sexta-feira, outubro 5

O dia em que deixámos de ter Governo


Parece que a realidade, a dimensão concreta da vida, deixou de interessar a quem governa. Mais do que isso, parece que o Governo detesta a realidade. O que importa a economia, que é, relembre-se, o sistema pelo qual se produz riqueza, se cria emprego e se gera bem-estar? O que importam as empresas e os bens e serviços que elas produzem e que fazem parte da provisão que é preciso assegurar? O que importa o dia de amanhã, que é sempre o motivo forte para nos motivarmos e fazermos o teste da justificação dos nossos esforços? O que importam as pessoas e as ideias de justiça?
Na série de terror em que se tornou a economia política da austeridade, cada capítulo fulmina e devasta mais do que o anterior. A terra queimada alastra através da escolha fria das vítimas, sempre as mesmas vítimas. Ousou-se, com a proposta sobre a TSU, fazer a mais violenta das engenharias sociais: tirar dos bolsos de uns para pôr nos de outros. Agora insiste-se no habitual: punir, punir violentamente, os rendimentos do trabalho. E não há um vislumbre de pensamento sobre o óbvio: é com estes rendimentos que a economia funciona, que as empresas têm oportunidades, que há um mínimo de ar para respirar.
Recessão, depressão, injustiça, frieza, minagem da vida colectiva  eis o mundo que o Governo nos propõe. Não pode ser! Há mais capacidades em Portugal do que esta pouca sabedoria em que a obsessão ideológica do Governo cristalizou. Há compromissos a fazer. Compromissos positivos.
Saberá o Governo que um compromisso de salvaguarda dos rendimentos sociais e da dignidade do trabalho é a condição elementar para relançar a economia? O Governo que anteontem iniciou uma reestruturação frouxa da dívida, modificando os prazos, é capaz de ter clarividência para saber que nunca pagará as dívidas com este caminho sufocante e de ter vigor para negociar uma reestruturação saudável? O Governo é capaz de construir o mínimo alinhamento político positivo na Europa? O Governo entenderá, mesmo que isso não lhe esteja na massa do sangue, que o desamparo das pessoas, de tantas que ficaram gravemente fragilizadas, não é apenas um ato de solidariedade, é outra das condições para reavivar a economia e a sociedade e que, por isso, o Estado Social não pode estar debaixo de fogo?
Não, o Governo não é capaz de responder a nenhuma destas perguntas. Quem não o soubesse já, sabe-o, definitivamente, desde anteontem. Mas há neste país quem saiba responder a isto e ampliar as respostas. São forças sociais e políticas, são organizações e movimentos é, em suma, um povo que se revelou capaz e consciente.
Não sei qual foi o dia em que deixámos de ter Governo. Se não foi antes, foi certamente no dia da última comunicação de Vítor Gaspar.
José Reis, JP 05.10,12

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