sábado, junho 16

SNS e direitos sociais (4)

Caro é-pá
Quanto às suas interrogações: link

1. a):
“Medicina liberal” foi termo que usei, mas o qualificativo “supostamente desorganizada” é seu. Compreendo que a suposição deriva da designação do contraponto (medicina privada organizada), só que a inferência não é válida. Isto é: a Língua Portuguesa é difícil e o rigor da Lógica também. Passando adiante:

Não é a medicina liberal que é uma ameaça para o SNS, mas sim o seu exercício pela grande maioria dos profissionais, em acumulação com funções no SNS. Seria insensatez da minha parte supor que tem presente cada uma das minhas intervenções no Saudesa, mas este tem sido para mim um tema recorrente. Se alguma coisa me parece incontestável são os efeitos perversos desta promiscuidade. Efeitos que se produzem nos dois sentidos, afectando tanto o SNS como os próprios médicos. Ouvi muitas vezes dizer: “Já ganhei para o pequeno-almoço; agora vou ganhar para o bife”; ou: “como não tenho vez para ser internado no hospital, tenho de vender uns pinheiros para ser tratado lá fora”. Há também aquele episódio do cirurgião que se propunha fazer numa manhã de sábado (para o programa PECLEC) três vezes mais intervenções do que as realizadas em qualquer outro dia. Infelizmente, estas memórias fazem parte da vivência hospitalar de muitos de nós. Volto, porém, a dizer que não estou a generalizar a todos os profissionais. O que afirmo é que, com este pano de fundo:

- será muito difícil (para não dizer impossível) atingir, com o grau de generalidade necessário, o comprometimento dos médicos, indispensável para atingir níveis de qualidade e de produtividade elevados, porque estará a ser solicitado para hostilizar, pelo menos em parte, os seus próprios interesses;
- o que se investir para melhorar as performances (quer seja em incentivos remuneratórios quer em instalações e equipamentos ou organização) terá sempre efeitos diminuídos relativamente aos que poderiam esperar-se dos recursos afectados com o necessário comprometimento médico;
- para a maioria dos médicos, atentas as remunerações possíveis de um e outro lado, SNS e medicina liberal não se colocarão em alternativa mas sim em acumulação, continuando os utentes do SNS a ser o parente pobre;
- para cúmulo, quando se fizerem as contas, poderá vir a concluir-se que se gastou mais em remendos do que teria custado o fato novo para um corpo curado da obesidade actual.

1. b) A perigosidade do sector privado “organizado”:
Vamos ver se, por uma vez nos entendemos, o que, evidentemente, não significa identidade de opiniões, mas tão só compreensão das razões de cada um.
A hostilização dos HH privados – agora, compreendendo os HH-PPP porque, embora hospitais públicos, ficarão sob administração e exploração privada – tem-se apoiado, basicamente, em dois pressupostos:

i) - nos hospitais públicos, os doentes são tratados gratuitamente (se não isentos, pagam apenas TM e sabemos com que reacção); nos hospitais privados, que visam a realização de lucro, haverá que pagar os cuidados recebidos e ainda o lucro da entidade prestadora. Lá se vai a gratuitidade ilusória do SNS. Ilusória porque sabemos que para a Comunidade não há cuidados gratuitos. O que não se paga em TM é pago através de impostos e não é pouco como sentimos. Mas além disso, acresce um receio não fundamentado, porque, nada leva a concluir que a responsabilidade individual dos utentes tenha que sofrer qualquer alteração, num sentido ou no outro, para o utente que escolher o hospital privado. O que mudará, nessa opção, será a entidade à qual o SNS faz o pagamento. Se os prestadores, públicos e privados, concorrerem, através dos preços propostos, pela prestação de serviços com identidade, quantidade e qualidade predefinidas, se esses preços forem vantajosos e, apesar disso, ainda conseguirem incluir margem de lucro para quem os propõe, quem sairá prejudicado? Por que há-de o SNS recusar condições vantajosas, e por que há-de o contribuinte pagar mais do que o necessário? Para defesa de Serviços que persistem em manter-se ineficientes e sem a qualidade global exigível – ao que consta, continuam a ser atribuídos vultuosos subsídios de convergência –?

ii) – Ganho o terreno, os HH privados passam a fazer selecção de patologias e “up-coding”, eliminam ou reduzem à dimensão mínima o Sector Público e, levados pelo objectivo do lucro, ficam livres para impor os preços, ressarcindo-se, então, da sua contenção inicial. É a tese da maldade inata do sector privado. Não nego que tenha alguma, mas será tanta? Para além das reacções de afectividade que transportamos, temos de reconhecer, é a minha convicção, que este cenário só poderia verificar-se num quadro em que:
- não houvesse concorrência, ou em que a sua distorção fosse total;
- houvesse ostensiva abdicação, por parte do Estado, do poder regulador e de definição, avaliação e controlo, sendo certo que tem ao seu dispor múltiplos instrumentos de que deve lançar mão, desde a exigência de diversificação mínima da carteira de cuidados a adjudicar a cada entidade até à fixação de quotas de clientela nacionais, regionais e em alguns casos locais (grandes centros urbanos) até à proibição de concentração para lá de limites a definir, precavendo a formação de oligopólios, e, sobretudo à avaliação e rigoroso controlo das condições de efectivação das prestações;
- o sector público (EPE+SPA) estivesse em letargia acentuada, malbaratando as vantagens de instalação prévia no terreno e sem capacidade de reacção perante o desafio que a entrada dos HH privados representaria. Ora, apesar das insuficiências que lhes são reconhecidas, os HH do sector público têm melhorado em instalações, equipamentos e organização e, sobretudo, dispõem de capital humano que lhes permite encarar o futuro com menos preocupação.
Se não ocorrer a convergência destas condições, estou firmemente convencido de que o sector público beneficiará e continuará a ter posição dominante, não podendo ser acusado de monopolista como actualmente acontece.
Isto dito, resta-me, respondendo à sua pergunta, repetir o que já disse, isto é: no meu juízo, a abertura a concorrência externa, se bem conduzida, poderá constituir um poderoso incentivo, tanto no aumento da produtividade como da qualidade das prestações de saúde. Mas só se bem conduzida.
Obviamente que também aqui não lembraria a ninguém que fossem permitidas acumulações, salvo alguma situação verdadeiramente excepcional.

2. a) e b)
A política de recrutamento do sector privado diz respeito a este, podendo incidir ou não em médicos em exclusividade, já que todos têm direito de livre circulação e emprego. O que não deveria é ser-lhes permitido acumular nos termos acima referidos. Não só aos médicos, mas a todos os profissionais, administradores hospitalares incluídos.
Quanto a estes, os casos de recrutamento pelo sector privado que conheço traduziram-se mesmo na interrupção ou fim de funções no âmbito da carreira de AH, independentemente da legislação ao abrigo da qual o fizeram e que desconheço.

Quanto aos pontos de concordância, esta não me parece tão condicionada como diz. Imagine que é a sua última frase, a que fala de entregar o ouro ao bandido que me merece mais reserva. Não pelo que diz, mas pela situação de pé atrás que sugere! Mas vejamos:

Ponto I.:
Não tenho qualquer reserva a formular ao que afirma. Se pudesse reforçava. A necessidade de conferir rigor, “accuracy” e tempestividade à informação e de lhe conferir ampla liberdade de circulação foi tecla que já bati por diversas vezes. Já é tarde para investir nesta área.

Ponto II.:
Quanto à concorrência e às virtualidades de estímulo que lhe atribuo acho que já referi acima o suficiente. Restará acrescentar que tudo será mau se for mal feito. Concordo com a necessidade de “um quadro de estrita e eficiente regulação”, não só neste âmbito: para o mercado em geral. No que à ERS se refere, pergunto-me se o propósito não foi o de a esterilizar, à força de lhe conferir tantas competências que repete, praticamente, todo o MS. É, sem dúvida, um quadro legal que beneficiaria em ser revisto.

Ponto III.:
Também não tenho reservas às variadas intervenções que sugere neste ponto III, mas acho que merece particular destaque o que refere na última alínea “eficiente e ágil sistema de informações inter-hospitalares, com os CPS e os Cuidados Continuados”. Penso mesmo que esta deveria ser uma condição estritamente exigida para aceitação como prestador do SNS.
AIDENÓS

1 Comments:

Blogger e-pá! said...

Caro Aidenos:

O "Mundo Hospitalar" é muito mais complexo do que a síntese que pretendeu fazer. E esta complexidade que - nos HH públicos - se têm tornado pouco transparente, vítima de intrigas internas, bloqueios (ou destruição) de carreiras, ausencias de incentivos, etc., envolve não só os médicos mas todos os trabalhadores.
No que respeita, aos profissionais médicos que, exercendo uma "medicina liberal", de forma não organizada (retirei o "supostamente desorganizada") mereceram ser considerados uma "ameaça" para o SNS, nos seguintes termos:
"Não é a medicina liberal que é uma ameaça para o SNS, mas sim o seu exercício pela grande maioria dos profissionais, em acumulação com funções no SNS", parece-me estarmos em presença de um "espantalho" ou da repetição exaustiva de argumentos que valem essencialmente pela sua repetição.

Penso que número significativo dos médicos hospitalares do quadro dos SPA (desconheço as percentagens exactas) estão em regime de exclusividade.
Logo aqui não existirão grandes problemas, porque o sistema estará defendido pelos profissionais em exclusividade.
Nos HH EPE's a situação é mais confusa, logo de avaliação mais complexa, por coexistirem 2 sistemas, um idêntico aos HH SPA (dos médicos que transitaram dos anteriores quadros ) e os novos contratos de trabalho feitos ao abrigo do estatuto de EPE.
Novamente confesso não conhecer os números referentes a estes dois distintos estatutos co-existentes nos HH EPE.
Se o grupo dos que transitaram dos quadros anteriores para a actual situação pode ser acusado da manutenção de algum privilégio (logo classificado de promiscuidade) neste último grupo, os médicos a trabalhar sob regime de contrato, a situação tem de ser vista de modo diferente.
Pirmeiro, muitos destes profissionais estão contratados a tempos parciais (alguns a 10 outros a 20 h/semana ...) e trabalham no regime dos médicos consultores dos hospitais em França. Entram a horas, dizem bom-dia, fazem as consultas contratualizadas e saiem a horas, dizendo ainda bom-dia. A relação, ou o entrosamento, com as áreas clínicas hospitalares organizadas é nula. Prestam serviço à peça, sem qualquer contextualização.
Quer pôr estes médicos condicionados a não poderem exercer uma actividade profissional extra-hospitalar?
Tenha pena deles, da Medicina privada organizada, da pública convencionada, ou outra, onde depois das horas (?) hospitalares que lhe disponibilizam, vão completar um horário normal de trabalho (40 - 45 horas ou mais).

Caro aidenós a situação do tradicional conflito entre o exercício hospitalar e a Medicina dita "liberal", não se tem mantido inalterada.
Há alguns anos atrás poderia ser um pouco como "pintou", hoje é substancialmente diferente e amanhã chegará, para todos, a flexisegurança.

A "medicina privada organizada", a que se refere, que no meu entender, são as empresas de iniciativa profissional (medicos, em regra) já não corresponde a quase nada ou estão acantonada em nichos de "mercado". O que vem aí - para o verdadeiro contraponto - é um cada vez mais poderoso, estruturado e organizado SECTOR PRIVADO DA SAÚDE. Apoiado pela Banca, pelos Seguros.

Primeiro, vai retalhar os diminutos interesses da Medicina "Liberal" e da Medicina Privada Organizada.

Depois o SNS...
Nos tempos que correm, através das PPP's, esperando que não haja regulação e fiscalização
Depois logo se verá...

Os profissionais de saúde (não só os médicos) não podem arcar com as consquências de uma aviltante inércia na vertente hospitalar, que tem caracterizado este Governo. A "grande obra" foi a transformação SA - EPE e, de resto, para além da incriminação dos profissionais como agentes de desperdício, fautores de ineficácia, maus gestores, ... tudo ficou na mesma.

Hoje, o comportamento público do 1º. ministro em Abrantes, falando à população sobre a manutenção do seu Hospital, confirmou que tudo vai continuar na mesma, que já entramos no 2º. ciclo da legislatura.
Novidades, só em 2009!
Porque no quartel general em Abrantes tudo como dantes...

PS - deliciosa a argumentação pública de J. Sócrates: "o governo nunca fecharia um Hospital mandado construir por Mário Soares" (cito de cor).
Como trabalho num HH que também foi mandado construir por Mário Soares, resolvi celebrar e ir beber um copo...

10:51 da tarde  

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