O Estado Social (2)
Não basta sonhar, cada país tem a Saúde que puder pagar.
Caro È-Pá:
Longa caminhada a sua, caro É-Pá! O percurso não me era desconhecido, e gosto sempre de repassar caminhos velhos. Mas, já reparou que, contrariamente ao que anunciou que ia fazer, continuou comodamente sentado no dorso do Rocinante?
A intervenção da Cotovia, com a qual concordo na generalidade, permite-me que me limite a algumas curtas observações.
Por que terão sido os países nórdicos (Suécia, Noruega, Dinamarca, mas também o UK) a ultrapassar comunistas e democrata-cristãos e a implementar as melhores concretizações dos direitos sociais que são, efectivamente, o traço civilizacional distintivo de que a “velha Europa” se pode orgulhar, apesar dos desvios de quando em quando acontecidos? A resposta será complexa, mas certamente dela farão parte coisas comezinhas, tais como a estabilidade (entendida como consenso à volta das grandes opções), o nível de desenvolvimento educacional e económico-social, a conexão e interdependência entre as diferentes áreas que, mesmo no domínio estrito do social, reclamam a afectação dos recursos disponíveis.
É muito prosaico, mas é insuperável: não basta sonhar, cada país tem a saúde que puder pagar; nós já conseguimos ter algumas opções, não um SNS igual ao NHS, mas sabemos bem que alguns países não podem permitir-se o luxo mesmo de qualquer arremedo de SNS; para nós, o desafio está em gastarmos o melhor possível, nas melhores políticas, extirpando os vícios que for possível, não para que o SNS sobreviva tal como tem sido, mas para que os cuidados de saúde sejam gerais, universais e (no mínimo) tendencialmente gratuitos para o utente, porque é o direito aos cuidados de saúde que é inerente à dignidade da pessoa humana e o SNS não é mais que uma forma de tentar garanti-lo. E sem esquecer que, por razões consabidas (envelhecimento da população, evolução científica e tecnológica nos domínios das capacidades diagnósticas e terapêuticas, aumento do nível de exigência da população, …) o que pode esperar-se é que os recursos necessários para dar resposta à obrigação correspondente da sociedade serão cada vez mais volumosos, arriscando tornar-se incomportáveis. Se fosse eu a dizê-lo não tinha importância nenhuma, mas isto é consenso generalizado. Por mais que custe ou não convenha.
É o risco de os recursos, no médio/longo prazo não serem suficientes que é preciso eliminar: foi para isso que sugeri que descêssemos do cavalo e enfrentássemos, não os moinhos de vento, mas os problemas tais como eles se nos apresentam.
Em vez disso, o que vejo sustentar?
- Que o juízo sobre as despesas com a saúde (os tais 10,1% do PIB) tem de ser feito considerando que “os gastos na Saúde em Portugal são sempre referenciados a um PIB pobre - não tenhamos vergonha de o admitir - e tal situação, coloca-nos, artificialmente, na média europeia”. Ora, se a comparação fosse feita nesses termos não teria qualquer utilidade porque não traduziria o respectivo poder de compra, diferente de país para país. Mas não é. Na verdade, a despesa de cada país é previamente convertida em paridades de poder de compra e é depois desta conversão que nos situamos não na média, mas no pelotão da frente da União Europeia em relação às afectações à área da saúde;
- Que, “entre 2004 e 2007, as despesas totais do Estado aumentaram 9,6%, enquanto que as despesas com a Educação e Saúde dos portugueses cresceram apenas 2,2%”, afirmação esta que é inexacta porque considera apenas as dotações iniciais, sendo certo que em 2004 e 2005 houve orçamentos rectificativos com atribuição de verbas vultuosas pelo menos no caso da Saúde;
- Que é em tempos de crise que o orçamento para o social e para a saúde, “o guarda-chuva”, é mais necessário e, por isso, deve aumentar. Pergunta-se: i) também o desperdício deve beneficiar do aumento? É que o OE, ou seja nós, estamos a pagá-lo; ii) se o tempo é de crise e o OE não consegue receitas suficientes, onde, que valha a pena, e com que consequências, deverá cortar-se para aumentar a saúde; nas grandes áreas que absorvem recursos significativos (ainda mais na educação, 1.ª prioridade quando se olha para o futuro, ou na segurança social, sacrificando uma faixa etária cada vez mais larga e particularmente vulnerável)? Na cultura não valerá a pena (menos de 2% do OE). Ou será que, com a elevada carga fiscal que já suportamos, e inseridos numa comunidade supranacional, se defende uma ainda maior subida dos impostos que, dizem muitos dos entendidos, são uma das causas da nossa já escassa competitividade?
- Que “é preciso remover as condições objectivas que facilitam a instalação (restauração), no espaço europeu, dessas políticas neoliberais travestidas de imensas e aliciantes racionalidades económicas, visionárias de sucessos imediatos, mas totalmente vazias de solidariedade e equidade social”. Como não havemos de pensar em lanças em riste contra moinhos de vento? Que realismo tem esta “proclamação”? Ou está a ser sugerida a saída da CE? Para onde?
- Que se insiste em considerar os HH-PPP como o grande adversário do SNS, quando todo o seu desenho legal os configura como parte dele, enquanto Hospitais Públicos; a pagar (embora diferidamente) por fundos provenientes do OE; abertos, tal como os restantes, a toda a clientela que a eles acederá nas mesmas condições que aos restantes HH públicos; sujeitos a exigências de qualidade e segurança, quer clínica, quer geral e ambiental; a avaliar e controlar pelo Estado e sob ameaça de, a qualquer momento, poder ser remida a parceria se o Estado a considerar abaixo dos resultados esperados. A única diferença é que, admito, não haverá permissividade e indefinição semelhantes às que tantas vezes se encontram no âmbito da função pública. Sei que muitos dirão que tudo isso está para se ver e, até agora, não passa de tinta no Diário da República. Se começamos por postular que a lei não é para cumprir, é uma posição irrespondível, mas deixem-me dizer que só pode aceitar-se na base de um “esticado” processo de intenções. Ponto em que estou de acordo é a convicção de que o MS não tem demonstrado a capacidade de avaliação e controlo de que vai precisar e em que devia estar já a investir com mais empenho do que o conhecido. Mas isto não é válido apenas pensando nas exigências das Parcerias. Pior ainda, algumas das medidas recentes não vão no melhor sentido, ao confundirem no IGIFS responsabilidades e competências que deveriam andar separadas, como daqui me tenho feito eco.
- Em contraponto, a amplíssima possibilidade de acumulação de funções no SNS com o exercício de Medicina Liberal que, no meu juízo, ameaça o SNS muito mais do que a Medicina Privada organizada por, na generalidade dos casos mas não sempre, há que dizê-lo, ser impeditiva do comprometimento dos médicos na luta pela produtividade e contra o desperdício, não preocupa ninguém. E, no entanto, não estamos a falar de uns trocos, mas sim de mais de 30% do que afectamos à saúde, se no conceito de desperdício contabilizarmos tudo o que lá deve entrar. Tecido para um bom guarda-chuva, não lhes parece?
Caro Pedro Silva
O que posso responder é que o estudo de Keit Palmer a mim pareceu-me excelente. Mas não tem que acreditar. Leia e avalie por si mesmo.
Longa caminhada a sua, caro É-Pá! O percurso não me era desconhecido, e gosto sempre de repassar caminhos velhos. Mas, já reparou que, contrariamente ao que anunciou que ia fazer, continuou comodamente sentado no dorso do Rocinante?
A intervenção da Cotovia, com a qual concordo na generalidade, permite-me que me limite a algumas curtas observações.
Por que terão sido os países nórdicos (Suécia, Noruega, Dinamarca, mas também o UK) a ultrapassar comunistas e democrata-cristãos e a implementar as melhores concretizações dos direitos sociais que são, efectivamente, o traço civilizacional distintivo de que a “velha Europa” se pode orgulhar, apesar dos desvios de quando em quando acontecidos? A resposta será complexa, mas certamente dela farão parte coisas comezinhas, tais como a estabilidade (entendida como consenso à volta das grandes opções), o nível de desenvolvimento educacional e económico-social, a conexão e interdependência entre as diferentes áreas que, mesmo no domínio estrito do social, reclamam a afectação dos recursos disponíveis.
É muito prosaico, mas é insuperável: não basta sonhar, cada país tem a saúde que puder pagar; nós já conseguimos ter algumas opções, não um SNS igual ao NHS, mas sabemos bem que alguns países não podem permitir-se o luxo mesmo de qualquer arremedo de SNS; para nós, o desafio está em gastarmos o melhor possível, nas melhores políticas, extirpando os vícios que for possível, não para que o SNS sobreviva tal como tem sido, mas para que os cuidados de saúde sejam gerais, universais e (no mínimo) tendencialmente gratuitos para o utente, porque é o direito aos cuidados de saúde que é inerente à dignidade da pessoa humana e o SNS não é mais que uma forma de tentar garanti-lo. E sem esquecer que, por razões consabidas (envelhecimento da população, evolução científica e tecnológica nos domínios das capacidades diagnósticas e terapêuticas, aumento do nível de exigência da população, …) o que pode esperar-se é que os recursos necessários para dar resposta à obrigação correspondente da sociedade serão cada vez mais volumosos, arriscando tornar-se incomportáveis. Se fosse eu a dizê-lo não tinha importância nenhuma, mas isto é consenso generalizado. Por mais que custe ou não convenha.
É o risco de os recursos, no médio/longo prazo não serem suficientes que é preciso eliminar: foi para isso que sugeri que descêssemos do cavalo e enfrentássemos, não os moinhos de vento, mas os problemas tais como eles se nos apresentam.
Em vez disso, o que vejo sustentar?
- Que o juízo sobre as despesas com a saúde (os tais 10,1% do PIB) tem de ser feito considerando que “os gastos na Saúde em Portugal são sempre referenciados a um PIB pobre - não tenhamos vergonha de o admitir - e tal situação, coloca-nos, artificialmente, na média europeia”. Ora, se a comparação fosse feita nesses termos não teria qualquer utilidade porque não traduziria o respectivo poder de compra, diferente de país para país. Mas não é. Na verdade, a despesa de cada país é previamente convertida em paridades de poder de compra e é depois desta conversão que nos situamos não na média, mas no pelotão da frente da União Europeia em relação às afectações à área da saúde;
- Que, “entre 2004 e 2007, as despesas totais do Estado aumentaram 9,6%, enquanto que as despesas com a Educação e Saúde dos portugueses cresceram apenas 2,2%”, afirmação esta que é inexacta porque considera apenas as dotações iniciais, sendo certo que em 2004 e 2005 houve orçamentos rectificativos com atribuição de verbas vultuosas pelo menos no caso da Saúde;
- Que é em tempos de crise que o orçamento para o social e para a saúde, “o guarda-chuva”, é mais necessário e, por isso, deve aumentar. Pergunta-se: i) também o desperdício deve beneficiar do aumento? É que o OE, ou seja nós, estamos a pagá-lo; ii) se o tempo é de crise e o OE não consegue receitas suficientes, onde, que valha a pena, e com que consequências, deverá cortar-se para aumentar a saúde; nas grandes áreas que absorvem recursos significativos (ainda mais na educação, 1.ª prioridade quando se olha para o futuro, ou na segurança social, sacrificando uma faixa etária cada vez mais larga e particularmente vulnerável)? Na cultura não valerá a pena (menos de 2% do OE). Ou será que, com a elevada carga fiscal que já suportamos, e inseridos numa comunidade supranacional, se defende uma ainda maior subida dos impostos que, dizem muitos dos entendidos, são uma das causas da nossa já escassa competitividade?
- Que “é preciso remover as condições objectivas que facilitam a instalação (restauração), no espaço europeu, dessas políticas neoliberais travestidas de imensas e aliciantes racionalidades económicas, visionárias de sucessos imediatos, mas totalmente vazias de solidariedade e equidade social”. Como não havemos de pensar em lanças em riste contra moinhos de vento? Que realismo tem esta “proclamação”? Ou está a ser sugerida a saída da CE? Para onde?
- Que se insiste em considerar os HH-PPP como o grande adversário do SNS, quando todo o seu desenho legal os configura como parte dele, enquanto Hospitais Públicos; a pagar (embora diferidamente) por fundos provenientes do OE; abertos, tal como os restantes, a toda a clientela que a eles acederá nas mesmas condições que aos restantes HH públicos; sujeitos a exigências de qualidade e segurança, quer clínica, quer geral e ambiental; a avaliar e controlar pelo Estado e sob ameaça de, a qualquer momento, poder ser remida a parceria se o Estado a considerar abaixo dos resultados esperados. A única diferença é que, admito, não haverá permissividade e indefinição semelhantes às que tantas vezes se encontram no âmbito da função pública. Sei que muitos dirão que tudo isso está para se ver e, até agora, não passa de tinta no Diário da República. Se começamos por postular que a lei não é para cumprir, é uma posição irrespondível, mas deixem-me dizer que só pode aceitar-se na base de um “esticado” processo de intenções. Ponto em que estou de acordo é a convicção de que o MS não tem demonstrado a capacidade de avaliação e controlo de que vai precisar e em que devia estar já a investir com mais empenho do que o conhecido. Mas isto não é válido apenas pensando nas exigências das Parcerias. Pior ainda, algumas das medidas recentes não vão no melhor sentido, ao confundirem no IGIFS responsabilidades e competências que deveriam andar separadas, como daqui me tenho feito eco.
- Em contraponto, a amplíssima possibilidade de acumulação de funções no SNS com o exercício de Medicina Liberal que, no meu juízo, ameaça o SNS muito mais do que a Medicina Privada organizada por, na generalidade dos casos mas não sempre, há que dizê-lo, ser impeditiva do comprometimento dos médicos na luta pela produtividade e contra o desperdício, não preocupa ninguém. E, no entanto, não estamos a falar de uns trocos, mas sim de mais de 30% do que afectamos à saúde, se no conceito de desperdício contabilizarmos tudo o que lá deve entrar. Tecido para um bom guarda-chuva, não lhes parece?
Caro Pedro Silva
O que posso responder é que o estudo de Keit Palmer a mim pareceu-me excelente. Mas não tem que acreditar. Leia e avalie por si mesmo.
AIDENÓS
5 Comments:
Este comentário foi removido pelo autor.
Caro AIDENÒS, perdoe-me:
o abandono no Uk por este tipo de processo de certificação, a si, não lhe diz nada?
Ainda quer acreditar?
Cara Nãoseiquenomeusar
Não tenho nada para perdoar.
Se vir bem, não disse uma palavra sobre certificação pelo Kings Fund.
Afirmei é que o trabalho de Keit Palmer me pareceu excelente. De resto, o seu currículo não se circunscreve ao King’s Fund e pode ser acedido no Link inserido no Post em que me referi à sua análise.
NSQNU,
Cada cavadela é só minhocas
Cada tiro, coitados dos melros.
Caro aidenós:
Eu escrevi, logo no preâmbulo, que o texto era " básico e redundante" e só o escrevia na tentativa de clarificar a minha posição política sobre o Estado Social.
Creio que o comentário não merecia tanta "descontextualização".
Eu - também - escrevi:
"Claro que é sempre possível obter ganhos em eficiência, nomeadamente, através da introdução de novos métodos de gestão, da qualificação e motivação dos profissionais, da melhoria dos sistemas de informação, da acuidade e fiabilidade das análises financeiras e contabilísticas, da racionalização (não racionamento!) do consumo de medicamentos e de meios complementares de diagnóstico, da aposta em medidas de prevenção e, finalmente, da promoção da educação sanitária da população. Isto é verdade para qualquer sistema, em qualquer parte do Mundo. E, é, também, isso que o SNS tem de fazer."
E mais à frente:
"O SNS está, no caso do nosso País, condicionado por questões orçamentais subsidiárias do PEC. É justo que assim seja num quadro de solidariedade nacional."
etc.
Agora, há uma afirmação que já não se restringe, ao Rocinante, mas é uma evocação do "cavalo alado" ou toda a mitologia em volta de Pégaso:
"Em contraponto, a amplíssima possibilidade de acumulação de funções no SNS com o exercício de Medicina Liberal que, no meu juízo, ameaça o SNS muito mais do que a Medicina Privada organizada por, na generalidade dos casos mas não sempre, há que dizê-lo, ser impeditiva do comprometimento dos médicos na luta pela produtividade e contra o desperdício, não preocupa ninguém."
Não será isto um velho e gasto jargão?
Na "Medicina Privada organizada"... É interessante esta formulação soft para os poderosos interesses do capital financeiro na área da Saúde(o exº. da CGD não lhe sugere outra semântica?).
Ou, está mesmo convicto que o médico, há 2 meses era um terrível instrumento de desperdício (num HH Público), e desde que foi trabalhar na tal "Medicina Privada organizada", passou a bestial ou transformou-se numa estrela, do tipo, Doctor House?
Vou, sem me ter solicitado,dar-lhe uma opinião, de um homem que trabalha na área médica nos HH Públicos há 32 anos:
Quanto mais eficiente, mais dedicado, mais cumpridor for um médico nos HH Públicos, melhor lhe "correrá" a actividade privada (que existe há centenas de anos e agora foi transformada em "papão").
Aliás, esses problemas que reconheço - de algum modo -existirem nso HH's, não poderiam ser ultrapassados com alguma reforma (já prevista há muitos anos...) visando, p. exº., a transformação dos tradicionaos Serviços Hospitalares ou Departamentos em CRI's e a criação de mais espaço para uma efectiva e qualificada "governação clínica"?
Ou, esta opção, pode encerrar ameaças a interesses instalados?
Finalmente, o que não aceito, é:
"Não pode permitir que as estratégias de desenvolvimento sejam ensombradas por um dilacerante e falso dilema: “para salvar o sistema, é necessário abdicar de direitos sociais."
Isto diz respeito não só ao SNS, como à política em geral, entendida, como um conjunto de processos e acções de governação que devem garantir e promover a segurança, a justiça e os direitos cívicos (sociais, incluidos).
Utopia? Talvez! Mas é a minha visão de cidadania.
Todavia, reconheço que ser "pragmático" é ser mais maleável, nas questões dos valores fundamentais.
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