terça-feira, junho 19

Carta aberta ao ministro da Saúde

Senhor Ministro da Saúde, Dr. Paulo Macedo. Endereço-lhe esta carta aberta na sequência do seu último comunicado e do discurso lido, em seu nome, na sessão de apresentação do Relatório de Primavera 2012, do Observatório Português dos Sistemas de Saúde (OPSS), na passada quinta-feira, num dos auditórios da Fundação Gulbenkian. Faço-o na condição de coordenador científico daquele relatório.
Nesta conjuntura gostaria de lhe dizer o seguinte:

1. Põe em causa o Senhor Ministro o título do Relatório "um país em sofrimento". Diz que o Relatório não o demonstra - ter-se-á limitado a citar meros artigos de jornal.
Para o Observatório o evidente sofrimento do País foi um ponto de partida, que requer estudo e análise continuada dos efeitos da crise sobre o sistema de saúde português. E o que dizem esses meros artigos dos jornais? Desemprego, precariedade, falências, perdas de casas por impossibilidade em pagá-las, endividamento, perda de rendimentos das famílias, aumentos de preços, banco alimentar sobrecarregado...
O Senhor Ministro tem alguma dúvida de que o País esteja em sofrimento?

2. Diz o Senhor Ministro que o Observatório tem pouca legitimidade para criticar o Memorando de Entendimento com a troika, e as suas consequências, porque os seus membros teriam participado nas negociações que lhe deram origem.
Não é verdade. A verdade é outra: como bem sabe, os técnicos da troika ouviram, no decurso da elaboração do Memorando, várias organizações e associações técnico-científicas, entre as quais o Observatório. Este foi recebido por um técnico, da área financeira da Comissão Europeia. Numa troca de impressões com o Sr. Ministro, há meses, por sua iniciativa, relatei-lhe este encontro, para ilustrar de forma crítica o pensamento da troika. O ponto principal dos comentários do Observatório ao técnico da troika foi o de chamar a atenção para a necessidade de se investir na qualidade dos instrumentos da governação da saúde (análise e direção estratégica). O nosso interlocutor não mostrou grande interesse por esse tema. Quando chegou ao tema do custo dos transportes dos doentes, começou a tirar apontamentos. O ponto de vista do OPSS, foi, e é, a de que a questão do transporte de doentes em viaturas não medicalizadas deve estar sob a coordenação e responsabilidade das autarquias locais (com o respetivo financiamento). Algum tempo mais tarde lemos no Memorando a decisão, muito pouco inteligente, de simplesmente cortar um terço nos custos dos transportes.
Não entendo com que base o Senhor Ministro pôde afirmar que os investigadores do OPSS tiveram responsabilidades na negociação/elaboração do Memorando.

3. Compreendendo as dificuldades da atual situação, o Observatório, no âmbito do seu principal objetivo - contribuir para a melhoria da qualidade da governação da saúde -, por sua iniciativa, procurou manter-se em contacto com o Ministro da Saúde no decurso da elaboração do Relatório (e não me estou a referir aos dados que o OPSS pediu e não obteve) - dois exemplos do passado recente:
- O OPSS pediu informação ao MS sobre a existência de um sistema de monitorização e alerta sobre os efeitos da crise sobre a saúde, e também eventuais respostas locais integradas, da saúde com a ação social, para responder às situações emergentes.
Não obteve resposta.
Mas é um facto que não existem indícios de que o Ministério da Saúde tenha feito, em tempo, uma análise prospetiva dos efeitos da crise na saúde, que tenha estabelecido um sistema de monitorização para esse efeito ou que tenha adotado estratégias locais integradas para os contrariar.
- Mais tarde, pedi pessoalmente uma entrevista ao Senhor Ministro no sentido de o alertar para o facto de a nossa análise apontar para o sério inconveniente de, nas atuais circunstâncias, o País não dispor de uma Estratégia/Plano de Saúde, e também para sinais preocupantes relativos à reforma dos cuidados de saúde primários.
O Senhor Ministro está naturalmente no seu direito de não considerar isso relevante.

4. Diz o Sr. Ministro que as conclusões do Observatório relativas às dificuldades crescentes dos portugueses em aceder a cuidados médicos e medicamentosos não correspondem à realidade. E nesse contexto utiliza expressões, no mínimo, pouco razoáveis em relação à Associação das Unidades de Saúde Familiar, como se o Observatório tivesse baseado a sua análise nos seus pontos de vista. O Observatório nada pediu, a não ser os endereços dos seus 1600 associados. Aproveito, no entanto, a oportunidade para acrescentar que esta Associação reúne uma parte considerável dos maiores impulsiona- dores da mais importante reforma do SNS, hoje em sérios riscos de degradação.
Os investigadores que contribuem para o trabalho do Observatório sabem bem o que é investigação em saúde e fazem-na nas universidades onde ensinam. No âmbito do Observatório, uma vez por ano, esses investigadores são chamados a ajuizar a situação da saúde, com base no melhor conhecimento disponível, nesse momento. É isto o que os Observatórios fazem.

5. Sobre o fenómeno do racionamento implícito, o OPSS recolheu e reportou indícios.
A Ordem dos Médicos anunciou que está a investigar denúncias de racionamento.
O Senhor Ministro tem a certeza de que nada se passa.

6. O Observatório preocupou-se, como lhe compete, em assinalar e realçar os aspetos positivos e marcantes do trabalho do Ministério da Saúde. O Senhor Ministro não reconhece nenhuma das insuficiências que o OPSS aponta.
Finalmente, Senhor Ministro, não posso deixar de lhe dizer que o tom, o teor, a linguagem, a seriedade intelectual do Relatório e a compostura do OPSS contrastam de tal forma com os conteúdos do seu comunicado e do discurso lido em seu nome, que desaponta penosamente aqueles que sempre manifestaram por si a maior consideração.

CONSTANTINO SAKELLARIDES, Professor catedrático jubilado da Escola Nacional de Saúde Pública, DN 17.06.12 link

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