O dia em que deixámos de ter Governo
Parece que a realidade, a dimensão concreta da vida, deixou
de interessar a quem governa. Mais do que isso, parece que o Governo detesta a
realidade. O que importa a economia, que é, relembre-se, o sistema pelo qual se
produz riqueza, se cria emprego e se gera bem-estar? O que importam as empresas
e os bens e serviços que elas produzem e que fazem parte da provisão que é
preciso assegurar? O que importa o dia de amanhã, que é sempre o motivo forte
para nos motivarmos e fazermos o teste da justificação dos nossos esforços? O
que importam as pessoas e as ideias de justiça?
Na série de terror em que se tornou a economia política da
austeridade, cada capítulo fulmina e devasta mais do que o anterior. A terra
queimada alastra através da escolha fria das vítimas, sempre as mesmas vítimas.
Ousou-se, com a proposta sobre a TSU, fazer a mais violenta das engenharias
sociais: tirar dos bolsos de uns para pôr nos de outros. Agora insiste-se no
habitual: punir, punir violentamente, os rendimentos do trabalho. E não há um
vislumbre de pensamento sobre o óbvio: é com estes rendimentos que a economia
funciona, que as empresas têm oportunidades, que há um mínimo de ar para
respirar.
Recessão, depressão, injustiça, frieza, minagem da vida colectiva eis o mundo que o Governo nos propõe. Não pode ser! Há mais
capacidades em Portugal do que esta pouca sabedoria em que a obsessão
ideológica do Governo cristalizou. Há compromissos a fazer. Compromissos
positivos.
Saberá o Governo que um compromisso de salvaguarda dos
rendimentos sociais e da dignidade do trabalho é a condição elementar para
relançar a economia? O Governo que anteontem iniciou uma reestruturação frouxa
da dívida, modificando os prazos, é capaz de ter clarividência para saber que nunca
pagará as dívidas com este caminho sufocante e de ter vigor para negociar uma
reestruturação saudável? O Governo é capaz de construir o mínimo alinhamento político
positivo na Europa? O Governo entenderá, mesmo que isso não lhe esteja na massa
do sangue, que o desamparo das pessoas, de tantas que ficaram gravemente
fragilizadas, não é apenas um ato de solidariedade, é outra das condições para
reavivar a economia e a sociedade e que, por isso, o Estado Social não pode estar
debaixo de fogo?
Não, o Governo não é capaz de responder a nenhuma destas perguntas.
Quem não o soubesse já, sabe-o, definitivamente, desde anteontem. Mas há neste
país quem saiba responder a isto e ampliar as respostas. São forças sociais e
políticas, são organizações e movimentos é, em suma, um povo que se revelou capaz
e consciente.
Não sei qual foi o dia em que deixámos de ter Governo. Se
não foi antes, foi certamente no dia da última comunicação de Vítor Gaspar.
José Reis, JP 05.10,12
Etiquetas: Um país em sofrimento
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