terça-feira, novembro 21

Reformar o SNS (2)


Sei dos riscos inerentes a voltar a este tema, afinal uma presença constante, para o bem e para o mal, nos nossos últimos trinta anos, tanto nos midia como nos programas dos Governos (já não lhes sei a conta!) como … na insatisfação da população (mas, todos satisfeitos durante muito tempo, ninguém consegue).
Depois, dificilmente se dirá algo de novo, e, se a originalidade não é o meu objectivo, enfastiar também não é o meu propósito.

Então por que volto? Por duas razões:

- porque um Blog é isto mesmo: cada um diz o que quer, só lá vai quem quer e é plenamente livre de concordar, de discordar ou de contrapor; por isso, ninguém se queixe;
- porque - e esta é que é a verdadeira razão - estou cada vez mais convencido de que o equívoco (ou o faz de conta) é verdadeiramente a nossa área de especialização. E isso não é bom; mesmo na área da saúde, pode levar-nos a combater moinhos de vento.

O conceito de SNS

Ao enunciado de defeitos do SNS feito por FR (para a Sandra Almeida: Francisco Ramos) acrescentei o de reflectir uma concepção organicista. Não se trata apenas de semântica. Será que temos devidamente consciencializadas as virtualidades que teria uma concepção objectiva, a de entender o SNS como o conjunto de prestações aos utentes, garantidas nos termos definidos pela Constituição e pela Lei (o que em nada obstaria a que fosse universal, geral e gratuito, tal como é)?
- O utente ficaria com maior lógica no centro do SNS;
- A Lei faria (em cada tempo, porque não passa de equivoco ficcionar que tudo é possível, independentemente de ser ou não comportável) a definição do que se integra no SNS e das condições exigidas para a sua prestação;
- Entidades prestadoras – públicas ou privadas – seriam as como tal acreditadas por órgão competente do M.S.(Ministério da Saúde), por reunirem as condições exigíveis previamente definidas e divulgadas;
- O financiamento das entidades prestadoras far-se-ia pelo pagamento das prestações efectivadas, nas condições exigíveis, por tabelas únicas;
- Todas as entidades prestadoras – públicas ou privadas – disporiam de autonomia, passando a fazer sentido falar de concorrência de gestão e de “diversificação nos instrumentos de acção e controlo” (FR, no Congresso dos Hospitais);
- Do mesmo modo, todas ficariam sujeitas a avaliação e controlo do S.N.S., pelos órgãos competentes, sob pena de perda da acreditação;
- …

A concentração de poderes no SNS

Também afirmei que falta ao SNS adequada separação de poderes, concentrando no Estado todos os papéis. Esta afirmação não decorre de um entendimento minimalista do Estado mas sim da convicção de que devem existir as condições necessárias para que os vários papéis sejam correctamente desempenhados e do desempenho de cada um resulte o que dele é esperável e pelo qual possa, consequentemente, ser responsabilizado.

Consequentemente, esperar-se-ia:

- da Lei e do Governo: a definição do S.N.S., como acima se refere;

- do M.S. (Ministro da Saúde) e dos Serviços que o apoiam: a definição de política; a iniciativa de criação de novas entidades prestadoras quando e onde a resposta à procura se mostrasse insuficiente, ou, inversamente, a sua extinção; a emissão das directivas gerais definidoras e dirigidas a garantir a qualidade das prestações de saúde e à acreditação das entidades prestadoras do S.N.S.; a nomeação dos C.A (Conselhos de Administração) das entidades prestadoras na posse do Estado; a gestão do orçamento do S.N.S., nos termos acima referidos; a avaliação dos C.A. de sua nomeação; a avaliação e controlo das condições de efectivação das prestações do S.N.S., sob pena de perda da acreditação;

- dos C.A. dos HH e restantes entidades prestadoras: as responsabilidades inerentes à gestão dos respectivos estabelecimentos, dotados de autonomia.

Parece pouco, relativamente à definição actual? Na realidade, é muito, se pensarmos nas consequências implicadas:

- situação da responsabilidade: inequivocamente nos C.A. dos HH e restantes entidades; deixam de poder invocar que não fizeram porque esperavam que o M.S. fizesse; são os únicos responsáveis pela gestão;

- os Serviços Centrais, de apoio ao M.S., ficam libertos para o correcto desempenho das competências que só eles podem exercer e que, na verdade, não têm sido desempenhadas satisfatoriamente;

- o financiamento passa a ser claro, ligado a actividades previamente definidas; deixaria de haver lugar para suspeição;

- do mesmo modo, o que tem afectado a avaliação é o facto de a competência de gestão estar dividida entre avaliador e avaliado; quando assim é, o natural é que a responsabilidade fique indefinida e tudo continue na mesma. É mais um equívoco; neste caso um simulacro de avaliação. Foi FR que disse que o SNS se mostra “relutante em acolher a inovação”. Então, nada melhor para incentivar os C.A. para a mudança do que afirmar e respeitar a autonomia dos serviços prestadores. Se assim se fizer, poderá haver avaliação objectiva ou pelos resultados atingidos, capaz de definir o sentido da mudança necessária.

A promiscuidade no âmbito do SNS

Finalmente, acusei o SNS de excessiva permissividade porque, diferentemente do que acontece com as empresas – que não permitem aos seus colaboradores que trabalhem para a concorrência – aos profissionais de saúde do SNS é legalmente permitido que exerçam, como profissionais liberais, actividades concorrentes com as que lhes competem no SNS. Sei que muitos profissionais retiram do seu profissionalismo razões bastantes para se empenharem, sem motivos para qualquer reparo, nas suas actividades públicas ou privadas; mas acredito que seja difícil “servir a dois senhores”, sobretudo se, como se verifica em Portugal, as condições remuneratórias possibilitadas são tão desequilibradas que não permitem comparação entre elas.

Existem medidas para incentivar o profissionalismo, situadas no âmbito da autonomia reclamada para as entidades prestadoras, mas, basicamente, estamos em sede de definição das condições de exercício profissional no âmbito do SNS, portanto, da área de intervenção da Lei e do Governo. Fácil não é. Será que é indispensável?
AIDENÓS

8 Comments:

Blogger tonitosa said...

Considero este um dos melhores textos sobre um abordagem reformista do SNS. E a solução apontada - o novo conceito de SNS - não deixa de encerrar virtudes capazes de constituir se não uma resposta completa, pelo menos uma boa resposta para muitos dos actuais problemas do nosso SNS.
Separação de poderes, autonomia e responsabilização, separação de interesses (promiscuidade) são mudanças que se reclamam e que só não têm avançado porque se confundem (têm confundido) interesses particulares (de grupo ou individuais; de cariz profissional e político) com interesses colectivos e com os que deverão ser os objectivos das organizações.

11:51 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Apenas queria felicitar os intervenientes deste blogue.
A qualidade da maioria das intervenções faz deste Blogue um "think Tank" precioso para a governação da saúde.

Este aidenós e o semmisericórdia, então, são excelentes em qualquer parte do mundo.

O ministro da saúde devia reconhecer publicamente a qualidade da Saudesa que presta à comunidade um verdadeiro serviço público.

12:10 da tarde  
Blogger tonitosa said...

UF!....

8:11 da tarde  
Blogger saudepe said...

O Tonitosa na marcação, mausinho.

10:28 da tarde  
Blogger saudepe said...

TONITOSA - Espelho meu, espelho meu, haverá alguém que sabe mais da Saúde e dos hospitaisdo do que eu ?

ESPELHO - Semmisericórdia, semmisericórdia ... ...

12:22 da manhã  
Blogger helena said...

Não ficava nada surpreendida se daqui a algum tempo viesse a saber que o semmisericórdia é o próprio CC ou através de interposta pessoa ou alguém muito ligado ao ministro da saúde.
Poderia ser também o MD.
Mas afasto esta hipóteses porque demonstra conhecimentos mais profundos.
É um segredo muito bem escondido pela saudesa este semmisericórdia.

1:08 da manhã  
Blogger tonitosa said...

Caro saudepe,
Já percebi, há muito, que os meus comentários não são o seu prato preferido. Paciência!
Também não venho "aqui" para fazer fretes a ninguém.
Ao contrário do que insinua não estou a fazer marcação ao Semmisericórdia nem pretendo comparar-me com ele nem com qualquer dos colegas.
O Semmisericórdia é um dos melhores colaboradores do Saúde SA. Merece todo o meu respeito e apreço. Mas recuso-me a endeusar quem quer que seja.
No caso presente, sabendo que posso ser acusado da tal marcação que você maldosamente me atribui, devo dizer o seguinte:
primeiro: mais uma vez somos solicitados a ler um texto que não deixa de ser maçudo e por isso, chegado ao fim...Uf!...;
segundo: muitas das passagens deste comentário são a reposição de outras tantas coisas que já foram escritas, pelo próprio e por outros comentadores, a propósito de diversos temas.
E, como disse um dia um Ministro: o diagnóstico está feito; os estudos, os grupos de trabalho e as comissões abundam; somo todos bons teóricos...mas o importante é passarmos à prática...praticável.
E às vezes até parece que não temos outro "remédio" que não seja deixar tudo como está?!

8:13 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Caro semmisericordia

Agradecer os seus comentários não é para mim um pró-forma a cumprir, porque tenho a certeza da sua objectividade e porque, embora precise de ser convencido para mudar de ideias, não tenho, como sei que também não tem, a pretensão de ser dono da verdade.
Repare que o meu post, de menos que três páginas A4, não poderia pretender abordar exaustivamente cada um dos pontos enunciados. Esforço-me por ser sintético, mas tanto… não conseguiria! Sem negar outros aspectos que não abordei, mas que foram indicados como negativos no discurso de FR, procurei referir o que me pareceu importante para um entendimento global do sentido que a reforma necessária deve ter. Suponho que concordará que fui um pouco mais explícito do que FR! Mas é claro que fiquei consciente de que ficou muita coisa por dizer para se poder ir por diante. E, também, para alguma coisa existem os comentadores, que eu não sei tudo!

Vejo que concordamos em absoluto – considera-os “inquestionáveis” – com os três pontos que refere e que são muito importantes por deles provir a maior parte dos equívocos com que temos vivido na Saúde. Para começar, já é muito bom! Mas,

1. Importa considerar também desvantagens e riscos do conceito objectivo de SNS que defendo. Obviamente, de acordo. Aponta o semmisericórdia as seguintes:

"1.ª Definir (“não ficcionar”) o que integra o SNS? Unidades privadas integradas no SNS?”

- Quanto à dificuldade de definir (“não ficcionar”) o que (que prestações) integra o SNS, é mesmo como diz: “é necessário, não será fácil”. Mas, o que é fácil? Deixar tudo na mesma? Talvez nem isso, como se tem visto.

- Quanto às unidades privadas, se reparar bem, o que defendi foi uma concepção objectiva, “a de entender o SNS como o conjunto de prestações aos utentes, garantidas nos termos definidos pela Constituição e pela Lei (o que em nada obstaria a que fosse universal, geral e gratuito, tal como é)”. Seriam as prestações, não as entidades prestadoras – públicas ou privadas –, que se integrariam no SNS. Para que, umas e outras, pudessem ser acolhidas como entidades prestadoras do SNS teriam de passar pelo crivo da “acreditação feita por órgão competente do M.S. (Ministério da Saúde), por reunirem as condições exigíveis previamente definidas e divulgadas”. Para manterem essa acreditação também umas e outras teriam de ficar sujeitas “a avaliação e controlo do S.N.S., pelos órgãos competentes, sob pena de perda da acreditação”. Também aqui acho que não posso ser acusado de defender uma versão minimalista do Estado. É suposto que o Estado só constrói unidades prestadoras com condições de acreditação. Também as entidades privadas já estão sujeitas pela Lei a rigorosa inspecção das condições de funcionamento para poderem abrir. Mas, actualmente, nada garante que qualquer delas funcione nas condições exigíveis, quer de instalações e equipamentos, quer de garantia de qualidade total – e sabemos o que esta significa –. Se o Estado fica em condições de exigir, se há aumento de concorrência cujos termos podem ser controlados, e se dessa concorrência é esperável um aumento de eficiência, que razões justificariam que entidades privadas não fossem aceites como prestadores do SNS? Ambos concordaremos não só que há muito trabalho a fazer pelos Serviços que apoiam o MS para desenvolver e actualizar o que me limitei a enunciar, mas também que seria para isso que eles continuariam a existir.

- avaliação e controlo pelo SNS
O que defendi foi que entidades prestadoras públicas e privadas pudessem ser acreditadas para efeitos de realizar as prestações do SNS – ou só algumas delas, acrescento agora porque não haverá uma só entidade capaz de, em diversidade, responder a tudo –, remetendo sempre para a verificação de condições ou requisitos, como diz preferir (embora entenda que condições é um termo mais amplo) a definir criteriosamente pelo M.S.. É porque o Estado entende que tem a responsabilidade de garantir que os cuidados de saúde sejam prestados em termos correctos, qualquer que seja o prestador, que legisla e intervém para regulamentar o exercício profissional, também o privado. Nunca me passou pela ideia que o M.S. possa acreditar quem não demonstre possuir as condições exigíveis, designadamente as que refere na sua alínea a).
Naturalmente o semmisericódia reparou que não equiparei entidades prestadoras públicas e privadas, muito menos sugeri a nacionalização destas. Assim como não faria sentido o MS nomear gestores de entidades privadas, também se não entenderia que a avaliação e o controlo sobre estas fosse para além da sua participação no SNS. É evidente que entidades, públicas ou privadas, podem efectuar prestações fora do âmbito da responsabilidade do SNS.
Referir-me-ei adiante ao ponto iv desta sua alínea a)

- Acreditação limitada e condicionada (alínea b) do semmisericórdia).
Neste ponto, o semmisericórdia é mais ambicioso do que eu; deixei-o para definição do Ministério da Saúde. Por mim, não vejo porque hão-de excluir-se novos prestadores se aparecerem com os requisitos exigíveis; nem qual o mal de o M.S. reduzir capacidade excedentária se for mais desfavorável para o SNS do que a que lhe é oferecida; ou por que exigir uma partilha de ganhos económicos obtidos e das inovações introduzidas. Admito que mais fundada reflexão me faça mudar de opinião.

Se os privados não estiverem dispostos a serem «avaliados e controlados», a minha proposta é que não devem ser aceites como prestadores do SNS: quem paga deve avaliar e controlar (…salvo no SNS que temos tido!). Não duvido que estamos de acordo que, relativamente ao Amadora Sintra, alguém, ou vários, não fizeram o que deviam;

Semmisericórdia, não sou só eu que entendo que o SNS devia ser melhor. Também FR e CC. Desculpe, mas quer mesmo servir-se deste SNS como termo de comparação?

2ª- Financiamento igual ou equitativo? Pergunta o semmisericordia.

A minha resposta seria: igual para prestações iguais. As prestações não são iguais? Podem não ser. É preciso ser capaz de impedir que, por práticas distorcidas, se distorçam também os princípios. Entendo que as questões que apresenta têm inteira pertinência, e as tabelas devem ter variabilidade bastante para lhes responder; e ainda: há condições que devem ser remuneradas extra tabelas, por exemplo a participação no ensino. As suas são boas achegas para o trabalho a fazer. Quando me referi tabelas únicas estava centrado no pagamento das prestações.

“3ª- Grande liberdade de escolha?”

Este tema é acrescentado pelo semmisericórdia, com pleno direito e com a oportunidade que, plenamente, reconheço. Li com proveito, com gosto e sem cansaço. O que penso a respeito?

Basicamente, estou de acordo com as suas considerações da sua alínea a). O SNS deve ter muita qualidade, muita variabilidade (por isso é geral), em resumo: deve ter muita ambição. Mas … tem de ser comportável. Tão prosaico como isto: OGE interposto ou não, são os portugueses que têm de pagá-lo, e até me deixa algo confuso que, com uma produtividade que não atinge sequer 70% da média da C.E., estejamos a afectar mais que o pelotão da frente da C.E.. Do dever de assegurar um SNS deriva o direito de regulamentar o seu acesso, mas não de o impor a cada um. Quem opta fora da regulamentação não pode ter direito a mais do que aqueles que a aceitam. Se isso se consegue directamente –através de responsabilidade do SNS até ao montante devido– ou indirectamente, pela via das deduções à colecta, já não é para mim. Mas repare-se que opta fora todo aquele que salta as normas, designadamente o cidadão de Ribeira de Pena que, sem mais, recorre a Hospital do Porto.

Na sua alínea b), o semmisericórdia aborda questões de promiscuidade no SNS, a tal que, logo a abrir o seu Comentário – recorda-se? – considerou ponto inquestionável. Continua plenamente pertinente, mas, como estou de acordo e também considero que é ponto fundamental, passo adiante que a seara é extensa e o dia é curto.

c)...“desejam-se pretendem-se resultados e saúde, não muitos actos e contactos.”

Também aqui passo adiante, porque estou de acordo com tudo quanto escreveu, porque não sugeri tabelas por acto praticado, mas sim por doente e até entendo que o mesmo se deveria fazer para a C.E. e H.D.. A necessidade de não ignorar estes e outros aspectos é a razão de ser subjacente ao relevo que entendo dever ser dado à avaliação e controlo das entidades prestadoras pelo M.S.: se fossem convenientemente exercidos, certamente não teriam a mesma razão as afirmações que refere. No fundo, é por estas e por outras que o SNS satisfaz pouco.

“Contra-Comentário”: quer mesmo servir-se deste SNS como termo de comparação?

4ª- Competição ou cooperação em saúde? E
5ª- Inovação e avaliação (de gestores e resultados)?

Caro semmisericórdia, comentou tão bem que nada tenho a acrescentar ou a restringir. Por falta de capacidade, não por cansaço. Mas creio que nada do escrevi que contraria, minimamente sequer, aquilo que em boa hora afirmou.

Comentário final:

Para mim, o seu comentário, na sua globalidade, é, muito principalmente,
complementar do Post sobre o qual incide. É muito importante que o tenha feito porque veio eliminar leituras, que seriam incorrectas, daquilo que sugeri.

Além disso, penso que chama a atenção para uma coisa muito simples mas que me parece verdadeira: qualquer mudança, muito mais se for importante, pode ser má se não for bem preparada e bem executada.

AIDENÓS

11:14 da tarde  

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