O Estado social como urgência
Primeiro foi a violenta austeridade, dita sem alternativa e
apresentada como a solução para tudo. O resultado foi uma crise que destrói a
economia, desfaz o emprego, abala a esperança e mina o mais substantivo dos
direitos, o de acreditar no futuro e confiar que os nossos filhos serão mais
capazes e mais felizes que nós próprios. Quiseram-nos individualmente pobres e
pobres nos têm.
Agora, a violência redobra. Querem-nos coletivamente pobres.
Anseiam destruir o Estado. Não o Estado que os poderosos sempre usaram ao
serviço dos seus interesses, mas o Estado social: o da ação redistributiva, o
que acode aos mais frágeis, o que qualifica com educação, ciência, saúde ou
Segurança Social, o que desenvolve a cidadania, porque é um Estado de direito e
de direitos, o que organiza e moderniza com uma administração pública
competente, o que, com investimento, desenvolve o capital fixo social, isto é,
as infraestruturas coletivas que viabilizam e promovem as iniciativas privadas
e as dinâmicas gerais, o que, enfim, regula estrategicamente a economia e
defende a posição internacional do país.
Quiseram enganar-nos, encobrindo o efeito recessivo da primeira
austeridade, pois queriam submeter-nos. E calam agora o ainda mais grave efeito
depressivo da segunda, a destruição do Estado social. A verdade é crua:
desfazer as políticas sociais e obrigar as famílias a usar o seu salário para
obter tais serviços nos mercados privados, cuja criação é o grande propósito de
quem dirige o ataque, vai aumentar as desigualdades e destruir emprego
qualificado e dará início à mais profunda depressão. Sem a almofada progressiva
que os impostos ainda conservam, a ação pelo lado da despesa pública e da
privatização destruirá os mais pobres e desalentará os de rendimentos medianos.
O Estado de um assistencialismo mínimo servirá, quando muito, para encobrir a
crueldade da pobreza que o Estado de antes de Abril disfarçava, mas que o país
democrático não tolera.
Sim, o primeiro nome do ataque ao Estado social é injustiça,
mas o segundo é regressão económica e social para lá de todos os limites.
A economia política da regressão mostra as suas faces duras:
redução da riqueza que podemos produzir, desemprego maciço, perda grave de
receitas fiscais, pois uma economia moribunda não gera impostos, desperdício de
pessoas e das suas qualificações, emigração. Empobrecemos violentamente. E
sobra mais uma consequência. Como é notório pela crise de procura, as forças
privadas são incapazes, por si, das ações de retoma geral e sustentável que
houve noutras crises, porque havia ação pública, políticas de incentivo e
estímulo, instrumentos para impulsionar a recuperação, desenvolvimento de recursos
gerais, incluindo os humanos, e uma administração pública que agiu. O Estado
social que temos não foi apenas um formidável investimento de todos nós em nome
de direitos, igualdade e desenvolvimento. Foi também um agente crucial de ação
pública e coletiva para sustentar um país tão periférico como o nosso.
O discurso liberal obcecado encobre as suas razões e é rico
em falsidades. Nada diz sobre as instituições do euro que devastam periferias e
servem interesses dos países centrais. Ilude que é a sua revisão profunda que
pode ser a solução mais sólida. Diz que as famílias se endividaram, mas omite
que o fizeram tanto como noutros países e que foi por causa da habitação.
Encobre os que ganharam com privatizações. Chama monstro ao Estado, mas não diz
que ele só se aproximou do nível que outros há muito atingiram e que o fez
sobretudo para nos qualificar.
É tudo isto que obriga a discutir o Estado como é proposto
na Conferência Vencer a Crise com o Estado Social e a Democracia, a 11 de maio,
em Lisboa, organizada pelo Congresso Democrático das Alternativas. Porque ele é
o último recurso dos necessitados e excluídos, a condição para manter o país
minimamente coeso e organizado, para não deixar as pessoas no penoso declínio
do empobrecimento e para evitar a degradação do que se criou num país que há
quatro décadas era tão pobre e tão opressivo. Se aludir aos princípios não
basta, que se tenha ao menos a noção de que o país não aguentará tais efeitos
recessivos. Isso evita-se com uma administração pública capaz, com políticas
deliberadamente redistributivas de salvaguarda dos rendimentos e da procura,
com ação e investimentos públicos que mantenham a sociedade a funcionar e
impeçam a degradação das suas infraestruturas coletivas, com regulação
estratégica da economia e com uma atitude política que, em nome dos cidadãos e
da democracia, defenda a posição de Portugal na Europa.
O Estado social, nestes tempos de desgraça, é uma
necessidade urgente. Uma peça fundamental das alternativas que já sabemos
reconhecer.
JOSÉ REIS, JP 05.05.13
Etiquetas: estado social, Um país em sofrimento
4 Comments:
Hoje é um dia em que a politiquice, a pura coreografia política, a ilusão, o dolo, vão atingir limites de insulto a todos os portugueses que estão a empobrecer. Esta dança entre Passos Coelho e Portas (e deliberadamente escrevo antes de Portas falar) é a utilização da comunicação social e de alguns truques demasiado conhecidos para "todos se sairem bem", com o objectivo de nos distrair e enganar. É corrrupção das mentes, tão grave quanto a dos bolsos, é exactamente tudo aquilo que desagrega velozmente uma democracia. Metáforas habilidosas, recursos semânticos de um autor de títulos de soundbyte, frases que pretendem ser virais, desculpas apresentadas como vitórias, imagem, imagem, imagem, vaidade, vaidade, vaidade. E pequenez disfarçada de esperteza.
O combate contra o governo incompetente, arrogante e destruidor que temos, que vive do medo das pessoas de perderem o mais básico da sua vida, vai acabar por ter mais do que uma dimensão política, vai ter uma dimensão de dever, de obrigação, uma dimensão ética. Com este tipo de coerografias dolosas, sem respeito por ninguém, sem sentido de responsabilidade, e muito menos de estado, está-se a abrir o caminho para a desobediência civil. E estou a dizer exactamente o que quero dizer.
josé pacheco pereira, abrupto 05.05.13
Durante 30 minutos Paulo Portas procurou fazer-se passar pelo policia bom de um mau governo. Apesar do fingimento, confirmámos o que todos já sabíamos: Paulo Portas aprova todas as medidas de austeridade divulgadas pelo primeiro ministro, esquecendo-se mais uma vez de todos os compromissos eleitorais que assumiu. Num governo a desfazer-se, Paulo Portas faz tudo para o manter e para se manter ministro.
João Semedo , facebook 05.05.13 21:15
Tirem-nos daqui
Não é o país que está ingovernável, é o Governo. A intervenção de Portas de ontem desmente qualquer desmentido: naquela casa não manda ninguém porque aquela não é uma casa, é um quarteirão de arquitecturas inconciliáveis. Vai Passos agora demarcar-se de quem lhe liquidou três tabus? Portas pediu renegociação com a troika, pediu mais tempo, pediu para o Governo ter voz na Europa em vez de ser a voz da Europa. Gaspar, para cuja saída já estão a fazer o estrugido, está só. Até Passos, seu protector, se libertou da sua dependência intelectual ao aninhar noutra, a de Poiares Maduro. Não há convivência no Governo, quanto mais consenso fora dele. Esse é um problema de Passos, que ou o resolve ou é resolvido por ele.
É por isso que pode ser tarde de mais. Não há disponibilidade social de quem já deu tudo e não percebe se foi para nada. Não há estabilidade política de quem é incapaz de explicar o quê e o porquê das vagas de austeridade, sucessivas e contraditórias. Este não é um programa pós-troika, é um programa pós-fracasso. Mas façamos de conta que não se perderam dois anos no Estado. Façamos de conta que estamos em 2011, que o Governo acaba de tomar posse, que Passos é líder, que tem o país a apoiá-lo e anunciou estas medidas. Sejamos portanto ingénuos e analisemo-las.
Ao contrário do que sugeriu, Passos não apresentou 4,8 mil milhões de cortes de despesa. Apresentou também mais receita, na taxa sobre as pensões e no aumento das contribuições dos funcionários públicos. Mas comecemos pela despesa.
As famílias já se ajustaram brutalmente, reduzindo dívidas, consumindo menos e poupando mais - mesmo com menos rendimento disponível e mais desemprego. As empresas, ainda que menos, também. O Estado, maldito, é que está na mesma. Os impostos aumentaram e foi tudo. O Estado não se reformou, não emagreceu, não pagou as dívidas às empresas privadas e ainda lhes retirou crédito bancário, consumindo-o ele e as suas perdulárias empresas. Por isso é preciso cortar despesa. Para poder baixar impostos.
A igualdade dos funcionários públicos e dos trabalhadores privados é uma normalidade que devia existir há anos. Trabalharem as mesmas horas, terem as mesmas férias e as mesmas pensões de reforma é uma decisão histórica, para qual o Tribunal Constitucional escancarou a porta, pela qual Passos Coelho entrou. Parabéns senhor primeiro-ministro.
Os despedimentos amigáveis na função pública são necessários, representando também uma "igualdade" com a iniciativa privada. Mas não tenhamos dúvidas: o quadro de mobilidade vai ser arma de chantagem. As saídas serão cegas, em vez de corresponderem a extinções de serviços resultantes da reforma do Estado que não há. E a tabela única de suplementos remuneratórios quer dizer apenas uma coisa: corte de remunerações. O que dificilmente faz sentido é a taxa sobre as pensões, mas já não é preciso discuti-la porque, como a pescada, antes de o ser já o era: não avançará, para gáudio de Portas.
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Pedro Santos Guerreiro, JN 05.05.13
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Estas medidas de austeridade são finalmente correctas. Mas falta-lhes duas coisas. Uma é o sentido de justiça social, porque os muitos funcionários públicos e pensionistas são prejudicados e os poucos poderosos não. A poupança com PPP e rendas na energia é conversa fiada quando se vê que a ADSE se mantém. Em vez de aumentar as contribuições dos funcionários (aumentando a receita), o Governo devia acabar com a ADSE (reduzindo despesa). Por que não o faz? A ADSE é um grande negócio para muitos grupos privados de saúde.
Mas o que mais falta é a capacidade para cortar com a espiral recessiva. Falta descer impostos. No IRC certamente. Mas também no IRS. Isso não está nos planos de Gaspar, pois o Documento de Estratégia Orçamental mantém para os próximos anos o peso das receitas destes impostos no PIB. Mas está na cabeça de Paulo Portas, que quer renegociar.
Na verdade, a solução está na cabeça de toda a gente: renegoceia-se com a troika os prazos para redução de défice, argumentando com a recessão europeia e, com isso, consegue-se descer impostos para promover o crescimento da economia. Isto significa mais dívida, logo apoio do BCE. Depois, renegoceia-se também condições de dívida, para pagar menos juros. Agora, só meio Governo não pronuncia este desejo. Seguro virou guru inspiracional: todos querem mais tempo.
Os portugueses merecem flexibilização da troika e o Governo, se conseguir cortar despesa no Estado e souber o para quê e não apenas o quanto, também. Porque isto está a correr mal de mais. Não é à troika - é a nós, Portugal. Tirem-nos daqui. Não é a nós: é a eles.
Pedro Santos Guerreiro,
JN 05.05.13
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