sábado, julho 7

José Manuel Silva

Há ano e meio à frente da Ordem dos Médicos, José Manuel Silva, 52 anos, tem assumido a primeira linha da contestação às políticas do Governo no sector da Saúde. Acusa o actual elenco de estar a tomar "decisões particularmente gravosas" que põem em causa o Serviço Nacional de Saúde. E aliou-se aos sindicatos na mobilização para a greve de dois dias na próxima semana, a primeira em muitos anos no sector. A paciência, avisa, esgotou-se.
Por que decidiu a Ordem dos Médicos participar activamente na mobilização para a greve da próxima semana?
Perante a decisão dos sindicatos, a Ordem poderia alhear-se ou dar atenção ao processo. E nós consideramos que o momento da Saúde em Portugal é tão grave que tínhamos a obrigação de, no cumprimento das funções delegadas pelo Estado, defender a qualidade do Serviço Nacional de Saúde [SNS] e da prestação de cuidados aos doentes.
Mas essa não é uma competência dos sindicatos?
Todas as organizações médicas estão envolvidas e não há nenhuma que não tenha manifestado a sua adesão à greve. A Ordem, por ter uma visibilidade diferente, tem apenas mais impacto público.
O que está a levar hoje ao descontentamento dos médicos?
Penso que as últimas notícias sobre a contratação de enfermeiros e nutricionistas permitem perceber com mais facilidade o que se está a passar, e que é um dos aspectos que motivaram a convocação da greve pelos sindicatos. É apenas um, num total de 19: o primeiro é a defesa do SNS e da qualidade da medicina portuguesa. Mas se contratarmos profissionais de saúde com um vencimento inferior ao de uma empregada doméstica, toda a gente percebe que assim é impossível manter a qualidade do SNS.
Os portugueses já têm dificuldade de acesso aos médicos e estes estão a emigrar. E obviamente que medidas como a desvalorização dos salários só vão aumentar o fluxo migratório dos médicos. Estamos a falar de técnicos altamente especializados, e outros países europeus têm vindo a Portugal activamente contratar médicos portugueses. É um erro estratégico em termos económicos e de saúde. É preciso criar condições aos profissionais de saúde para se fixarem em Portugal e servirem os doentes portugueses. E isto não está a acontecer com este Governo.
Sabe quantos já emigraram?
Não temos estatísticas, mas estão a emigrar às dezenas. E cada vez mais. Os jovens que estão a terminar os cursos começam a procurar activamente vias profissionais na Europa, Estados Unidos, Austrália, Canadá, até para fazerem a especialidade. Esta era uma realidade que não acontecia, excepto em situações pontuais. E agora está-se a transformar numa realidade diária.
Na actual conjuntura do país, acha que o Governo pode dar outras condições aos médicos?
Temos de definir qual a estratégia que queremos para o país. Se queremos uma desvalorização salarial excepcional, que vai pôr em causa as condições de trabalho e obrigar os jovens a emigrar cada vez mais, ou se as opções devem ser outras. Tal como muitos disseram há um ano, a estratégia baseada na desvalorização salarial e no aumento de impostos só conduz ao desastre.
Qual era a alternativa?
Temos de mudar a estratégia do país. E eu ainda não vi a cultura de governação que levou o país à bancarrota ser modificada. Temos agora alguns pequenos processos de combate à fraude e à corrupção, mas a verdadeira fraude, e a promiscuidade entre economia, política e banca, nada disso foi modificado. Os factores que nos levaram à situação actual claramente não foram corrigidos. A sociedade portuguesa tem de se mobilizar.
Os profissionais de saúde - e, em particular, os médicos - aceitaram tudo o que o Governo fez durante um ano. Os cortes salariais, as reduções das horas extraordinárias, a suspensão dos subsídios, aceitaram tudo o que foi sendo imposto em conjunto com outros cidadãos, particularmente os funcionários públicos. Mas julgo que houve aqui alguma confusão por parte do Governo, que confundiu a vontade de diálogo e consenso com inércia e apatia. Ultrapassou limites absolutamente intoleráveis e continua a tomar decisões erradas e particularmente gravosas.
Há a ideia de que concentrar poupa. Um exemplo: transferiram 220 doentes com VIH do Hospital de Torres Novas para Santarém. Estes doentes fazem cerca de cinco consultas, em média, por ano. São 45 quilómetros de ida e volta, o que dá mais de cem mil quilómetros para o total destes doentes, sem qualquer benefício para o Estado e afastando os cidadãos dos recursos médicos.
Ninguém faz estas contas? Temos um ministro licenciado em Organização e Gestão de Empresas e não sabe fazer contas? Faz algum sentido esta medida? Das duas, uma: ou estas medidas traduzem uma inconsciência e um desconhecimento colossal do que é a saúde ou então são deliberadas. Eu parto do princípio de que as pessoas que as tomam são inteligentes...
O secretário de Estado adjunto e da Saúde já manifestou a esperança de que a greve fosse desconvocada, depois das alterações às regras dos concursos...
Uma alteração cosmética. Reduz-se o número de horas e introduz-se um critério difuso de qualidade. E mantém-se o critério do preço mais baixo sem limite inferior, coisa que também havia no concurso dos enfermeiros. Este concurso permite contratar médicos a três euros à hora. Um dos maiores erros feitos no SNS pelo [ex-ministro da Saúde] Dr. Correia de Campos foi ter generalizado a prática de contratação de mão-de-obra médica através de empresas. Ainda hoje estamos a sofrer as consequências.
E não se podia fazer isso impondo limites mínimos?
E o que acontece à qualidade, se o critério é o do preço mais baixo? Estamos a brincar com coisas sérias. Não posso aceitar que o ministério esteja a praticar dumping activamente. E acho que dumping é crime, não é?
Todos os ministros da Saúde dizem que o salário-base de um médico é baixo. Sabe quanto é que um especialista ganha à hora? Pela tabela de 2010, e os preços já desceram, 12 euros brutos, o que dá, em termos líquidos, cerca de seis euros. Isso é uma fortuna? Não me parece. O que seria aceitável era que o ministério estabelecesse o valor mínimo pelo preço que é pago na função pública, sem exclusividade, respeitando os diferentes patamares de graduação.
O ministro já assumiu que estava incomodado...
E ninguém lhe perguntou por que é que não se incomodou antes de lançar o concurso? Se está incomodado, demita o responsável que o lançou...
As alterações anunciadas não justificam, portanto, a desconvocação da greve?
Quem decide isso são os sindicatos. Na minha opinião de trabalhador médico, não justificam minimamente. Nós estamos numa situação de emergência médica e o ministro da Saúde está a querer tratar uma emergência gota a gota. Uma situação de emergência precisa de uma terapêutica intensiva. Não parece haver vontade de evitar este movimento, que a cada minuto que passa se vai tornando cada vez mais irreversível.
A greve vai mudar alguma coisa?
É imprevisível. Mudar está nas mãos do Governo, mas não parece haver grande vontade de que as coisas mudem efectivamente. Quando olhamos para este ministério, acho que todos os cidadãos devem estar profundamente preocupados.

entrevista de João d"Espiney, JP 07.07.12

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