Entrevista
A Gestão Hospitalar n.º 21, publica uma entrevista do professor António Vaz Carneiro, cheia de interesse e algumas afirmações polémicas. O que é sempre bom para o debate permanente da Saúde. entrevista completa - link PDF - link
Gestão Hospitalar (GH) – Que tipo de medicina é que se pratica em Portugal?
António Vaz Carneiro (AVC) – No meu sentir, a medicina portuguesa é de bastante boa qualidade. Digo isto porque há índices objectivos que nos mostram tal. De uma maneira geral, nas áreas mais importantes nós temos serviços de saúde de boa qualidade. Como é óbvio, haverá áreas mais bem providas que outras…
GH – Como por exemplo?
AVC – O mundo cardiovascular todo, até pela sua importância, tem serviços mais avançados e com melhores resultados que outros que sejam mais raros ou mais complexos de montar, nomeadamente, as tecnologias que são muito dispendiosas. Os dados objectivos, nomeadamente, em termos de saúde pública, são bons. (…)
GH – Recordando os 46 milhões de americanos sem cuidados de saúde. Acha que as medidas que o actual Governo está a tomar e a tendência para se apontar os seguros de saúde complementares como a saída, acha que Portugal está a ir pelo mesmo caminho?
AVC – Não necessariamente. Não sou um político de saúde nem um gestor…
GH – Mas tem uma opinião.
AVC – Tenho. Não acho necessariamente uma ideia má que nós paguemos suplementarmente a saúde, para além dos impostos que pagamos. A maior parte dos portugueses continua a estar completamente isenta e não me repugna pensar que as classes média e média alta possam pagar extra. Pessoalmente, não tenho qualquer problema em chegar a um hospital público e pagar uma taxa moderadora. (...)
GH – O argumento é válido para o encerramento dos blocos de partos, serviços de urgência, SAPs?
AVC – Absolutamente! Nesse aspecto, sinto que a maneira como o processo de decisão política foi levado, parece-me exemplar. É criado um conjunto de 'experts', que se assumem como tal, dão aconselhamento técnico profissional ao ministério e este segue. Não me parece haver outra maneira de ter uma decisão racional.
É claro que as pessoas vão sempre pensar que vão ser prejudicadas, mas não é possível termos recursos para toda a gente por igual. Nisso concordo inteiramente com o que está a ser feito! Porque me parece que o processo é muito inteligente. Nada disto está a ser feito em gabinetes fechados, são métodos de decisão perfeitamente transparentes e eu apoio isso. Mesmo que isso possa ter preços políticos.
Apesar de tudo, não acho que a decisão política deva ser baseada na evidência científica apenas. Estas decisões têm factores políticos, culturais, económicos. Mas, se vou tomar uma decisão de fundo, como melhorar a qualidade do sistema que me obriga a fechar blocos de partos, a fechar serviços de urgências, como é que posso encolher os ombros e não o fazer?
As pessoas não se convenceram ainda que não há dinheiro para tratar toda a gente a cem por cento. Não é possível! Não há nenhum país do mundo que consiga assegurar os cuidados de ponta a toda a gente. O que nós queremos é uma média boa.
GH – Não se revê nas críticas ao ministro da Saúde de falta de diálogo, vindas, por exemplo dos autarcas?
AVC –Os autarcas conhecem bem as populações locais mas os autarcas não pagam a saúde. Ou nós temos a capacidade de fazer uma descentralização absoluta dos serviços de saúde e dizemos aos autarcas vocês passam a ter este 'budget', temos uma política nacional e não pode haver 500 TAC's, mas os senhores fazem o que entendem com o vosso hospital, isto é, organizem-se e aos serviços de saúde e nessa altura eu aceito todas as críticas dos autarcas. O que eu acho absolutamente inaceitável que depois de um processo bem feito, bem explicado - e ao contrário do que eles diziam, eu acho que o ministro explicou bem - que os autarcas venham com os seus interesses locais. Faz parte da política mas isso não me parece legítimo.
Quando um serviço de partos é cuidadosamente analisado e se sabe que é preciso um número mínimo de X partos por ano para garantir a qualidade do que se está a fazer, como é possível que se diga que se quer manter esse serviço de obstetrícia aberto? Por mais incómodos que as pessoas tenham, mais vale ter o parto com mais segurança, nem que tenha de me deslocar 50 quilómetros, do que para minha comodidade fazer dois quilómetros e arriscar-me a ter complicações obstétricas para a mãe e o filho.(…)
GH – Em que se baseou o trabalho que apresentou na IIª Conferência de Farmacoeconomia?
AVC – Pediram-me para responder a pergunta simples: o que é que um gestor hospitalar deve saber, por exemplo, sobre a introdução de novos medicamentos hospitalares. Estes são medicamentos de eficácia comprovada, de manuseamento e seguranças difíceis, para doenças uniformemente graves. O problema que se põe hoje com medicamentos, quer hospitalares quer não, é que quando aparece um novo, ele vem para um grupo onde já dois, três, seis. A questão é saber o que é que ele traz de novo, a mais, para a patologia que vamos tratar. Isto é, devo ou não devo - eu, gestor - introduzir no meu hospital esta molécula, que é habitualmente muito dispendiosa. Os medicamentos hospitalares baratos que há são os clássicos, os novos não são baratos. O que eu defendo é que existem hoje metodologias, informação, que permite fazer aquilo que fizemos com as estatinas com todos os medicamentos.
Por exemplo, os anti-hepatite B crónica, que são quatro medicamentos. Eu sou um gestor e de repente aparece um medicamento novo. Como é que eu sei que o devo utilizar, em que subgrupo de doentes, haverá restrições em termos terapêuticos, ou seja, efeitos secundários que eu vou ter de tratar? Para responder a isto só há uma hipótese e foi isso que defendi na Conferência: as pessoas devem fazer revisões sistemáticas da literatura ou sobre as moléculas individuais ou sobre as patologias. Sabendo nós que o 'gold standard' da determinação da eficácia de uma terapêutica é o ensaio clínico caracterizado por objectivo controlado - o 'Randomized Clinical Trial' (RCT) – quantos RCT é que tenho dessa molécula? Em que amostras é que foram feitas? Posso combinar estes estudos todos? Quando surge este novo medicamento devo pensar se vale a pena introduzi-lo em termos de eficácia, de segurança. E o custo/eficácia justifica a diferença ou não? Tenho doentes em que consigo provar a sua eficácia e que esse impacto deve ser pago?
Há uma fase disto que eu defendo que deve ser feito a montante, pelo INFARMED, mas há uma fase que deve ser feita no hospital. Não me parece possível estar à espera de um instituto central que se iria criar para produzir isto, porque cada hospital cobre uma população diferente. Para decidir bem, neste campo, é indiscutível lançar mão da ciência.
GH – Não acha que actualmente essas decisões são muito mais economicistas que outra coisa?
AVC – Acho que deve ser o medicamento mais barato desde que não baixe a qualidade. E muito daquilo que a gente faz não necessita de medicamentos novos. Para certos subgrupos de doentes sim, mas para a grande quantidade de doentes de muitas patologias não é preciso o último medicamento.
Entrevista de Marina Caldas, GH n.º 21, Out 06
Gestão Hospitalar (GH) – Que tipo de medicina é que se pratica em Portugal?
António Vaz Carneiro (AVC) – No meu sentir, a medicina portuguesa é de bastante boa qualidade. Digo isto porque há índices objectivos que nos mostram tal. De uma maneira geral, nas áreas mais importantes nós temos serviços de saúde de boa qualidade. Como é óbvio, haverá áreas mais bem providas que outras…
GH – Como por exemplo?
AVC – O mundo cardiovascular todo, até pela sua importância, tem serviços mais avançados e com melhores resultados que outros que sejam mais raros ou mais complexos de montar, nomeadamente, as tecnologias que são muito dispendiosas. Os dados objectivos, nomeadamente, em termos de saúde pública, são bons. (…)
GH – Recordando os 46 milhões de americanos sem cuidados de saúde. Acha que as medidas que o actual Governo está a tomar e a tendência para se apontar os seguros de saúde complementares como a saída, acha que Portugal está a ir pelo mesmo caminho?
AVC – Não necessariamente. Não sou um político de saúde nem um gestor…
GH – Mas tem uma opinião.
AVC – Tenho. Não acho necessariamente uma ideia má que nós paguemos suplementarmente a saúde, para além dos impostos que pagamos. A maior parte dos portugueses continua a estar completamente isenta e não me repugna pensar que as classes média e média alta possam pagar extra. Pessoalmente, não tenho qualquer problema em chegar a um hospital público e pagar uma taxa moderadora. (...)
GH – O argumento é válido para o encerramento dos blocos de partos, serviços de urgência, SAPs?
AVC – Absolutamente! Nesse aspecto, sinto que a maneira como o processo de decisão política foi levado, parece-me exemplar. É criado um conjunto de 'experts', que se assumem como tal, dão aconselhamento técnico profissional ao ministério e este segue. Não me parece haver outra maneira de ter uma decisão racional.
É claro que as pessoas vão sempre pensar que vão ser prejudicadas, mas não é possível termos recursos para toda a gente por igual. Nisso concordo inteiramente com o que está a ser feito! Porque me parece que o processo é muito inteligente. Nada disto está a ser feito em gabinetes fechados, são métodos de decisão perfeitamente transparentes e eu apoio isso. Mesmo que isso possa ter preços políticos.
Apesar de tudo, não acho que a decisão política deva ser baseada na evidência científica apenas. Estas decisões têm factores políticos, culturais, económicos. Mas, se vou tomar uma decisão de fundo, como melhorar a qualidade do sistema que me obriga a fechar blocos de partos, a fechar serviços de urgências, como é que posso encolher os ombros e não o fazer?
As pessoas não se convenceram ainda que não há dinheiro para tratar toda a gente a cem por cento. Não é possível! Não há nenhum país do mundo que consiga assegurar os cuidados de ponta a toda a gente. O que nós queremos é uma média boa.
GH – Não se revê nas críticas ao ministro da Saúde de falta de diálogo, vindas, por exemplo dos autarcas?
AVC –Os autarcas conhecem bem as populações locais mas os autarcas não pagam a saúde. Ou nós temos a capacidade de fazer uma descentralização absoluta dos serviços de saúde e dizemos aos autarcas vocês passam a ter este 'budget', temos uma política nacional e não pode haver 500 TAC's, mas os senhores fazem o que entendem com o vosso hospital, isto é, organizem-se e aos serviços de saúde e nessa altura eu aceito todas as críticas dos autarcas. O que eu acho absolutamente inaceitável que depois de um processo bem feito, bem explicado - e ao contrário do que eles diziam, eu acho que o ministro explicou bem - que os autarcas venham com os seus interesses locais. Faz parte da política mas isso não me parece legítimo.
Quando um serviço de partos é cuidadosamente analisado e se sabe que é preciso um número mínimo de X partos por ano para garantir a qualidade do que se está a fazer, como é possível que se diga que se quer manter esse serviço de obstetrícia aberto? Por mais incómodos que as pessoas tenham, mais vale ter o parto com mais segurança, nem que tenha de me deslocar 50 quilómetros, do que para minha comodidade fazer dois quilómetros e arriscar-me a ter complicações obstétricas para a mãe e o filho.(…)
GH – Em que se baseou o trabalho que apresentou na IIª Conferência de Farmacoeconomia?
AVC – Pediram-me para responder a pergunta simples: o que é que um gestor hospitalar deve saber, por exemplo, sobre a introdução de novos medicamentos hospitalares. Estes são medicamentos de eficácia comprovada, de manuseamento e seguranças difíceis, para doenças uniformemente graves. O problema que se põe hoje com medicamentos, quer hospitalares quer não, é que quando aparece um novo, ele vem para um grupo onde já dois, três, seis. A questão é saber o que é que ele traz de novo, a mais, para a patologia que vamos tratar. Isto é, devo ou não devo - eu, gestor - introduzir no meu hospital esta molécula, que é habitualmente muito dispendiosa. Os medicamentos hospitalares baratos que há são os clássicos, os novos não são baratos. O que eu defendo é que existem hoje metodologias, informação, que permite fazer aquilo que fizemos com as estatinas com todos os medicamentos.
Por exemplo, os anti-hepatite B crónica, que são quatro medicamentos. Eu sou um gestor e de repente aparece um medicamento novo. Como é que eu sei que o devo utilizar, em que subgrupo de doentes, haverá restrições em termos terapêuticos, ou seja, efeitos secundários que eu vou ter de tratar? Para responder a isto só há uma hipótese e foi isso que defendi na Conferência: as pessoas devem fazer revisões sistemáticas da literatura ou sobre as moléculas individuais ou sobre as patologias. Sabendo nós que o 'gold standard' da determinação da eficácia de uma terapêutica é o ensaio clínico caracterizado por objectivo controlado - o 'Randomized Clinical Trial' (RCT) – quantos RCT é que tenho dessa molécula? Em que amostras é que foram feitas? Posso combinar estes estudos todos? Quando surge este novo medicamento devo pensar se vale a pena introduzi-lo em termos de eficácia, de segurança. E o custo/eficácia justifica a diferença ou não? Tenho doentes em que consigo provar a sua eficácia e que esse impacto deve ser pago?
Há uma fase disto que eu defendo que deve ser feito a montante, pelo INFARMED, mas há uma fase que deve ser feita no hospital. Não me parece possível estar à espera de um instituto central que se iria criar para produzir isto, porque cada hospital cobre uma população diferente. Para decidir bem, neste campo, é indiscutível lançar mão da ciência.
GH – Não acha que actualmente essas decisões são muito mais economicistas que outra coisa?
AVC – Acho que deve ser o medicamento mais barato desde que não baixe a qualidade. E muito daquilo que a gente faz não necessita de medicamentos novos. Para certos subgrupos de doentes sim, mas para a grande quantidade de doentes de muitas patologias não é preciso o último medicamento.
Entrevista de Marina Caldas, GH n.º 21, Out 06
4 Comments:
Aqui temos indefectível apoiante de CC.
AVS e CC são personaliddes que navegam nas mesmas águas, a investigação da saúde.
Certamente terá achado interessante o exemplo do maço de tabaco. Também se enfada com o protesto das associações de doentes e das populações locais ao fecho da urgências e das maternidades.
Vê os clínicos gerais como uns campónios da classe fáceis de motivar.
Os utentes são uma abstracção que justificam projectos de investigação, bolsas, financiamentos institucionais e publicações em revistas internacionais.
Isto das elites tem que se lhe diga...
Trata-se de uma excelente entrevista recheada de interesse.
AVC aborda as questões técnicas com a simplicidade dos profundos conhecedores: medicina em potugal, investigação, avaliação do medicamento.
Quando, forçado pela jornalista, intervém na política de saúde, mete água.
AVC não é efectivamente um político nem gestor.
Cara Siracusa,
A polémica é sempre benvinda quando se trata de debater ideias.
Há quem entenda a polémica com o andar à sarrafada.
E pelo que se viu no diálogo com o guidobaldo, baixar o nível da discussão parece ser a sua especialidade.
Parece-me que a siracusa é também das que chumbou no acesso à ENSP.
É tentar novamente.
Os novos medicamentos, afinal, só são mais caros?!
Aí está um bom apoiante de CC. Que fará AVC com os seus doentes?
O mundo cardiovascular entretanto tem serviços mais avançados - logo mais caros; as tecnologias no mundo cardiovascular são muito dispendioas.
Por isso o mundo cardiovascular é apresentado como um exemplo de boa qualidade!
Então porque se não recorre aos métodos tradicionais e a serviços "artesanais"? Sempre são mais baratos e até levariam muitos mais à morte e a poupanças nas despesas de saúde.
Não há aqui alguma contradição?
Pois... é importante fechar as periferias para canalizar cada vez mais doentes para os "grandes" centros. Sempre serão novas oportunidades de negócio!
E o mundo cardiovascular agradece.
BOA VIAGEM PROFESSOR E QUE DEUS O ACOMPANHE.
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