quinta-feira, dezembro 1

Seriedade na reforma da saúde?

A versão curta do "estudo" sobre o futuro da rede hospitalar em Portugal, circulado entre jornalistas em primeira mão sob o título "Os cidadãos no centro do sistema. Os profissionais no centro da mudança" deve ser classificado como um má prática no lançamento de uma "reforma" no sector da saúde em Portugal.

O documento mais não é que um conjunto de slides de PowerPoint preparados de forma simplista, do género comercial "Health Reforms for Dummies", típico de algumas consultoras com pouco know-how no sector da saúde mas que têm vendido, e revendido, os mesmos slides a diferentes governantes da saúde durante os últimos 15 anos. Não merecendo nunca a designação de "estudo", nem mesmo de um relatório de reflexão, este conjunto de slides demonstra uma chocante ignorância sobre o histórico das dinâmicas de reforma do sistema de saúde, desrespeita a racionalidade da aprendizagem organizacional e promove uma surpreendente sensação de insegurança que nos deve aterrorizar, como cidadãos, e indignar, como estudiosos dos sistemas de saúde.

Feita a avaliação geral, vejamos alguns efeitos dos "estragos" que ameaçam estar para vir. O primeiro impacto negativo no debate sobre o futuro é promovido pelo efeito da natureza demagógica do seu título.

Na verdade, os profissionais não estiveram envolvidos na sua elaboração. Os representantes dos cidadãos, ou até doentes, também não. Portanto, o seu labelling demagógico, típico da cultura de consultoras e legítimas técnicas de vendas que as caracterizam, tem, pelo contrário, um efeito perverso no envolvimento de profissionais e utentes. Em relação a algumas das profissões, o título chega até a ser ofensivo na medida em que a diversidade das profissões da saúde não está representada no grupo de trabalho nem foi consultada durante o processo.
Um segundo efeito geral é que este documento deixa-nos atormentados e em estado de espanto indignado com uma iniciativa de "reformar" o sector hospitalar na base de um conjunto avulso de acções, algumas actividades e alguns possíveis programas, sem qualquer tipo de articulação entre si ou evidência que as justifique. Na verdade, uma mera transposição do programa do governo para um alegado documento técnico seria mais transparente e verdadeiro. Por não estar consubstanciado em nenhum tipo de políticas ou estratégia de saúde, este documento não é um documento para reflexão sobre o futuro do sistema nacional de saúde. É apenas um emaranhado de intenções que podem ou não avançar, dependendo do acaso circunstancial.
Por outro lado, na verdade, a maioria das medidas indicadas neste documento já foram testadas no sistema de saúde e já têm um histórico de aprendizagem organizacional que não devia ser ignorado.

Alguns alertas urgentes. O sistema de saúde é um sector crucial e merece pensamento sério e integrado. Pensar hospitais sem pensar processos e estruturas de respostas pré-agudas e pós-agudas é muito perigoso. Pensar hospitais públicos ignorando as respostas existentes no sector privado e social é um contributo para mais desperdício e empobrecimento nacional, dado que todos os investimentos privados e sociais contribuíram para a dívida nacional externa. Pensar processos de acesso aos serviços sem política de desenvolvimento organizacional é incoerente (como as críticas dos profissionais de saúde já demonstram). Pensar tudo isto sem repensar a política de financiamento global do sistema cria um vazio estratégico.

Qual era a intenção ao propor uma nova "carta hospitalar"? Naturalmente que, em sua vez, apareceu um emaranhado de ideias avulsas representando, sobretudo, um contributo para infindáveis polémicas desnecessárias e o início de processos muito perigosos para a segurança dos utentes. É urgente que a sociedade civil tome a iniciativa de pensar o futuro do nosso sistema de saúde e apresente alternativas a este documento vazio de novas soluções.

Ordens profissionais, associações de doentes, prestadores e universidades: o SNS necessita da vossa intervenção. Não cruzem os braços.

Paulo Moreira – Publico 30-11-2011

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