quarta-feira, outubro 25

João Semedo


médico, deputado do Bloco de Esquerda pelo círculo eleitoral do Porto, presidente do Conselho de Administração do Hospital Joaquim Urbano, pertencente às Comissões Parlamentares de Assuntos Europeus e Comissão de Saúde, deu-nos a alegria de responder a um conjunto de questões que lhe colocámos sobre a actual política de saúde

SaudeSA - A situação deficitária do país, o crescimento das despesas da saúde, o elevado grau de ineficiência, impõem a execução de uma reforma profunda do Serviço Nacional de Saúde.
Partilha da ideia que é necessário efectuar uma reforma profunda para salvar o nosso SNS ?

João Semedo - No nosso país, a palavra reforma está muito gasta e até um pouco desacreditada. Em geral quando não sabem o que fazer para resolver os problemas, os governantes anunciam uma reforma. Mais que uma reforma o SNS precisa é de ser orientado no respeito por alguns princípios básicos e que até recolhem um largo consenso. E necessita também de vontade e determinação políticas na aplicação dessas linhas orientadoras, às quais devemos atribuir toda a prioridade na distribuição dos recursos. Estou a referir-me, entre outros aspectos, à valorização da informação para a saúde, à promoção de modos e práticas de vida saudável, ao reforço da prevenção da doença (e dos sinistros rodoviários e do trabalho, por exemplo), ao desenvolvimento da área da saúde pública e da comunidade, à expansão da rede de cuidados primários e à mudança do seu paradigma, à mudança no modelo organizativo e funcional dos hospitais públicos, a uma maior atenção no capítulo da formação dos profissionais (em número e em competências) e às condições que lhes assegurem continuidade e estabilidade no exercício das suas actividades e, por último, a uma gestão do SNS mais autónoma da estrutura ministerial, mais descentralizada e com mais capacidade de articulação entre os diferentes níveis e agentes envolvidos na prestação de cuidados, que aproxime o planeamento e a decisão das regiões e dos cidadãos.

SaudeSA- Após ano e meio de governação, acredita que CC é capaz de executar a reforma do SNS sem afectar os seus valores fundamentais ?

João Semedo - O que temos visto é exactamente o contrário. Correia de Campos tomou em ano e meio muitas decisões, sempre muito embrulhadas em pareceres e estudos dos chamados peritos. E prometeu diversas mudanças - algumas em marcha, mas sempre determinado por uma única razão que nada tem a ver com a modernização ou aperfeiçoamento do SNS: poupar, poupar, poupar. Não vejo como é que a actual política de redução a qualquer custo da oferta de serviços públicos de saúde, no âmbito do SNS, pode contribuir para que os portugueses usufruam dos cuidados de saúde de que necessitam. Parte da poupança é ainda obtida sobrecarregando o bolso dos portugueses, hoje obrigados a pagar mais pelos serviços de saúde a que recorrem (novas taxas - agora para o internamento também para as cirurgias, e velhas taxas mais caras) e a despender mais dinheiro pelos medicamentos que adquirem.
Correia de Campos não só está a comprometer a natureza geral e universal do SNS como está a transformar o tendencialmente gratuito em tendencialmente pago. Correia de Campos tem em mira a introdução de pagamentos directos na saúde, o que significa uma profunda rotura no compromisso social em que se alicerça a Constituição e a nossa democracia e que, a concretizarem-se, rasgam a essência do estado social em que temos vivido.

SaudeSA - Que alternativas vê ao actual sistema de financiamento ?

João Semedo - A discussão sobre a sustentabilidade financeira do SNS tem estado exclusivamente polarizada na despesa. Mas o orçamento também é receita. Não duvido que nos próximos anos - e, provavelmente, por muitos anos, as receitas do SNS devem continuar a crescer para responder ao natural crescimento da procura e à modernização e qualificação da oferta do SNS. Creio que a decisão principal neste aspecto envolve encontrar uma outra redistribuição da disponibilidade orçamental que não sacrifique as verbas necessárias à saúde.
Admito que alguns lucros de certos operadores do chamado mercado da saúde possam no futuro vir a contribuir, de uma forma ou de outra, para o aumento das receitas do SNS.

SaudeSA - O que é necessário fazer para salvar o nosso Serviço Nacional de Saúde ?

João Semedo - Não partilho da ideia que o SNS necessite de salvação. Certamente que com outras políticas poderia estar em melhor situação. O SNS não fracassou nem está à beira do abismo. Penso, aliás, que o SNS é indiscutivelmente o melhor serviço público de que os portugueses dispõem. E para que assim continue, há duas condições básicas: garantir o seu financiamento de acordo com as necessidades reais, recusando a ditadura dos cortes orçamentais, e gerir com rigor todos os meios colocados à disposição do SNS, não apenas os financeiros mas, igualmente, os recursos humanos e técnicos.

SaudeSA - A gestão dos hospitais do SNS tem sido, quanto a mim, um dos pontos mais fracos da actuação do ministro da saúde.
O que é prioritário fazer para melhorar os resultados dos nossos hospitais?

João Semedo - Definir a missão de cada hospital e estabelecer as necessárias articulações entre eles, numa dinâmica de rede e não de somatório, actualizando as respectivas referenciações e aproximando mais os hospitais quer da comunidade quer dos cuidados primários e, naturalmente, dos cuidados continuados.
Construir e estabelecer contratos-programa, gerindo os hospitais em função de objectivos e resultados, aproximando e envolvendo os profissionais na gestão das unidades.
É frequente dizer-se que os hospitais precisam de novos instrumentos de gestão, de incorporar na sua gestão os modelos desenvolvidos na gestão privada. Não creio que disso dependa qualquer evolução determinante para os hospitais.
A principal mudança decorrerá da capacidade dos hospitais implementarem modelos organizativos e funcionais que tenham no seu centro o serviço aos utentes, o respeito pelas suas expectativas e necessidades. Mais que qualquer outro instrumento de gestão, importado à pressa e ao sabor das modas, se colocarmos o cidadão, o utente se quiserem, no eixo da vida e da gestão de um hospital, mais facilmente concretizaremos as mudanças necessárias nos nossos hospitais públicos.

SaudeSA - Para melhorar a eficiência da rede hospitalar é necessário encerrar serviços, centralizar e encerrar unidades ?

João Semedo - Não creio que haja uma resposta única para essa questão. Nuns casos sim, noutros não. Por exemplo, creio que isso é correcto nos hospitais do Médio Tejo. Naturalmente que tudo depende como for feita essa integração e articulação, se ela permite ou não melhorar o acesso aos cuidados prestados nessas três unidades.
O que não pode acontecer é o que Correia de Campos pretende fazer com as urgências: fechar 14 urgências hospitalares (a prazo, fecharão os respectivos hospitais ou passarão a hospitais de retaguarda para cuidados continuados), desclassificar outras 16 e transformar 24 SAPs em SAPs mais, se medir o impacto que tudo isto vai ter sobre as urgências que continuarão abertas e que já hoje estão a rebentar pelas costuras, com tempos de espera que, na maior parte dos casos, nos envergonham. É uma decisão irresponsável, tanto mais que é tomada num contexto em que o ministério tem vindo a encerrar muitos SAPs e pretende continuar a fechar mais, sabendo nós que para muitos portugueses os SAPs - apesar das suas limitações, são o único e último recurso de que dispõem quando a doença lhe bate à porta.

SaudeSA - Se Correia de Campos lhe pedisse ajuda sobre a actual política de saúde que primeiro conselho lhe daria ?

João Semedo - Eu integro um grupo parlamentar da oposição. Sou deputado pelo BE. Não se espera que um governo ou um governante peça ajuda ou conselho a um deputado da oposição, apesar de muitas vezes a oposição apresentar propostas muito construtivas e que se aplicadas pelo governo talvez dessem melhor resultado que as políticas do próprio governo.
Portanto, mais que um conselho, deixo uma reclamação: não descaracterize o SNS, defenda as suas características fundamentais, não obrigue os portugueses a pagar mais pela saúde do que já pagam por via dos seus impostos.
A democracia portuguesa será melhor com um SNS suportado por todos e ao serviço de todos. No dia em que o SNS for apenas para os pobres, teremos um pobre SNS.

12 Comments:

Blogger Clara said...

Estou de acordo com o comentário anterior do João Pedro.
Trata-se efectivamente de uma excelente e muito cuidada intervenção do João Semedo.

O joão Semedo e o Xavier estão de parabéns.

12:45 da manhã  
Blogger Xico do Canto said...

Uma entrevista a reter. Perguntas bem pertinentes respondidas com conteúdo. João Semedo respondeu mais como profissional de saúde do que como político da oposição, apesar de claramente o assumir.

Gostaria de eleger a seguinte passagem, que muito bem encaixa no contributo do Aidenós, "uma gestão do SNS mais autónoma da estrutura ministerial, mais descentralizada e com mais capacidade de articulação entre os diferentes níveis e agentes envolvidos na prestação de cuidados, que aproxime o planeamento e a decisão das regiões e dos cidadãos". De forma clara, simples e concisa denuncia-se a continuidade do centralismo do MS na gestão dos HH, a quase inexistência de planeamento, do estratégico ao operacional, o aprofundamento da influência das apetências políticas na gestâo diária dos HH e, lamentavelmente, um crescente afastamento do utente/doente.

8:55 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Concordo com os outros comentadores. Este é sem dúvida um momento alto do Saúde SA!
Das respostas de João Semedo (que esteve muito bem) gostei principalmente do positivismo e optimismo relativamente ao SNS: teria sido muito mais fácil alinhar pela teoria do caos - nota-se que estamos perante um homem que acredita genuinamente no SNS, o que nos dias que correm começa a ser raro entre a classe política.
Sabia quem era João Semedo mas não conhecia o seu pensamento político. Com esta entrevista fiquei agradavelmente surpreendido.

10:36 da manhã  
Blogger tonitosa said...

O Dr. João Semedo que ainda há pouco tempo aqui referi a propósito de um debate sobre saúde, habituou-nos a intervenções próprias de um profissional conhecedor e competente. Aliás, regista-se com muito interesse a sua iniciativa no âmbito do BE/AR "forçando" o Governo a ir a reboque na fixação dos tempos de espera na Saúde.
A sua entrevista surge plena de interesse e oportunidade no contexto dos nossos debates e como um certo "envólucro" de algumas das ideias que foram já postadas no blog.
O Xico do Canto salientou a referência à autonomia dos HH e essa é uma das matérias também colocada pelo Aidenós. Na verdade com CC os HH (que passaram a EPE's) viram aumentar de forma significativa a interferência do poder central na sua gestão.
Ideologia à parte, JS sabe do que fala. Não terá sido por acaso que o anterior MS, (o renegado LFP(?)) lhe atribuiu responsabilidades de alto dirigente. Na verdade a competência não é vermelha, nem laranja, nem cor de rosa, tão puco azul. E conhecemos bem o Dr. João Semedo para podermos afirmar que no exercício das funções como dirigente e técnico de saúde, sem renegar as sua opções ideológicas, a sua actuação tem sido balizada pela defesa do direito à saúde e pela melhoria dos cuidados.
O Xavier deu ênfase, na entrevista, aos aspectos mais marcantes. O xico do Canto realçou a problemática da autonomia. Julgo que outra passagem importante das suas declarações é a que se refere ao encerramento de urgências, designadamente quando diz:
"É uma decisão irresponsável, tanto mais que é tomada num contexto em que o ministério tem vindo a encerrar muitos SAPs e pretende continuar a fechar mais, sabendo nós que para muitos portugueses os SAPs - apesar das suas limitações, são o único e último recurso de que dispõem quando a doença lhe bate à porta."

Parabéns ao Xavier pela iniciativa.
Obrigado ao Dr. João Semedo por este excelente "documento".
Um abraço aos dois.

10:54 da manhã  
Blogger saudepe said...

Excelente. Exemplar.

João Semedo assume-se como profissional do SNS mas com capacidade de desenvolver crítica muito bem fundamentada à actual política de saúde.

Basta reparar como responde à última questão que lhe lança o Xavier. Colaborar, temos colaborado com as nossas críticas e propostas alternativas, agora é a altura de reclamar.

Um trunfo importante nesta altura de cerrar fileiras em defesa do SNS.
É uma luta que atravessa toda a sociedade portuguesa e todos os partidos.
Sócrates e CC parecem ignorar esta pequena particularidade deste processo ou talvez gostam demasiado de arriscar.
Para isso mais vale dedicrem-se ao poker.

1:39 da tarde  
Blogger Peliteiro said...

Fazem falta homens destes ao país.
Não sou nada bloquista - pelo contrário - mas não hesitaria em apoiar alguém com um discurso tão sério e sabedor.

2:14 da tarde  
Blogger naoseiquenome usar said...

Irão certamente desculpar-me por destoar do coro de elogios.
Que disse afinal João Semedo que qualquer outro bem-intencionado não pudesse dizer? Que mais valia pragmática acrescentou? Nada. O discurso é o de sempre de que se pode fazer melhor com o que se tem..., as autonomias são acérrimamente defendidas, contudo... meus caros, o que se tem, tem-se, tem-se vindo a ter.ponto. As autonomias têm vindo a ser crescentes. ponto. Onde estão os resultados? Quem é capaz de me dizer que o Hospital Joaquim Urbano é um paradigma em termos de gestão de recursos e de cuidados prestados?

:) faz é bem ao ego acreditar ...

Cumprimentos.

3:17 da tarde  
Blogger tonitosa said...

São só BOAS NOTÍCIAS!!!
Esta entrevista a João Semedo concorde-se ou não com as suas orientações ideológicas, não deixa de ser um contributo valioso de alguém que, além de médico, tem o conhecimento concreto da gestão de serviços de saúde.
À pergunta, "acredita que CC é capaz de executar a reforma do SNS sem afectar os seus valores fundamentais ?
O Dr. joão Semedo não foi de meias tintas começando por responder:
"O que temos visto é exactamente o contrário. Correia de Campos tomou em ano e meio muitas decisões, sempre muito embrulhadas em pareceres e estudos dos chamados peritos. E prometeu diversas mudanças - algumas em marcha, mas sempre determinado por uma única razão que nada tem a ver com a modernização ou aperfeiçoamento do SNS: poupar, poupar, poupar."

Sem mais comentários trago aqui duas notícias hoje vindas a lume.
Primeira - no Correio da Manhã sob o título: "Fim das horas extras agrava urgências"
Uma fotografia ilustra bem o ambiente que se vive no que parece ser um corredor de um hospital e a legenda é bem ilucidativa dizendo: Muitos médicos deixaram de fazer 'BANCO' nos hospitais, com prejuízo para os doentes, qualquer que seja a gravidade do seu estado.
E no corpo da notícia lemos ainda: Começam a fazer sentir-se os efeitos do corte no pagamento das horas extraordinárias aos médicos, enfermeiros e auxiliares nos hospitais pelo Ministério da Saúde. Por um lado diminui o número de cirurgias ...fazendo disparar as listas de espera. Por outro lado, a quantidade e qualidade da assistência nas Urgências também estão a ser afectadas, uma vez que a maior parte dos médicos deixou de fazer 'bancos'.
Ainda de acordo com a notícia, o coordenador do SIGIC, Pedro Gomes, diz que há hospitais que vão diminuir as operações: "há necessidade da contenção da despesa com o pessoal e haverá certamente alguns hospitais, não digo todos, que vão reduzir o número de cirurgias".
Como é evidente, e para que conste também, deve dizer-se que o CM diz que o gabinete do ministro da saúde contesta..."garantindo que, até à data, nãs tem conhecimento de qualquer problema".
Uma curiosidade ainda. De acordo com o Correio da Manhã, segundo o cordenador do SIGIC 31% dos 67000 doentes que receberam o vale-cirurgia - 20770 pacientes - não beneficiaram do serviço por "já terem resolvido o problema de saúde pelos seus próprios meios ou por morte".
Brilhante, digo eu. Aqui está uma boa forma de o Ministério poupar nas despesas do SNS. Na verdade não há problema nenhum de saúde que a morte não resolva!
Eu sei que se poderá dizer que as listas de espera são um problema muito antigo, mas também sei que CC fez das mesmas um dos seus mais impoortante baluartes para criticar o seu antecessor. Por isso não poderá o actual governo deixar de assumir a responsabilidade pela não resolução do problema e pior ainda, pelo seu (eventual?) agravamento.

A segunda notícia consta do DD e diz em título: Saúde: «milhares» de profissionais certificados ilegalmente"
E do corpo da notícia extraí a seguinte passagem: "Almerindo Rego afirma que o SCTS detectou já várias cédulas profissionais atribuídas a pessoas que não possuem as habilitações necessárias para exercer profissões técnicas na área da Saúde e que estima serem «milhares» este tipo de casos."
..."Para o sindicato, a acção da Secretaria-Geral do MS está a «habilitar pessoas sem qualificação» e a «criar um problema de saúde pública»."

Como vemos, caros colegas, sobre Saúde, são só boas as notícias?!...

8:54 da tarde  
Blogger helena said...

Estou como o Vladimiro. Conheço o Dr. João Semedo de intervenções na AR. Não o conhecia neste feliz registo, de homem da Saúde, com saberes de experiências feito e muita reflexão.

Com este texto do deputado do Bloco de Esquerda e a Ideia do Aidenós a Saudesa atinge esta semana um pico de grande qualidade e interesse.

9:06 da tarde  
Blogger helena said...

Acho que o Xavier devia tentar questionar o Manuel Delgado e CC sobre a política de saúde.

9:12 da tarde  
Blogger coscuvilheiro said...

Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

9:21 da manhã  
Blogger coscuvilheiro said...

Uma grande iniciativa do Xavier.
A que JS correspondeu com uma excelente análise.
Uma crítica serena, rigorosa, concisa à Governação do ministro da saúde.
Esperava do deputado do Bloco de Esquerda uma coisa mais trauliteira.
Confesso que fiquei surpreendido com a ponderação da análise.

JS também não é um deputado qualquer. Trata-se de um profissional da Saúde com conhecimentos profundos e muitos anos de experiência.

9:21 da manhã  

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