sexta-feira, maio 30

António Arnault

É doutor «honoris causa» pela Universidade de Coimbra
Quis ajudar a «construir uma sociedade mais livre, justa e solidária»
«É real o momento que estou a viver, mas tenho dificuldade em assumi-lo, porque foi a coisa mais improvável e gratificante que me aconteceu nos últimos e largos anos da minha vida», observou António Arnaut, na cerimónia em que recebeu o grau de doutor «honoris causa» pela Universidade de Coimbra.
«Atravessa esta paisagem o meu sonho de um porto infinito», proseguiu o «pai» do Serviço Nacional de Saúde (SNS), citando o poeta Fernando Pessoa para «exprimir o sentimento que não cabe nas palavras», perante a iniciativa da Faculdade de Economia, secundada pelo Senado da Universidade de Coimbra (UC), de conferir tal distinção académica, na manhã 29 de Maio, num acto que encheu –- com «gratidão», pessoas e afectos –- a Sala dos Capelos.
«De facto, para quem nasceu há 78 anos numa pobre aldeia do concelho de Penela, chamada Cumieira pela sua localização no cimo de um pequeno monte, que nunca aspirou a ser montanha, estava longe de sonhar com este agora que me acontece», declarou o advogado António Duarte Arnaut, antes de receber as insígnias doutorais da UC, o qual teve como apresentante Constantino Sakellarides (professor da Escola Nacional de Saúde Pública –- ENSP), cabendo os elogios do doutorando a José Manuel Pureza e os elogios do apresentante a Pedro Lopes Ferreira (ambos professores da Faculdade de Economia –- FEUC).
«Naquele tempo, as pessoas comiam o pão duro dos dias sem sol, viviam à míngua e morriam, em regra, sem assistência médica. Foi essa paisagem humana de sofrimento e resignação que, sem metáfora nem retórica, despertou em mim o inconformismo activo perante as injustiças inevitáveis e me fez um cidadão comprometido com o Povo e a Pátria», prosseguiu António Arnaut, sublinhando que não se conforma com «as pequenas injustiças», conquanto aceite «as grandes, porque são inevitáveis, como as catástrofes».
O SNS como «trave-mestra do Estado Social»
«Creio que foi esta rebeldia, e também a minha intervenção cívico-social, para ajudar, embora modestamente, a construir uma Sociedade mais livre, justa e solidária, que justificaram a alta distinção que me vai ser conferida», notava o jurista que fez parte do II Governo Constitucional, como ministro dos Assuntos Sociais. A criação do SNS, «trave-mestra do Estado Social», iniciada no segundo governo de Mário Soares e concluída com a publicação da Lei 56/79, de 15 de Setembro, «deve ter pesado nessa magnânima decisão», considerou o humanista e também escritor António Arnaut.
«É meu dever recordar intimamente todos os que ajudaram a concretizar essa grande reforma de Abril e os que têm lutado para não deixar apagar a luz de esperança que então se acendeu e que ainda bruxuleia no horizonte nublado de Portugal», sustentou o histórico socialista, perante as presenças do ex-Presidente da República Jorge Sampaio, de António Almeida Santos, de Maria de Belém Roseira (ex-ministra da Saúde e, posteriormente, ministra para a Igualdade), do tenente-coronel Vasco Lourenço (membro activo do Movimento dos Capitães e um dos dirigentes da Associação 25 de Abril), do secretário-geral do Partido Socialista António José Seguro ou do médico e coordenador (com Catarina Martins) da Comissão Política do Bloco de Esquerda (BE) João Semedo, a par das muitas autoridades académicas, civis e religiosas que assistiram à cerimónia na Sala Grande dos Actos.
Licenciado pela Faculdade de Direito da UC, há 55 anos, António Arnaut disse ter procurado «dignificar, como advogado, sabendo que nem sempre a Lei realiza o Direito e que só o Direito justo protege os fracos e os oprimidos». Nessa convicção, o novo doutorado assegura que continuará «fiel» aos ideais da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade, «filhos laicos do Evangelho» (na expressão de Frei Bento Domingues).
A finalizar a sua intervenção, António Arnaut afirmou ter aprendido com um dos mestres do seu curso (Teixeira Ribeiro, o qual leccionou Economia e Finanças) que a «moeda» é um «conceito plurívoco entre os economistas, podendo significar meio pagamento efectivo, simples unidade de conta ou medida do valor dos bens». «Acolho a última definição e uso-a na sua implícita vertente moral, tomando aqui a palavra “bem” no sentido etimológico mais puro: o que é bom e virtuoso, o que nos faz felizes. E, sendo assim, não há moeda nem ouro deste mundo que pague o bem que me faz e a felicidade que sinto pelo gesto magnânimo da minha Universidade», concluía o «pai» do SNS.
«A materialização de um imorredouro horizonte»
Por sua vez, José Manuel Pureza, a quem coube o elogio do doutorando, notava: «O acto que aqui hoje realizamos é um desses momentos de rara luminosidade em que um gesto simples de lucidez e de reconhecimento se transforma em questionamento sério à universidade que o faz, sobre o sentido do que é e do que deve ser o seu desempenho e sobre o alcance do que é e do que deve ser a sua responsabilidade social.»
«Com este gesto lúcido e nobre de acolher António Arnaut no seu claustro doutoral, a Universidade de Coimbra está hoje e aqui a abrir-se a uma dessas interpelações sociais fundamentais: a de se assumir –- sempre de modo crítico, como é exigido a toda a Universidade –- como instância comprometida com a materialização de um imorredouro horizonte», continuou o académico da Faculdade de Economia, tendo em conta a tríade (Liberdade, Igualdade e Fraternidade) perfilhada pelo fundador do SNS e «defensor intransigente do Estado de Direito».
Na sua alocução, José Manuel Pureza citava Arnaut: «Nunca medi o possível e o justo pela extensão do olhar mas pela dimensão da alma.» Síntese que, segundo o sociólogo e professor da FEUC, «dá expressão à centralidade do prumo ético na condução da sua vida». «Mais que tudo, é essa irrepreensibilidade ética de uma vida tão aberta à imensa pluralidade dos outros como absolutamente firme na defesa de valores e de princípios que a sociedade portuguesa, com uma unanimidade rara, vê em António Arnaut», sublinhava o catedrático e antigo líder parlamentar do BE, ao proferir o elogio do candidato a doutor «honoris causa».
A Saúde não pode ser vista como «um peso financeiro»
«Poucos de nós têm o acaso e a sabedoria de estar à hora certa no local certo. Arnaut esteve sempre do lado certo das trincheiras na luta pela dignificação do ser humano e pela manutenção do Estado Social em Portugal», considerou Pedro Lopes Ferreira, que fez o elogio do apresentante do doutorando «honoris causa», Constantino Sakellarides.
Como recordava o professor da FEUC, António Arnaut foi «o principal impulsionador de uma das maiores conquistas civilizacionais das últimas décadas em Portugal», concretizando o «reconhecimento formal por parte do Estado Português do direito dos seus cidadãos à promoção, prevenção e vigilância da saúde, sendo esse direito materializado num serviço público de prestação de cuidados».
«O Estado Português passou a ter um SNS universal e gratuito, isto é, para todos e pré-pago. Não se limitava a assegurar o acesso aos serviços de saúde; obrigava-se a criar os serviços de Saúde que os cidadãos necessitam», expôs Pedro Lopes Ferreira, notando: «Desde há muito que o apresentante [Constantino Sakellarides, actual professor jubilado da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa] admira a postura cívica do doutorando e do seu posicionamento na sociedade portuguesa.»
Segundo Pedro Lopes Ferreira (que também integra o Observatório Português dos Sistemas de Saúde, estrutura fundada e impulsionada por Constantino Sakellarides, com o objectivo de contribuir para «uma cultura de avaliação independente do sistema de saúde» nacional), «na crise financeira em que vivemos, que conduziu a uma crise económica com externalidades sociais dramáticas, em que a coesão social está em jogo, a saúde tem de ser vista não como um peso financeiro, mas como capacitadora dos cidadãos e potenciadora do crescimento económico».

Vitalino José Santos , TM 29,05,14

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