domingo, abril 22

A armadilha da sustentabilidade

 
O ministro da saúde afirma repetidamente que a sustentabilidade financeira do SNS não está garantida e que para a garantir é necessário cortar na despesa, fechar serviços e levar os portugueses a pagar mais pelos cuidados de saúde. Atenção, o ministro não está preocupado com isso, pelo contrário, esse é o seu desejo, o seu propósito, a sua política. 
O aumento das taxas moderadoras, o encerramento da MAC, o fecho de urgências, serviços hospitalares e postos de saúde, o desmantelamento do IDT, a diminuição da comparticipação do estado nos medicamentos e transportes, a redução do número de profissionais, a suspensão dos programas de recuperação das listas de espera, são a consequência mais visível da insustentabilidade invocada por Paulo Macedo.
A sustentabilidade tornou-se assim na armadilha a que recorrem todos os inimigos do SNS para justificar o seu desmantelamento e a sua redução ao mínimo dos mínimos. Uma armadilha que faz depender a sustentabilidade do SNS de uma política de redução do seu financiamento. Como se não houvesse qualquer outra alternativa.
A direita pretende reduzir a discussão da política de saúde à despesa e contas do SNS. Nenhum outro domínio do estado viu as suas contas tão esmiuçadas e analisadas. Do buraco nas contas da saúde todos os portugueses ouvem falar há muitos anos, no entanto, de outros buracos – aliás muito maiores – como o do BPN, o da Madeira ou das PPP, só muito recentemente tomaram conhecimento da sua existência e do seu impacto no desequilíbrio das contas do estado.
Tiro desta evidência uma conclusão: tanta e tão antiga atenção às contas do SNS não traduz uma genuína preocupação pela sustentabilidade do SNS – o que seguramente motiva alguns. Pôr as contas no centro da atenção, no centro do debate, no centro da política de saúde faz parte do programa dos que querem mudar o actual modelo e volume de financiamento e o paradigma do serviço público de saúde. Antes ou depois da crise financeira, os argumentos repetem-se, o que pensam e reclamam é o mesmo, antes ou depois da crise: menos despesa pública em saúde, menos SNS.
Hoje, a pressão da dívida soberana e da crise do euro tornou o SNS refém deste fundamentalismo financeiro. É com naturalidade que o ministro da saúde assume que só podemos ter os cuidados de saúde que o país pode pagar e a economia sustentar.
A prioridade das prioridades é inverter esta lógica, cujas consequências são conhecidas porque inevitáveis: cortar no financiamento, reduzir o acesso e a prestação, tratar alguns e deixar outros por tratar.
O que se exige dos responsáveis, dos governantes é exactamente o contrário: é dotar o SNS dos recursos necessários e suficientes para que ele possa responder às necessidades e à procura, não ignorando que ambas evoluem em função das mudanças sociais, demográficas, epidemiológicas e comportamentais.
O desafio da política de saúde não é adaptar as necessidades ao orçamento mas sim adequar o orçamento às necessidades e ter a capacidade de gerir o orçamento e organizar a produção de cuidados de saúde de forma eficaz e eficiente.
O desafio está na procura da eficácia e da eficiência. Não é isso que conduz hoje a política de saúde, completamente subjugada aos resultados ou ganhos financeiros e desinteressada dos resultados ou ganhos em saúde.
A questão da sustentabilidade é uma armadilha por uma outra razão. Quer do lado da despesa quer do lado da receita, os principais factores que influenciam as contas do SNS e nos aproximam ou afastam do seu equilíbrio, se quiserem da sua sustentabilidade para usar o conceito da moda dos dias que correm, são exteriores ao próprio SNS e em substância não dependem da sua organização nem mesmo da sua gestão.
A receita decorre de opções políticas dos governantes sobre a distribuição do bolo orçamental. O nível de financiamento atribuído ao SNS e à saúde é uma decisão, pode ser maior ou menor, em função das escolhas governamentais. São escolhas, não há qualquer determinismo na dotação orçamental do MS.
E podemos, ainda, falar de outras escolhas que comprometem igualmente o financiamento do SNS, mais uma vez a sua sustentabilidade. Recapitalizar a banca e não o SNS é uma escolha, uma escolha com reflexos na política de saúde. Por que não recapitalizar o SNS e não a banca?
Por outro lado, parte importante da despesa do SNS não é regulável pelo próprio SNS, decorre de factores que ele não pode influenciar. Um exemplo, a despesa em doenças oncológicas pode variar com o diagnóstico precoce. Mas decisão de fazer mais ou menos rastreios é exterior ao SNS. E o mesmo pode dizer-se sobre a educação para a saúde, a educação sexual, o planeamento familiar, a prevenção da sinistralidade nas estradas ou dos acidentes de trabalho. Tudo isto tem um enorme impacto no SNS, na sua despesa, mas o SNS não risca nada nas respectivas políticas. E quem risca – o governo, o MS e outros ministérios, pouco ou nada fazem para impor essas políticas.
Invoca-se a dívida do SNS para sustentar a tese que o SNS precisa de uma cura de emagrecimento, não se observando sequer que a dívida é a outra face do sub financiamento a que o SNS tem sido sistematicamente sujeito nos últimos anos. A dívida não condena o SNS a um atestado de insolvência. Dívida requer melhor gestão mas também mais financiamento.
Em nome da sustentabilidade – que verdadeiramente lhes é indiferente – os teóricos da tese do desperdício como regra no SNS não pretendem outra coisa que não seja reduzir o financiamento público do SNS, indiferentes às consequências negativas sobre a sua capacidade assistencial e prestação de cuidados.
Menos financiamento significa escolher o que o SNS deixará de fazer e escolher também quem ficará excluído dos serviços públicos de saúde. A terapêutica pesa na despesa, então corta-se. Os serviços não podem atender todos, então, ficam alguns de fora.
Qual o critério? Quem o define? Em que ética se fundamenta esta escolha?
A questão da sustentabilidade é uma armadilha, serve apenas de pretexto para os cortes. O doente passa a ser visto como um cidadão que vive acima das suas e das nossas possibilidades, logo a sociedade e o estado podem aliviar-se da sua responsabilidade em garantir a todos o direito à saúde.
A redução da despesa pública em saúde determinada a metro e a olho, não garante a sustentabilidade do SNS, quanto muito permitirá a sobrevivência de um SNS amputado, residual, assistencialista.
É uma ilusão pensar que a redução da despesa e do investimento público em saúde não limita o acesso, a qualidade, a eficácia e a eficiência da assistência prestada aos cidadãos. Quem recorre ao SNS sabe bem que o acesso está mais difícil, o atendimento mais demorado e os cuidados começam a perder qualidade.
Bem podem os defensores da redução da despesa pública proclamarem que o fazem para salvar o SNS. Toda a evidência revela o contrário: o SNS, como hoje o conhecemos, ficará sem salvação se não travarmos esta política.

João Semedo, esquerda net, 22.04.12