António Arnault
É doutor «honoris causa» pela Universidade de
Coimbra
Quis ajudar a «construir uma sociedade mais livre, justa e
solidária»
«É real o momento que estou a viver, mas tenho dificuldade
em assumi-lo, porque foi a coisa mais improvável e gratificante que me
aconteceu nos últimos e largos anos da minha vida», observou António Arnaut, na
cerimónia em que recebeu o grau de doutor «honoris causa» pela Universidade de
Coimbra.
«Atravessa esta paisagem o meu sonho de um porto infinito»,
proseguiu o «pai» do Serviço Nacional de Saúde (SNS), citando o poeta Fernando
Pessoa para «exprimir o sentimento que não cabe nas palavras», perante a iniciativa
da Faculdade de Economia, secundada pelo Senado da Universidade de Coimbra
(UC), de conferir tal distinção académica, na manhã 29 de Maio, num acto que
encheu –- com «gratidão», pessoas e afectos –- a Sala dos Capelos.
«De facto, para quem nasceu há 78 anos numa pobre aldeia do
concelho de Penela, chamada Cumieira pela sua localização no cimo de um pequeno
monte, que nunca aspirou a ser montanha, estava longe de sonhar com este agora
que me acontece», declarou o advogado António Duarte Arnaut, antes de receber
as insígnias doutorais da UC, o qual teve como apresentante Constantino
Sakellarides (professor da Escola Nacional de Saúde Pública –- ENSP), cabendo
os elogios do doutorando a José Manuel Pureza e os elogios do apresentante a
Pedro Lopes Ferreira (ambos professores da Faculdade de Economia –- FEUC).
«Naquele tempo, as pessoas comiam o pão duro dos dias sem
sol, viviam à míngua e morriam, em regra, sem assistência médica. Foi essa
paisagem humana de sofrimento e resignação que, sem metáfora nem retórica,
despertou em mim o inconformismo activo perante as injustiças inevitáveis e me
fez um cidadão comprometido com o Povo e a Pátria», prosseguiu António Arnaut,
sublinhando que não se conforma com «as pequenas injustiças», conquanto aceite
«as grandes, porque são inevitáveis, como as catástrofes».
O SNS como «trave-mestra do Estado Social»
«Creio que foi esta rebeldia, e também a minha intervenção
cívico-social, para ajudar, embora modestamente, a construir uma Sociedade mais
livre, justa e solidária, que justificaram a alta distinção que me vai ser
conferida», notava o jurista que fez parte do II Governo Constitucional, como
ministro dos Assuntos Sociais. A criação do SNS, «trave-mestra do Estado
Social», iniciada no segundo governo de Mário Soares e concluída com a
publicação da Lei 56/79, de 15 de Setembro, «deve ter pesado nessa magnânima
decisão», considerou o humanista e também escritor António Arnaut.
«É meu dever recordar intimamente todos os que ajudaram a
concretizar essa grande reforma de Abril e os que têm lutado para não deixar
apagar a luz de esperança que então se acendeu e que ainda bruxuleia no
horizonte nublado de Portugal», sustentou o histórico socialista, perante as
presenças do ex-Presidente da República Jorge Sampaio, de António Almeida
Santos, de Maria de Belém Roseira (ex-ministra da Saúde e, posteriormente,
ministra para a Igualdade), do tenente-coronel Vasco Lourenço (membro activo do
Movimento dos Capitães e um dos dirigentes da Associação 25 de Abril), do
secretário-geral do Partido Socialista António José Seguro ou do médico e
coordenador (com Catarina Martins) da Comissão Política do Bloco de Esquerda
(BE) João Semedo, a par das muitas autoridades académicas, civis e religiosas
que assistiram à cerimónia na Sala Grande dos Actos.
Licenciado pela Faculdade de Direito da UC, há 55 anos,
António Arnaut disse ter procurado «dignificar, como advogado, sabendo que nem
sempre a Lei realiza o Direito e que só o Direito justo protege os fracos e os
oprimidos». Nessa convicção, o novo doutorado assegura que continuará «fiel»
aos ideais da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade, «filhos laicos do
Evangelho» (na expressão de Frei Bento Domingues).
A finalizar a sua intervenção, António Arnaut afirmou ter
aprendido com um dos mestres do seu curso (Teixeira Ribeiro, o qual leccionou
Economia e Finanças) que a «moeda» é um «conceito plurívoco entre os
economistas, podendo significar meio pagamento efectivo, simples unidade de
conta ou medida do valor dos bens». «Acolho a última definição e uso-a na sua
implícita vertente moral, tomando aqui a palavra “bem” no sentido etimológico
mais puro: o que é bom e virtuoso, o que nos faz felizes. E, sendo assim, não
há moeda nem ouro deste mundo que pague o bem que me faz e a felicidade que
sinto pelo gesto magnânimo da minha Universidade», concluía o «pai» do SNS.
«A materialização de um imorredouro horizonte»
Por sua vez, José Manuel Pureza, a quem coube o elogio do
doutorando, notava: «O acto que aqui hoje realizamos é um desses momentos de
rara luminosidade em que um gesto simples de lucidez e de reconhecimento se
transforma em questionamento sério à universidade que o faz, sobre o sentido do
que é e do que deve ser o seu desempenho e sobre o alcance do que é e do que
deve ser a sua responsabilidade social.»
«Com este gesto lúcido e nobre de acolher António Arnaut no
seu claustro doutoral, a Universidade de Coimbra está hoje e aqui a abrir-se a
uma dessas interpelações sociais fundamentais: a de se assumir –- sempre de
modo crítico, como é exigido a toda a Universidade –- como instância
comprometida com a materialização de um imorredouro horizonte», continuou o
académico da Faculdade de Economia, tendo em conta a tríade (Liberdade,
Igualdade e Fraternidade) perfilhada pelo fundador do SNS e «defensor
intransigente do Estado de Direito».
Na sua alocução, José Manuel Pureza citava Arnaut: «Nunca
medi o possível e o justo pela extensão do olhar mas pela dimensão da alma.»
Síntese que, segundo o sociólogo e professor da FEUC, «dá expressão à
centralidade do prumo ético na condução da sua vida». «Mais que tudo, é essa
irrepreensibilidade ética de uma vida tão aberta à imensa pluralidade dos
outros como absolutamente firme na defesa de valores e de princípios que a
sociedade portuguesa, com uma unanimidade rara, vê em António Arnaut»,
sublinhava o catedrático e antigo líder parlamentar do BE, ao proferir o elogio
do candidato a doutor «honoris causa».
A Saúde não pode ser vista como «um peso financeiro»
«Poucos de nós têm o acaso e a sabedoria de estar à hora
certa no local certo. Arnaut esteve sempre do lado certo das trincheiras na
luta pela dignificação do ser humano e pela manutenção do Estado Social em
Portugal», considerou Pedro Lopes Ferreira, que fez o elogio do apresentante do
doutorando «honoris causa», Constantino Sakellarides.
Como recordava o professor da FEUC, António Arnaut foi «o
principal impulsionador de uma das maiores conquistas civilizacionais das
últimas décadas em Portugal», concretizando o «reconhecimento formal por parte
do Estado Português do direito dos seus cidadãos à promoção, prevenção e
vigilância da saúde, sendo esse direito materializado num serviço público de
prestação de cuidados».
«O Estado Português passou a ter um SNS universal e
gratuito, isto é, para todos e pré-pago. Não se limitava a assegurar o acesso
aos serviços de saúde; obrigava-se a criar os serviços de Saúde que os cidadãos
necessitam», expôs Pedro Lopes Ferreira, notando: «Desde há muito que o
apresentante [Constantino Sakellarides, actual professor jubilado da Escola
Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa] admira a postura
cívica do doutorando e do seu posicionamento na sociedade portuguesa.»
Segundo Pedro Lopes Ferreira (que também integra o
Observatório Português dos Sistemas de Saúde, estrutura fundada e impulsionada
por Constantino Sakellarides, com o objectivo de contribuir para «uma cultura
de avaliação independente do sistema de saúde» nacional), «na crise financeira
em que vivemos, que conduziu a uma crise económica com externalidades sociais
dramáticas, em que a coesão social está em jogo, a saúde tem de ser vista não
como um peso financeiro, mas como capacitadora dos cidadãos e potenciadora do
crescimento económico».
Vitalino José Santos , TM 29,05,14
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