quarta-feira, abril 7

A via-sacra do SNS

A trapalhada em que se encontra o SNS é um cruel exemplo dos resultados a que conduz a política suportada nas aparências e no tacticismo politiqueiro. A ausência de princípios de governação estratégica conduziu-nos a um beco sem saída. Ao invés de inovar os modelos de gestão e de trabalho no SNS apostou-se, obsessivamente, num modelo (estafado) burocrático e normativo de carreiras.
Confundiu-se segurança profissional com rigidez contratual e remuneratória. Não se percebeu a irrelevância desse caminho para as gerações mais novas de médicos.

A preocupação foi sempre o agrado às turbas sindicais. O troco foi estes se deixarem exibir em fóruns partidários como troféus de campanha eleitoral. Não perceberam que, na realidade actual fazer dos médicos meros funcionários conduz, inexoravelmente, ao precipício. Esta visão passadista da realidade tem como consequência inevitável o desastre. A seguir aos médicos virão os enfermeiros e a seguir a estes os restantes grupos profissionais. A via-sacra do SNS prossegue o seu caminho. Em desespero manda-se agora a IGAS “policiar” as unidades de saúde e os médicos que prestam serviço através de empresas. Impotentes para encontrar soluções estruturais entram no caminho do exercício gratuito e inconsequente do autoritarismo irreflectido. Quem criou o terreno fértil para a proliferação das empresas de trabalho médico “à peça” não foram os médicos. A responsabilidade por este caos é totalmente imputável aos responsáveis políticos que, nos últimos trinta anos foram, de uma forma consistente, “navegando à vista”.

Aos dirigentes políticos exige-se prevenção e não reacção. Quando se passam longos anos a iludir, a disfarçar, a adiar e a ignorar os problemas as consequências tornam-se iniludíveis.
Continuamos, por isso, resignados, a assistir ao paulatino, mas sustentado, fim do SNS.

Horus

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10 Comments:

Blogger joana said...

Os recursos são cada vez mais limitados e o crescimento dos gastos com a Saúde incontroláveis, daí que a empresarialização das unidades de saúde tivesse sido um passo inevitável em busca de modelos de funcionamento mais eficientes do sistema. A subtracção à função pública das carreiras profissionais foi o corolário lógico desta iniciativa.
Voltar a apostar no modelo burocrático das carreiras parece-me efectivamente um erro crasso porque vem apenas aumentar a despesa sem em contrapartida dar um contributo forte na resolução dos problemas.

Também acredito que a aposta devia ter sido na inovação dos modelos de gestão e de trabalho do SNS (onde estão os CRIs, a remuneração por incentivos, o aprofundamento da diferenciação e departamentalização clínica) .

O que não é solução é este marasmo em que vivemos,esta política de apaga fogos, permanentemente a reboque dos problemas, com mais ou menos simpatia maternal.

Bem haja quem tem coragem para continuar a pôr a mão na ferida.

9:09 da manhã  
Blogger Clara said...

A ministra da Saúde, Ana Jorge, admitiu ontem que a venda em unidose é um processo "difícil de implementar" e que a solução passa pelo "redimensionamento" das embalagens e não pela dispensa em quantidade individualizada do medicamento.link

JP 06.04.10

Tanto tempo para chegar a esta conclusão!
Talvez o tempo necessário para aprenderem o que é venda em unidose.

9:17 da manhã  
Blogger Tavisto said...

Joana diz: A subtracção à função pública das carreiras profissionais foi o corolário lógico desta iniciativa (empresarialização das unidades de saúde).

Por que motivo associar uma coisa à outra? A aposta nos CRI e a política de incentivos a eles ligada, já existia do tempo de Maria de Belém. O CRI da Cirurgia Torácica dos HUC, já funciona há mais de 20 anos, a reforma dos cuidados primários estabeleceu-se dentro do anterior modelo público.
Concordo que havia necessidade de desburocratizar o modelo, que deveria ter havido muito mais ambição nas novas carreiras profissionais em negociação, mas discordo em absoluto com a liberalização laboral, resultado da passagem dos profissionais ao regime de contrato individual de trabalho.
É a instituição do modelo concorrencial na prestação de cuidados de saúde; é o Estado, na sua função de prestador, a ser descartado. As nefastas consequências desta decisão ainda só começaram a despontar. No caso dos médicos e num ambiente profissional de carência nalgumas áreas, prevejo resultados desastrosos.
É minha convicção que as consequências desta política levarão precisamente ao oposto do que Joana diz pois conduzirão ao crescimento dos gastos em saúde e a maiores assimetrias sociais e geográfica, de cobertura em cuidados de saúde.

9:59 da manhã  
Blogger Clara said...

A ministra da Saúde esclareceu hoje, em Peniche, que se mantém a intenção de vir a implementar a venda de medicamentos em unidose, adiantando que o Infarmed está a estudar soluções para as “dificuldades técnicas” encontradas. link

JP 06.04.10


Ontem deixou cair, hoje mantém a intenção vir um dia a implementar a venda de medicamentos em unidose.
De trapalhada em trapalhada, isto já dói.

6:13 da tarde  
Blogger Isabel Maria said...

Como é possível?

Unidose é difícil de implementar. Indústria farmacêutica aplaude recuo na unidose. Venda de medicamentos em unidose será repensada. Ministério da Saúde deixa cair medicamentos em unidose. Farmacêuticos saúdam recuo da ministra da Saúde na unidose. Governo tenta travar saída de médicos. Ministra cede a Luís Pisco. Governo admite contratar mais clínicos estrangeiros para fazer face à falta de médicos. Ministério da Saúde com plano especial de contratação de clínicos aposentados por três anos. Médicos rejeitam proposta de excepção para reformados. Governo desconhece quanto custará medida excepcional. Enfermeiros participam em oito greves em menos de três anos. Ministério cede e chega a acordo com enfermeiros. CODU: ministério cede e chega a acordo. Governo adia construção de novas instalações do IPO. Cancelada transferência do IPO para o Parque da Bela Vista‎. Governo garante IPO na Bela Vista.

9:40 da tarde  
Blogger PhysiaTriste said...

Excelente post. Apesar de tudo, espero que Horus não venha a ter razão, quanto ao “fim sustentado do SNS”.
O tema que tratou levanta, naturalmente, a discussão sobre o regime de trabalho nos hospitais EPE.
Tal como diz a Joana “a subtracção à função pública das carreiras profissionais foi o corolário lógico da empresarialização.”
Um dos requisitos da empresarialização é, justamente, que o mercado dos factores possa funcionar.
Só que esses mercados têm de ser regulados e, no que respeita ao pessoal, o poder político foi completamente omisso.
Com a excepção do Hospital da Feira, que não veio substituir outro hospital e teve a possibilidade de recrutar os seus profissionais em regime de CIT, em todos os outros hospitais os profissionais tinham estatuto de função pública, com “rigidez contratual e remuneratória” na expressão de Horus.
Teria sido necessário criar mecanismos que promovessem a transição para o CIT, encontrar novos meios de regulação profissional, negociar o Acordo Colectivo de Trabalho e cumprir as promessas de incentivos.
Quando se não respeitam compromissos gera-se a desconfiança e, talvez por isso, foram diminutas as adesões ao CIT.
O problema é que não podemos ter o melhor de dois mundos. Um regime de função pública tradicional em ambiente empresarial é bota que não dá com a perdigota.

9:48 da tarde  
Blogger tambemquero said...

Área Metropolitana de Lisboa já tem 765 mil pessoas sem médico de família

Um em cada quatro residentes nos 18 municípios da Área Metropolitana de Lisboa (AML) não tem médico de família, segundo dados revelados ao PÚBLICO pela Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARSLVT). O problema tem crescido e poderá agravar-se em breve com a reforma de alguns clínicos.
O impacto deste défice tem sido minimizado pela criação de unidades de saúde familiar (USF), onde os profissionais envolvidos assumem o compromisso de responder às necessidades de todos os inscritos. De acordo com a ARSLVT, só a partir de 2013 é que o problema poderá começar a resolver-se, altura em que se prevê que o número de novos médicos formados em clínica geral seja superior aos que se reformam.
No final do passado mês de Fevereiro, 765.375 utentes inscritos nos centros de saúde dos 18 concelhos da AML não tinham médico de família, o que representa cerca de 24,5 por cento dos 3,299 milhões de inscritos nesta que é a região mais populosa do país. A ARSLVT recomenda, por isso, a marcação antecipada de consultas e a opção por consultas de recurso em situações súbitas e agudas. Em muitos casos, porém, o sistema já não tem capacidade de resposta e os utentes sentem-se obrigados a passar horas, de madrugada, em fi las à porta dos centros de saúde ou a recorrerem aos hospitais ou à medicina privada.
O Centro de Saúde de Santo Condestável, em Lisboa, é nesta altura o mais afectado, com mais de 56% dos seus utentes inscritos sem médico de família. Segundo os dados da ARSLVT será mesmo o único centro de saúde da AML (num total de 54 unidades) em que há mais utentes sem médico do que inscritos com médico de família atribuído. Nesta zona do centro de Lisboa há 19.872 inscritos, mas 11.179 não têm médico. O município da capital não é, todavia, dos mais afectados. Apesar de centros de saúde de maior dimensão como o do Lumiar também terem muitos utentes sem médico, a média concelhia (18,3%) é bastante favorável e inferior à da AML. Em melhor situação está o Centro de Saúde de São Mamede, onde entre os 18.769 inscritos apenas 726 não têm médico de família.
Os concelhos mais afectados estão na margem sul do Tejo, com o Montijo à cabeça (34,6% sem médico), seguido por Setúbal (32,6) e Moita (29,4). Na margem norte lidera Odivelas, com cerca de 30%, seguindo-se Amadora (28,3%). Em melhor situação na AML estão Oeiras (cerca de 15% sem médico) e o Barreiro (cerca de 17%).
A ARSLVT explica também que dos cerca de 765 mil utentes sem médico de família, perto de 27 mil não dispõem deste tipo de acompanhamento por opção própria. “O reforço do pessoal médico é uma matéria permanentemente em análise” nos serviços, afirma, mas a grande questão é mesmo “a carência de médicos” a nível nacional. “Desde que existam médicos dispostos a trabalhar em qualquer centro ou extensão de saúde, a ARSLVT tratará de estudar e assegurar a sua contratação”, garante o gabinete de comunicação da Administração Regional de Saúde responsável pela cobertura dos distritos de Lisboa, Santarém e Setúbal. Até que o número de médicos que se forma seja superior ao dos que se reformam, a ARSLVT julga que “a solução passa sobretudo pela contratação de empresas que possam assegurar médicos para a prestação de cuidados de saúde ou, como já anunciado pelo Governo, pela eventual contratação de médicos que se tenham reformado mas que estejam ainda disponíveis para continuar a trabalhar”.
A criação de USF tem sido outra das medidas estratégicas seguida pela ARSLVT (funcionam 81 na sua área), tendo em conta que o seu modelo de funcionamento “permite que os médicos de medicina geral e familiar tenham uma ‘carteira’ de utentes atribuída com um maior número de utentes do que os centros e extensões de saúde no modelo tradicional”.


JP 07.04.10

4:57 da tarde  
Blogger ochoa said...

Um post excelente.
A provar mais uma vez que o saudesa continua a ser um espaço excepcional de reflexão sobre os problemas da Saúde.
Bem hajam todos que aqui colaboram.

Também me parece errado voltarmos para trás, ou seja, apostar de novo no reforço das carreiras.
Basta perguntar, por exemplo, aos jovens médicos o que pensam sobre o recente acordo obtido pelos Sindicatos.

10:33 da manhã  
Blogger helena said...

Excelente este Horus.
Uma reflexão sintética e certeira que a senhora ministra da Saúde devia ler. Que sem bússola nem GPS dá mostras de cresente desgaste no constante apaga fogos.

10:39 da manhã  
Blogger Joaopedro said...

Excelente.
A deixar cheio de orgulho o mestre Correia de Campos.

10:35 da tarde  

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