onde "faltam especialidades médicas, meios de diagnóstico, onde não há médicos de família, não há urgências e faltam enfermeiros".
Os efeitos da redução dos transportes de doentes financiados pelo Estado já são notórios. Face a uma situação de urgência, as pessoas que vivem em "povoações muito isoladas" e cujas reformas "mal dão para comer" ou conseguem uma boleia, ou alugam um táxi ou ficam à espera de piorar para que o INEM aceite ir buscá-las sem terem de pagar, conta Pedro Rabaça. A situação é tão preocupante, diz este enfermeiro que "há idosos que estão a trocar medicamentos por produtos básicos".
reportagem de Paula Torres de Carvalho, JP 20.03.12
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