sexta-feira, outubro 12

Recuar, recuar, recuar sempre

Como este Governo não tem por hábito jogar aos dados - percebe-se que as decisões são preparadas, enquadradas e criteriosamente divulgadas, obedecendo a uma intenção reflectida e procurando influenciar os acontecimentos para além dos efeitos imediatos -, a possibilidade agora dada aos médicos dos serviços públicos de saúde de exercerem a sua actividade a tempo parcial é a outra face do controlo electrónico da assiduidade, já iniciado em vários hospitais. No seu conjunto, os dois lados desta moeda representam mais um recuo do Serviço Nacional de Saúde (SNS), a par de outros de que este Governo vem dando mostras, concomitantes com a progressão do sector privado hospitalar. O sinal político desta medida é tão simples como isto: por vontade do Governo, o SNS só fica obrigado a cumprir metade das suas obrigações para com os portugueses e os bancos e as seguradoras que façam o resto.

Se, no plano dos valores, o controlo electrónico da assiduidade representa uma usurpação, por parte do Estado, da capacidade de auto-regulação dos médicos, na perspectiva da organização da produção de cuidados de saúde é o reconhecimento de que se abandonou a estratégia da contratualização, nomeadamente da contratualizaçãoo interna, substituindo-a por mecanismos que visam formatar pela via do comando e controlo centralizado o funcionamento dos hospitais e centros de saúde. Atrofiam-se os instrumentos de responsabilização individual e retira-se competência e capacidade de negociação à gestão intermédia em nome do espírito e da disciplina de caserna. O controlo electrónico da assiduidade é o indicador do que vai no pensamento deste Governo sobre política de saúde - recuar, recuar, recuar sempre, mas cronometrado ao segundo.

Alguns indicadores de actividade do que se faz no sector público hospitalar e no sector privado hospitalar são particularmente elucidativos para se perceber melhor o alcance desta medida e os efeitos que ela vai ter no ordenamento do sistema de saúde português.
Em cinco anos, por exemplo, e de acordo com os dados do Instituto Nacional de Estatística, enquanto os efectivos médicos dos hospitais públicos cresceram oito por cento, os efectivos do sector privado hospitalar cresceram 20 por cento; o volume de consultas externas aumentou 25 por cento nos hospitais públicos e 20 por cento nos hospitais privados, os internamentos aumentaram quatro por cento nos hospitais públicos e sete por cento nos hospitais privados, as cirurgias tiveram um crescimento de 17 por cento nos hospitais públicos e 19 por cento nos hospitais privados, as análises clínicas viram o seu volume aumentar 21 por cento no público e 128 por cento no privado, a imagiologia cresceu 21 por cento no público e 47 por cento no privado, a fisioterapia diminuiu cinco por cento no público e aumentou 18 por cento no privado e, finalmente, as endoscopias cresceram 40 por cento no público e 182 por cento no privado.
Estes valores dizem-nos que estamos perante um sistema de saúde a duas velocidades: o SNS a desacelerar e o sector privado hospitalar em franco crescimento. Financeiramente, esta desigualdade é dada pelo crescimentos de 20 por cento na despesa do SNS nos últimos cinco anos e pelo aumento de 42 por cento na despesa com cuidados no sector privado, no mesmo período. Significando que muita produção deixou de ser realizada no sector público para ser adquirida ao sector privado com o dinheiro do orçamento do SNS. O parente pobre do SNS continua a ser as despesas com pessoal que, comparativamente, no mesmo período cresceram 18 por cento.

Em vez de criar condições de trabalho e remuneração para atrair e fixar os médicos nos serviços públicos, o Governo opta pelo que lhe é mais fácil: um part-time nos hospitais. Os bancos e as seguradoras agradecem e aplaudem, mas dificilmente os portugueses poderão concordar com esta medida.
cipriano justo,JP 12.10.07

4 Comments:

Blogger naoseiquenome usar said...

Quando, um dia, vir neste espaço, plasmadas outras opiniões que não as vindas de uma esquerda que nem ela própria se reconhece, dado as derivas, como acontece com Cipriano JUsto, um "Renovador", darei os meus patrabéns a este espaço. Enquanto tal não acontecer, parece-me viciado.
Já não há paciência para aturar as críticas ao controle de assiduidade, controle que acontece em todas as áreas da sociedade civil e, na privada, sem qualquer "flexibilidade". Há empresas que controlam o tempo que se despende no WC, sabem?

Quanto às 20 horas - :) santo Deus. Não passa de uma mera adequação da realidade à profissão médica. Com horários completos ou até de exclusividade, onde encontramos os médicos depois de almoço?

Para mim, acabava-se a "promiscuiade" pública/privada.
Enquanto não acabar, esta "solução" apadrinhada por MD é boa.

7:24 da tarde  
Blogger naoseiquenome usar said...

Outra solução seriam os horários diferenciados, por turnos (e sempre para cumprir!), coisa de que, os Srs. Drs. médicos, nem querem ouvir falar!

7:28 da tarde  
Blogger Joaopedro said...

Cara naoseiquenomeusar,
não a fazia uma neoliberal empedrenida.

Concorda então com as medidas do nosso ministro que visam reduzir, empobrecer, despromover o nosso SNS em favor do negócio privado da saúde.

Não é certamente profissional da saúde?

Talvez advogada de algum empreendimento da saúde privado.
Sendo assim...

10:40 da tarde  
Blogger naoseiquenome usar said...

(a naoseiquenome usar será tudo o que o João Pedro e "outros colegas da saúde" queiram que ela seja, menos, ela própria. Mas já agora aconselho vivamente uma ida ao oftalmologista, a ver se se consegue ver com olhos de ver).l

11:41 da tarde  

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