sexta-feira, agosto 31

Manuel Antunes, medicina pública

E essa escolha pelo SNS foi consciente? 
Quando cheguei a Coimbra, vinha da África do Sul, onde estive quase 14 anos, num sistema que era essencialmente de exclusividade. Lá não se falava em exclusividade, o sistema era assim. Havia a possibilidade de o diretor de serviço convidar gente que estava exclusivamente na atividade privada, digamos, a vir fazer uma demonstração. Podia convidar alguém para vir trabalhar uma manhã ou duas por semana no serviço em que essa pessoa viria fazer cirurgia muito específica ou vinha ensinar os residentes. Mas havia uma separação completa entre o público e o privado. Eu ascendi ao lugar de diretor serviço e professor titular da cadeira, o equivalente ao catedrático aqui, porque o meu diretor resolveu ir para a clínica privada. Já vim com esse estilo, que é mais ou menos americano, um estilo inglês com grandes influências americanas. Depois vim para aqui, e na altura, diria que 99% dos médicos que trabalhavam nos hospitais públicos trabalhavam também em clínica privada. Achei que não estaria interessado nisso, logo no início. Vinha para construir um novo serviço e não via nenhum conveniente. Previ que para o tipo de atividade que queria fazer, em termos pedagógicos, dedicar-me exclusivamente ao SNS era suficiente. Tem algumas outras vantagens. Durante estes 30 anos, embora os doentes me considerassem o seu médico, nenhum deles era meu doente exclusivo. Era doente da equipa. Aconteceu inúmeras vezes sair da sala de operações diretamente para o carro ou para o comboio para apanhar um avião, em Lisboa, duas horas mais tarde, até antes mesmo de o doente sair da sala de operações. Tinha uma equipa que tomava conta dos doentes durante a minha ausência. Se o indivíduo trabalha em privado, o doente é seu doente e tem a responsabilidade própria, não a pode verdadeiramente delegar em ninguém. Portanto, isso tem muita vantagem. E depois a gente trabalha em equipa - ainda hoje é assim depois de eu sair -, há uma reunião todos os dias em que são discutidos os casos do dia seguinte. Embora a minha opinião fosse sempre de maior peso, a opinião dos outros todos contava. Cada um dava a sua opinião e eu poderia dizer, e disse-o muitas vezes, "tem razão, não estava a pensar bem". Tudo isso tem vantagens que o sistema privado, tal como existe em Portugal, não tem. Já começa a haver um ou dois hospitais privados - em Lisboa, no Porto, até em Coimbra - que começam a querer funcionar assim, mas verdadeiramente não têm equipas, podem depois pedir a opinião uns dos outros, mas não têm esta consistência de equipa que tem o hospital público, ou melhor, que têm alguns serviços do hospital público. Porque uma das criticas que faço ao hospital público é e isto talvez seja uma caricatura, mas costumava dizer que quando um indivíduo se torna especialista a primeira coisa que faz é perguntar - na cirurgia - 'quais são os meus dias de sala de operações e quais são as minhas camas e qual é o meu dia de consultas'. Fala-se muito das tiras no serviço, 'esta é a tira do não sei quantos' e às vezes a gente tem serviços onde há uma parte das camas completamente ocupadas e aquele cirurgião ou aquele médico não pode fazer mais, apesar de haver camas vazias porque as camas não lhe pertencem, não estão sob a sua responsabilidade. Não foi nunca dessa maneira que trabalhámos aqui, e eu chamei a atenção para isso várias vezes. 
 Manuel Antunes: "Já abri 45 mil corações e nunca lá encontrei o amor", DN 20/08/2018 
 Num momento em que alguns pretendem misturar medicina pública, privada e social, como se de uma e a mesma coisa se tratasse, deixando a escolha a critério do cidadão/doente, Manuel Antunes diz bem o que as diferencia em termos de prática profissional. Espera-se que os decisores políticos percebam a diferença e não consintam no retrocesso que alguns pretendem imprimir ao exercício da medicina hospitalar.
Tavisto

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