sábado, maio 12

Morrer na praia

Os Cuidados Primários de Saúde – A reforma que “morreu na praia...”

Com a abertura das primeiras quatro Unidades de Saúde Familiar (USF), em setembro de 2006, deu-se início, em termos práticos, à reforma dos Cuidados de Saúde Primários (CSP).

Mas, entre os profissionais de saúde, a sua maturação conceptual vinha a evoluir pelo menos desde 1991, data de publicação da brochura “Um futuro para a medicina familiar em Portugal” onde, genericamente, já se enunciavam os seus grandes princípios e fundamentos. Nos quinze anos que medeiam estas datas assistiu-se ao ostensivo desinteresse dos decisores políticos face às propostas progressivamente apresentadas, obstinando-se, estes, na manutenção da “ordem estabelecida” que conduzia à degradação acelerada dos serviços, à desmotivação progressiva dos profissionais e à cada vez mais gritante insuficiência na resposta às necessidades de saúde. Como exceção, é justo assinalarem-se as iniciativas da equipa Maria de Belém / Constantino Sakellarides, imediatamente anuladas pelos seus sucessores e só retomadas em março de 2005, com a consagração desta reforma como compromisso da governação.

Em 30 de janeiro de 2012 contabilizavam-se 316 USF em funcionamento, dando cobertura a 3 918 659 cidadãos (37% da população) e envolvendo 6 165 profissionais – em termos médicos, 49,5% dos atuais médicos de família (MF) do Serviço Nacional de Saúde.

Mas, o que são as USF?

São pequenas equipas auto-propostas para a prestação de cuidados de Medicina Familiar que, inseridas no Centros de Saúde de origem, integram, em média, sete MF, sete enfermeiros e seis assistentes administrativos, sendo detentoras de autonomia organizacional e funcionando num quadro de contratualização de objetivos assistenciais.

Estava, deste modo, quebrado o modelo burocrático e de comando-controlo, tradicional dos CS e da administração pública, em geral.

E que ganhos trouxeram as USF, relativamente ao “modelo tradicional”?

Desde logo, ganhos de acesso aos cuidados, ao garantir-se aos cidadãos nelas inscritos a observação pelo seu médico, no próprio dia ou, na sua ausência, por mecanismo de “intersubstituição”; em termos de acesso, ainda, aumentaram, por redimensionamento dos ficheiros, a cobertura a mais 486.509 cidadãos. O seu desempenho assistencial apresenta melhores indicadores, em termos globais e, especificamente, no seguimento da hipertensão, diabetes, vacinação e saúde da mulher e da criança. Finalmente, averbam incontestados ganhos de eficiência na prescrição de medicamentos e meios auxiliares de diagnóstico. Tudo isto sem convulsões, sem roturas assistenciais e com manifesta adesão dos profissionais e utilizadores

Mas a construção das USF era, tão-somente, uma (decisiva, é certo) parte da reforma.

“Descongelada” que estava a “velha ordem” e a máquina administrativa que lhe dava suporte, importava, então, que se passasse à criação das restantes unidades funcionais previstas para a nova organização dos Centros de Saúde – os Agrupamentos de Centros de Saúde (ACES). Essas unidades, umas assistenciais, outras de back office, funcionariam, também elas, à luz dos novos princípios gestionários já em prática nas USF.

Os ACES, que tomavam por dimensão populacional os 50 mil a 200 mil cidadãos, estava consagrado, seriam dotados de autonomia gestionária e financeira, sendo enquadrados pela contratualização com as Administrações Regionais de Saúde, agora não mais “ donas e patroas” dos serviços porque reconvertidas em órgãos de planeamento e gestão estratégica, incluindo serviços de utilização comum.

Mas, é exatamente aqui que se inicia o refluxo da reforma!

Com a demissão coletiva de oito dos doze elementos da Unidade de Missão para a Reforma dos Cuidados de Saúde Primários (abril de 2008) e com a entrada de Ana Jorge para a gestão do Ministério da Saúde. Isto porque, ao colocar-se na agenda a construção dos ACES - desde sempre encarados pela administração tradicional como um perigo para a sua dominação burocrática - a cedência dos governantes foi total!

A ilustrá-lo está o facto de o então Presidente da Administração Central dos Serviços de Saúde (ACSS) – Manuel Teixeira, o atual Secretário de Estado da Saúde – ter proposto que os ACES funcionassem com um “fundo de maneio”...

Mesmoque a gestão de Ana Jorge afirmasse o seu compromisso com a reforma, o facto é que os ACES, então já formalmente criados, foram mortalmente descaracterizados mediante a (re)captura por parte da “velha administração”. Daí, a decorrente degenerescência da reforma.

Com a entrada de Paulo Macedo na pasta da Saúde, a situação de imobilismo manteve-se.

Numa primeira fase, com uma atitude de passividade perante o seu soçobrar; posteriormente, com a insinuação de medidas que, não a contradizendo no plano formal, na prática a irão destruir.

Quais são elas?

- O fim anunciado dos ACES que, ao invés de serem reconfigurados à luz dos seus princípios fundadores, se veem substituídos por “novos” ACES, de muito maior dimensão, que os aproxima da velha estrutura regional e local de organização/gestão dos serviços;

- A degradação acelerada da contratualização a todos os níveis;
- A “mexida” unilateral na política de incentivos às USF, com a fundada promoção da desconfiança dos profissionais que as ousaram construir;
- O anúncio de aumento da dimensão da listas de utentes em 10 ou 20%, conforme se trate de USF ou de unidades ainda incluídas no sistema tradicional, uma forma “esperta” de, no final do seu mandato, Paulo Macedo vir anunciar que “já não há portugueses sem médicos de família”. Mesmo que, para tal, sacrifique o acessoe a qualidade dosserviços pela sobrecarga induzida;
- A incapacidade de dar respostas adequadas à necessária reconfiguração das unidades ainda a funcionarem segundo o “modelo tradicional”;
- A insinuação da abertura de USF à exploração privada;
- A incapacidadede responder adequadamente à rarefação de médicos de família – 4 460, hoje, contra os 5 491 registados em 2002;
- A precarização do acesso, através do encerramento de alargamentos de horário “fora de horas” e aos fins-de-semana e feriados.
- A proliferação de nomeações para as estruturas-chaves da administração de pessoas tecnicamente impreparadas e completamente desalinhadas com os princípios da Reforma.

Tudo isto anunciado sibilina e avulsamente, sem que o Ministério tenha clarificado quais as linhas estratégias para o sector.

Em síntese, é desde já adquirido que a reforma dos cuidados de saúde primários “morreu na praia”. Para dar lugar às inconfessadas linhas mestras desta governação: o centralismo, o racionamento e o esboçar, por enquanto tímido, de soluções privatizadoras.

António Rodrigues link

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2 Comments:

Blogger Clara said...

O secretário de Estado Adjunto do Ministro da Saúde afirmou esta quinta-feira que o Governo "não quer abdicar" do Serviço Nacional de Saúde, mas frisou ser necessário "sustentabilidade" e apontou as Unidades de Saúde Familiar como "modelo a seguir", avança a agência Lusa.

Por ocasião do quarto Encontro Nacional das Unidades de Saúde Familiar (USF), em Guimarães, Fernando Leal da Costa deixou a garantia de continuidade do Serviço Nacional de Saúde (SNS), mas apontou uma condição: "Nós não queremos abdicar do nosso SNS, mas temos que criar condições para que seja sustentável".

Sobre a rede de cuidados de saúde, o governante referiu que "este Governo pretende centrar a prestação de cuidados de saúde nos cuidados primários", embora tenha admitido que "este é um caminho difícil".

Além da rede de cuidados primários, o governante apontou as USF como "o modelo a seguir", reconhecendo o "sucesso" destes agregados.
"São um bom laboratório de aprendizagem que se caracteriza por uma capacidade de realizar auditorias internas e serem capazes de se avalia a elas próprias", explanou.

Salientando o "carácter multidisciplinar" das USF e a importância de "todos os profissionais de saúde", o adjunto do ministro Paulo Macedo adiantou que "está a ser desenvolvido um modelo de contratualização e criados mecanismos para agilizar a colocação de médicos nas unidades de cuidado de saúde primários e USF".

Estas afirmações de Leal da Costa foram proferidas depois de o presidente da Comissão Cientifica do encontro ter apontado a "precariedade" dos postos de trabalhos de alguns profissionais de saúde.

Henrique Botelho deixou ainda críticas ao Governo ao afirmar que "a administração está longe de ser um exemplo de cumprimento dos compromissos assumidos".
Sobre o SNS, Botelho afirmou que a sua sustentabilidade "passa pelas USF, ao conjugarem proximidade com qualidade"

Aliás, disse, "até a ‘troika’ recomendou seguir este modelo, como forma de reduzir custos e melhorar a prestação de cuidados”.

O quarto Encontro Nacional de USF reuniu, este ano, mais de 1.000 profissionais de saúde.

11/05/2012

3:00 da tarde  
Blogger DrFeelGood said...

No âmbito da reforma dos Cuidados de Saúde Primários (CSP), o Ministério da Saúde anuiu a uma pretensão da Ordem dos Enfermeiros (OE) e investiu na criação de um novo paradigma de cuidados: as Unidades de Cuidados na Comunidade (UCC). Visando a melhoria contínua da saúde de grupos populacionais determinados pela área geográfica, as UCC prestam cuidados de saúde e fornecem apoio psicológico e social, no domicílio e na comunidade, a pessoas de todas as idades — dedicando, no entanto, uma atenção especial às famílias e aos grupos de maior risco e vulnerabilidade.

Assentando no modelo de adesão voluntária por parte dos profissionais, a criação de UCC veio responder aos anseios dos enfermeiros que há muito defendiam o aprofundamento da sua intervenção comunitária. Na primeira fase das candidaturas — que decorreu sensivelmente no espaço de cinco meses e terminou em setembro de 2009 — surgiram 225 candidaturas. Este facto demonstrou inequivocamente o entusiasmo que estas unidades representavam junto dos profissionais — principais agentes de mudança.

Três anos mais tarde, é com alguma tristeza que constatamos alguma estagnação neste processo: até 30 de abril deste ano existiam 158 UCC em atividade, o que corresponde a 57,9% do total de candidaturas entregues até àquela data.

Desde o primeiro momento, foram relatadas dificuldades na mobilidade dos profissionais — que maioritariamente são enfermeiros, mas também médicos, psicólogos, fisioterapeutas, assistentes socais, nutricionistas, terapeutas da fala e terapeuta ocupacional, entre outros. Atualmente não se cumpre o preconizado de um enfermeiro para 5000 residentes.

Também foram relatados problemas na afetação de espaços e recursos materiais. Sabemos que o contexto socioeconómico do País acarreta limitações, mas acreditamos que esta é uma aposta ganha a todos os níveis.
Pela sua natureza, estas unidades são imprescindíveis para aumentar o acesso aos cuidados de saúde — porque a intervenção é feita nas escolas, nos domicílios, nos locais de trabalho e na unidade de saúde. E isso é tanto mais importante numa altura em que, por dificuldades económicas, a população poderá enfrentar dificuldades acrescidas.

Por outro lado, ao prestar cuidados a doentes crónicos e acamados, a crianças com problemas de desenvolvimento, a preparar adultos para a parentalidade, não só se identificam precocemente as necessidades, e as intervenções têm outro impacto, como se impede o recurso aos serviços de urgência hospitalares. Cuida-se das pessoas no seu espaço — na sua comunidade. E isso acarreta retorno socioeconómico inequívoco.

A vontade dos profissionais existe, a necessidade de cuidados de saúde dos utentes é real, pelo que urge que as UCC tenham as condições favoráveis ao seu desempenho, assegurando cuidados de saúde de excelência à população.

É igualmente indispensável adequar os sistemas de informação à realidade destas unidades, de forma a que os indicadores de desempenho das UCC se traduzam em dados concretos — algo que é fundamental para os decisores políticos.

Assinala-se hoje, 12 de maio, o Dia Internacional do Enfermeiro. Por considerar que as UCC assumem um carácter inovador e podem fazer toda a diferença junto da comunidade, deixo uma palavra de apreço aos profissionais nelas envolvidos. Deixo, igualmente, um apelo aos decisores políticos para não deixarem de investir num modelo que se focaliza na pessoa/cliente e no seu ambiente vivencial.
germano sousa, JP 12 05.12

1:46 da manhã  

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