quinta-feira, junho 5

Altos custos da Saúde

baseada no lucro link

Tal como escrevemos num artigo anterior, alguns aspectos da vida são demasiado preciosos, íntimos e corruptíveis para os entregar ao mercado. Proibimos a venda de rins e a compra de mulheres ou juízes. Mas o mercado ganhou inquestionavelmente novo território nos últimos anos, à medida que mais e mais actividades antes desempenhadas pelo Estado ou por agências não baseadas no lucro têm sido entregues a empresas privadas – incluindo o interrogatório de prisioneiros iraquianos.

Para o cidadão comum, a tendência para privatizar é bastante evidente nos cuidados de saúde. Nos Estados Unidos, firmas pertencentes a investidores acabaram por dominar a diálise renal, os cuidados de enfermagem ao domicílio, internamento para doentes psiquiátricos e para reabilitação e organizações de manutenção da saúde (HMOs [das iniciais em inglês]). Fizeram incursões significativas entre os cuidados de saúde intensivos (agora possuindo cerca de 13% destas instalações), assim como em centros de cirurgia para pacientes externos, em agências de cuidados ao domicílio e mesmo em asilos. O Canadá tem seguido lentamente atrás dos Estados Unidos, mas a pouco e pouco o fornecimento de serviços privados financiados com dinheiro público aumenta. Os bárbaros pró lucro estão à entrada do portão.

Aqueles que defendem os cuidados de saúde baseados no lucro argumentam que o lucro optimiza os cuidados e minimiza os custos (tal como o Miguel Fasquilho). A este respeito, P.J. Devereaux e colegas acrescentam argumentos à considerável evidência de que este dogma não tem ponta por onde se lhe pegue. A sua meticulosa meta análise demonstra um padrão de aumento de custos nos cuidados de saúde em hospitais privados pertencentes a investidores quando comparados com hospitais privados não baseados no lucro. A única excepção significativa foi um pequeno estudo comparando hospitais privados baseados no lucro com hospitais nominalmente não baseados no lucro dirigidos por uma firma privada baseada no lucro – em outras palavras, ambos os grupos de hospitais neste estudo estavam sob gestão baseada no lucro.

Os custos excessivos em cuidados de saúde nas instituições baseadas no lucro são substanciais: 19%. Esta valor implica que os 37 biliões de dólares que os americanos pagaram por cuidados de saúde em hospitais de cuidados intensivos pertencentes a investidores em 2001 teriam custado apenas 31 biliões de dólares em hospitais não baseados no lucro – um desperdício de 6 biliões de dólares. Mas custos mais altos em cuidados de saúde intensivos (e reabilitação) em hospitais baseados no lucro não são toda a história dos cuidados de saúde privados. Hospitais baseados no lucro e clínicas de diálise têm taxas de morte mais altas [5,6]. Clínicas de repouso pertencentes a investidores são mais frequentemente citadas por deficiências na qualidade e fornecem menos cuidados de enfermagem , e asilos pertencentes a investidores fornecem menos assistência aos moribundos , do que as instalações não baseadas no lucro.

Porque é que as unidades exploradas por investidores privados aumenta os custos? Hospitais pertencentes a investidores privados são maximizadores de lucros, não minimizadores de custos. Estratégias que amparam a rentabilidade frequentemente pioram a eficiência e empurram para cima os custos. O Columbia/HCA, a maior firma hospitalar dos Estados Unidos, pagou ao governo dos EU 1,7 biliões de dólares acordados por fraude, pagamento de luvas a médicos e sobrefacturação à Medicare. O Tenet, a segunda maior empresa hospitalar dos Estados Unidos, pagou mais de meio bilião de dólares num acordo para evitar acusações de pagar luvas por remissões e deter de modo não apropriado pacientes psiquiátricos para encher camas durante os anos 80, quando a firma era conhecida como NME. Em Março de 2004, o Tenet concordou em pagar ao governo dos EU 22,5 milhões de dólares para resolver um de vários casos; alegações recentes contra eles incluíram a execução de procedimentos cardíacos em pacientes saudáveis, oferecer luvas por remissões e explorar buracos do Medicare para reclamar centenas de milhões de pagamentos imerecidos.

Executivos pró lucro colhem remunerações principescas, sugando dinheiro da saúde. Quando o CEO [Chief Executive Officer] do Columbia/HCA se demitiu em face das investigações de fraude, partiu com uma indemnização por despedimento de 10 milhões de dólares e 324 milhões em acções da companhia. O CEO do Tenet exerceu opções de acções no valor 111 milhões de dólares pouco antes de ser forçado a sair em 2003, e o presidente da HealthSouth (o provedor dominante dos cuidados de reabilitação) fez 112 milhões de dólares em 2002, o ano anterior à sua denúncia por fraude.

Rendimentos enormes dos CEO explicam parte, mas não todos, os altos custos administrativos em empresas de cuidados de saúde pertencentes a investidores privados. Os hospitais pertencentes a investidores gastam muito menos em assistência do que os hospitais não baseados no lucro, mas os seus custos administrativos são 6 pontos percentuais superiores (reflectindo presumivelmente a sua atenção mais meticulosa a detalhes financeiros).

Altos custos administrativos e baixa qualidade também caracterizaram as HMO, as seguradoras privadas agora dominantes nos Estados Unidos. Tais planos de saúde levam 19% em despesas gerais, versus 13% em planos não baseados no lucro, 3% no programa Medicare dos EU e 1% no medicare canadiano. De modo impressionante, celebrar contratos com HMO privadas aumentou substancialmente os custos do Medicare dos EU. Na última década, a Medicare pagou prémios HMO a idosos que escolheram inscrever se em tais planos privados. De acordo com estimativas oficiais, as HMO recrutaram idosos saudáveis que, se não tivessem mudado para uma HMO, teriam custado menos à Medicare – cerca de 2 biliões de dólares menos anualmente do que os prémios HMO . Planos privados que não foram capazes de recrutar pessoas saudáveis desistiram dos seus contratos Medicare, interrompendo a assistência a milhões de idosos. A resposta de Washington? Adoçar o prato para as HMO da Medicare ao incluir 46 biliões de dólares para aumentar os pagamentos às HMO como parte da recentemente promulgada lei de prescrição de medicamentos da Medicare .

Porque é que as empresas baseadas no lucro que oferecem produtos inferiors a preços inflacionados sobrevivem no mercado? Alguns pré requisitos para o mercado livre competitivo descritos nos manuais estão ausentes nos cuidados de saúde .

Em primeiro lugar, é absurdo pensar que idosos frágeis e pacientes seriamente doentes, que consomem a maioria dos cuidados, podem agir como consumidores informados (i.e., comparar fornecedores, reduzir a procura quando os fornecedores aumentam os preços ou avaliar com acuidade a qualidade). Mesmo os pacientes menos vulneráveis podem ter dificuldade em discernir quando os acessórios luxuosos de um hospital sugerem boa assistência.

Em segundo lugar, o “produto” dos cuidados de saúde são notoriamente difíceis de avaliar, mesmo para compradores sofisticados como o governo. Os médicos e hospitais criam os dados utilizados para os monitorar; o interesse próprio põe o rigor de tais dados em questão. Ao classificar um desconforto do peito menor como “angina” em vez de “dor no peito”, um hospital dos EU pode recolher tanto pagamentos mais altos da Medicare como uma melhoria artificial nos dados registados para o tratamento da angina. É fácil e mais lucrativo explorar tais falhas do que melhorar a eficiência e a qualidade.
Mesmo para firmas honestas, a cuidadosa selecção de doentes e serviços lucrativos é a chave do sucesso, enquanto ir ao encontro das necessidades da comunidade frequentemente ameaça a rentabilidade. Por exemplo, hospitais de especialidade baseados no lucro oferecendo apenas cuidados cardíacos e ortopédicos (fazedores de dinheiro segundo os actuais esquemas de pagamento) floresceram por todos os Estados Unidos. Muitos destes novos hospitais duplicam serviços disponíveis em hospitais não baseados no lucro próximos, mas os recém chegados evitam programas não lucrativos tais como cuidados geriátricos e secções de emergência (um ponto de entrada comum para pacientes não segurados). Os ganhos crescem para os investidores, as perdas para os hospitais não baseados no lucro, e os custos totais para a sociedade sobem através da desnecessária duplicação de instalações caras.

Finalmente, um verdadeiro Mercado exigiria múltiplos compradores e vendedores independentes, com livre entrada no mercado. Contudo, muitos hospitais exercem monopólios virtuais. Um hospital único de cidade não pode competir consigo próprio, mas pode usar o seu poder de mercado para inflacionar os seus ganhos. Não é surpreendente que hospitais baseados no lucro nos Estados Unidos tenham concentrado as suas aquisições em áreas onde podem ganhar uma grande fatia do mercado local. Além disso, muitos provedores e fornecedores de cuidados de saúde usufruem de monopólios concedidos pelo Estado na forma de leis de licenciamento para médicos e hospitais e protecção de patentes para medicamentos. Ademais, o governo paga a maior parte dos custos com a saúde – mesmo nos Estados Unidos. De facto, o financiamento público para cuidados de saúde nos Estados Unidos excede as despesas totais de saúde no Canadá em termos per capita. É um mercado esquisito que depende largamente de fundos públicos.

A privatização resulta numa grande perda de saldo para a sociedade em termos de maiores custos e menor qualidade, mas alguns conseguem ganhar. A privatização cria vastas oportunidades para firmas poderosas, e também redistribui rendimentos entre trabalhadores saudáveis. Os escalões de pagamento são relativamente baixos em instituições de saúde governamentais ou não baseadas no lucro; a diferença de pagamento entre o CEO e uma dona de casa é talvez 20:1. Nas corporações dos EU, um rácio de 180:1 é a média. De facto, a privatização tira dinheiro dos bolsos dos que auferem salários baixos, sobretudo trabalhadoras da saúde, e dá o aos investidores e aos gestores bem remunerados.

Por detrás das falsas alegações de eficiência esconde-se uma verdade muito mais feia. A saúde privada incorpora um novo sistema de valores que rompe com as raízes da comunidade e a tradição samaritana dos hospitais, torna os médicos e as enfermeiras em instrumentos dos investidores, e encara os pacientes como mercadorias. A posse dos investidores marca o triunfo da avidez.
Steffie Woolhandler e David U. Himmelstein , CMAJ, jun 2004

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1 Comments:

Blogger Vítor said...

Ora aqui está um retrato do que irá acontecer a médio prazo em Portugal. Na minha humilde opinião, a passagem dos hospitais de SPA a EPE só está a beneficiar administradores de topo e os médicos que fazem CIT milionários. Todos os TDT, enfermeiros, AAM, administrativos e outros profissionais saem a perder.

11:27 da tarde  

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