segunda-feira, março 4

Histórias antigas e exemplares


Vivemos tempos sombrios para a administração pública. O Governo despreza-a, considerando-a gastadora, redundante e dispensável. Poucos a defendem. As palavras do actual ministro da Saúde contra o processo de planeamento que integrou o Centro Materno-Infantil do Norte (CMIN) no Centro Hospitalar do Porto foram um pronunciamento errado e injusto contra a administração pública. link
Sou parte interessada no tema: nomeei os membros da equipa desse exercício de planeamento, delimitei-lhe as competências, apoiei-os em todas as ocasiões, e foram muitas, em que as ameaças externas ocupavam o espaço mediático e lutei por essa ideia central de dar corpo ordenado ao segundo pólo hospitalar do Porto. Ter acompanhado o assunto não me emociona, nem me tira o discernimento. Move-me à reposição da verdade e à reparação da injustiça.
Um pouco de história: na zona central do Porto, a sua notável Misericórdia tinha feito erguer um grande hospital geral central, construído de raiz, no final do século XIX. Por subscrição popular logo após a Primeira Guerra Mundial, foi construída uma maternidade, também de raiz, a que deram o nome emblemático de Júlio Diniz, professor de medicina e uma das glórias do Porto literário romântico. Por iniciativa patrocinada pela penúltima rainha, a piemontesa Maria Pia de Sabóia, em 1882 foi criada a Associação do Hospital de Crianças Maria Pia, instalada, em condições precárias, numa vivenda apalaçada na Rua da Boavista. Todos estes estabelecimentos tinham raízes urbanas autónomas e bem prestigiadas - figuras ilustres presidiam aos conselhos gerais: o engenheiro Francisco Almeida e Sousa durante anos presidiu ao Conselho Geral da Júlio Diniz; Agustina Bessa-Luís, presidiu ao do Maria Pia; Júlio Resende dispersou obra em favor deste último. A ambição lógica de reunir estes dois estabelecimentos no CMIN foi sendo construída, sabotada e sucessivamente adiada. A operação da concentração de salas de parto, retomada pelo primeiro Governo de Sócrates, facultou a janela de oportunidade que permitiu reprogramar o centro, nele integrando a maternidade e pediatria do Hospital Geral de Santo António (HGSA), onde se havia desenvolvido uma notável unidade de neonatalogia. Desta forma se constituiu o Centro Hospitalar do Norte, reunindo a Júlio Diniz, o Maria Pia e o HGSA. Por timidez minha, ficou então de fora o Hospital de Joaquim Urbano, dedicado a doenças infecto-contagiosas. Surgira em força a cirurgia de ambulatório e a hospitalização sem internamento, bem como a luta contra as doenças raras na patologia infantil diferenciada, abrindo-se espaço a uma integração que acolhesse também estes novos conceitos, num centro de dimensão controlada.
Não podia encontrar melhores executores para este projecto que os elencos da ARS do Norte chefiados, sucessivamente, por Alcindo Maciel Barbosa e Fernando Araújo. Reunindo sólida informação quantitativa, propiciando o debate com todos os envolvidos e afectados, lutando contra forças centrífugas e rivais de causa, apoiando-se politicamente no ímpeto reformador do Governo, foi-lhes possível programar, projectar e construir a nova unidade materno-infantil, dentro de um grande hospital geral, ombreando em qualidade com os serviços correspondentes do Hospital de São João, assim completando a malha de unidades de referência do Porto, da sua Área Metropolitana e da Região Norte. Fica a faltar, apenas, Vila Nova de Gaia.
Ver agora destruído um esforço bem pensado, contido em meios, exemplar nos processos e moderno no resultado, é algo que não posso deixar passar em silêncio. Como é por demais sabido, respeito Paulo Macedo. Mas não consigo compreender a ligeireza e a injustiça da sua crítica a este processo longo e de difícil gestação.
O segundo e simultâneo comentário atribuído ao ministro da Saúde consistiria na consideração como redundante do Centro de Reabilitação do Norte, face aos serviços de reabilitação de que cada hospital geral deve dispor. O centro foi criado em Francelos, Vila Nova de Gaia, em terrenos doados por um médico e lutador antifascista, o Dr. Joaquim Ferreira Alves. Foi necessário desalojar, por despejo judicial, uma organização sindical que neles se havia indevidamente instalado. Contei, então, com assinalável apoio do município respectivo. Aí, o erro ministerial é ainda mais grave: questionando-se a existência de uma unidade de referência de reabilitação para o Norte, depois de elas existirem e bem funcionarem em Lisboa e Vale do Tejo, no Centro e no Algarve, parece-me, mais do que uma grossa injustiça geográfica e populacional, uma prova de errada informação sobre a importância das unidades de referência. Encurtando razões, direi apenas que, sem unidades de referência com estatuto público, escasseia o progresso científico, tudo se resumindo à repetição das técnicas, sem adição do valor do novo conhecimento. O centro não substitui os serviços de medicina física dos hospitais da região. Apoia-os cientificamente, forma pessoal qualificado para eles e acolhe os casos mais graves e mais demorados para os quais os hospitais não têm meios nem vagas.
É necessário voltar à história da Saúde e lembrar o Dr. Santana Carlos, o primeiro director do Centro de Medicina Física e Reabilitação do Alcoitão, unidade pública propriedade da Misericórdia de Lisboa. Treinado anos a fio nos EUA, longe de casa, mas portador de uma ideia de qualidade, contra ventos e marés foi ele a grande figura inovadora naquela especialidade médica, até aí pouco desenvolvida. Não fora a sua elevada competência e a resiliência do provedor Melo e Castro e nunca teríamos a qualidade que alcançámos nessa área. O Norte tem todo o direito a semelhante processo de avanço científico.
António Correia de Campos,  JP 04.03.13

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