quarta-feira, junho 13

SNS e direitos sociais (2)

Caro É-Pá:

Finalmente, temos o problema no ponto e com a quadratura de que eu gosto.

1. - Antes que lá vá, permita-me que deixe aqui algumas notas que tentarei sejam breves.

i) – Acusa-me de ter “descontextualizado” o seu Comentário. Reconheço que escolhi citações do seu texto que me serviram para opor-lhe o que penso sobre temáticas que considero importantes e que as referi numa sequência que julguei adequada à ordenação do meu raciocínio, portanto não coincidente com aquela segundo a qual o É-Pá as apresentou. Além disso, limitei-me à selecção do que servia o meu propósito, deixando sem comentário afirmações suas que, obviamente, li e com as quais concordo ou que, pura e simplesmente, no momento, julguei dispensável rebater. Mas, é sempre assim que se faz, não é verdade? Além disso, citei sempre; não o pus a dizer nada que o É-Pá não tivesse escrito e não me parece que a citação tenha alterado o sentido do seu discurso. Limitei-me a contrapor.

ii) – Sobre os médicos, profissionais de saúde e suas motivações, quero reafirmar que não me considero um “anti-médico-primário”. Conheci muitos que, mesmo com o permissivo quadro legal actual – e é só a sobrevivência deste que eu critico – exercendo ou não clínica privada, eram profissionais exemplares, nada podendo ser-lhes recriminado. Só que não eram todos nem a maioria. De facto, acredito, desculpem-me por me citar, no que afirmei aqui em Post de 26.05.2007 link, analisando texto do MUS: “Não pode estranhar-se que os profissionais, como qualquer ser humano procurem o melhor para si, podendo o melhor ser medido em termos de condições de trabalho, perspectivas de carreira ou até o mais comezinho vil metal”. Só que esta é uma forma sofismada de por a questão. O que está em causa, o que deve ser afastado, não é a opção, que nunca esteve em dúvida, entre várias alternativas profissionais, mas sim impedir que a procura do melhor para si se traduza na opção por uma acumulação promíscua de actividades concorrentes, para as quais os profissionais são compelidos exactamente pelas mesmas razões que os motivam para a procura do melhor para si.”
Não ignoro que, como diz o É-Pá, a actividade privada “existe há centenas de anos”, mas não esqueço que, gradualmente, se passou para um ambiente incomparável em termos de profissionalismo, de exigência e de entrega necessária.

iii) - Quanto à comparação entre os profissionais antes e depois da passagem para a medicina privada organizada, peço desculpa, mas acho que só pode ter sido distracção sua. Não é verdade que quem recebe todos os médicos à saída da Faculdade e depois, à saída do Internato Geral ou Policlínico, é o SNS e os seus HH e que os HH privados são supostos fazer cuidadosa selecção no recrutamento, nas condições oferecidas e na definição do nível de exigência (porque tudo isto é necessário e é nestas áreas que também o SNS terá que intervir, não só numa delas)?

iv) – Quanto à designação “medicina privada organizada” que utilizei: desde que me conheço no mundo da saúde – e já lá vão mais anos do que eu desejaria! – oiço falar de Medina Organizada por contraponto a Medicina Liberal, sendo esta a que se pratica nos consultórios privados ou nas Casas de Saúde tradicionais em que o médico, ou a sua equipa, intervém sob a sua responsabilidade profissional individual, salvo se estiverem em causa apoios ou suportes fornecidos pela própria Casa de Saúde. Na Medicina Organizada, como é sabido, existem, devem existir, normas e orientações definidas donde deriva responsabilidade solidária da organização e que, sendo imperativas e mostrando-se integralmente cumpridas, podem afastar a responsabilidade profissional individual. Não fui, portanto, original e, se estou a falar nisto, é apenas porque a designação foi considerada “soft” parecendo estar a ser-me atribuída intenção que não tive, nem tenho qualquer interesse que me induza a ter.

v) Finalmente, e em poucas linhas, a “posição política sobre o Estado Social”, cuja clarificação foi, como afirma, o objectivo visado pelo seu Comentário. Com o risco de desiludir, confesso que não me tolhe qualquer alinhamento político partidário porque prezo muito a disponibilidade para concordar ou discordar quando for o caso, e nunca fui capaz de fazer uma identificação. Mas posição sobre o Estado Social é coisa diferente e penso que estaremos de acordo em considerar que por tal se entende o papel reservado ao Estado na defesa e promoção dos chamados direitos sociais. Penso que não preciso de dizer mais nada depois de ter afirmado que
“os direitos sociais (que) são, efectivamente, o traço civilizacional distintivo de que a “velha Europa” se pode orgulhar, apesar dos desvios de quando em quando acontecidos”.

2. -
Chegamos assim ao ponto que considero importante e que também abordarei com algum desdobramento.

2.1 – Antes de mais, regozijo-me pelas convergências:

a) – primeiro, e como valor primeiro, a dignidade e importância dos direitos sociais que devem ser os últimos a ser sacrificados ou até só diminuídos;

b) – depois, e já confinando-nos no âmbito estrito do direito à saúde (na definição da OMS), concordamos que “é sempre possível obter ganhos em eficiência”, nomeadamente, através dos meios que também refere e que me dispenso de repetir;

c) – Parece que também concordamos que da pertença à CE derivam limitações que nos condicionam, também no domínio dos direitos sociais: "O SNS está, no caso do nosso País, condicionado por questões orçamentais subsidiárias do PEC. É justo que assim seja num quadro de solidariedade nacional";

d) – Mesmo, em relação ao estatuto legal dos profissionais e à problemática da acumulação de funções, da qual, em primeira linha, se diria haver desacordo frontal, afinal existe alguma concordância, pois que a esse propósito afirma:
”esses problemas que reconheço – de algum modo – existirem nos HH's, não poderiam ser ultrapassados com alguma reforma (já prevista há muitos anos...) visando, p. exº., a transformação dos tradicionais Serviços Hospitalares ou Departamentos em CRI's e a criação de mais espaço para uma efectiva e qualificada "governação clínica"? Ou, esta opção, pode encerrar ameaças a interesses instalados?” Estamos então de acordo que existem esses problemas e os CRI e a melhoria da “governação clínica” poderão/deverão dar um contributo para a sua superação. É uma temática excessivamente extensa para aprofundar agora, mas poderemos trocar ideias sobre ela noutra oportunidade.

2.2 – Pontos de discordância, ou talvez não, sendo necessário maior esclarecimento:

a) – Entre os defeitos a extirpar do SNS, os maiores são a sub produtividade dos recursos que lhe são disponibilizados e a qualidade insuficiente da resposta devolvida à comunidade, quer em termos de prontidão dessa resposta quer de qualidade estrita nas várias vertentes que esta deve assumir, sem que tal signifique pôr em causa a chamada competência técnica dos profissionais de saúde. Parte significativa desta situação deriva do deficit de concorrência – acomodação e estagnação na outra face da moeda –. É certo que pode e deve ser estimulada a concorrência interna, no âmbito dos estabelecimentos e entre estes. Mas no meu juízo, a abertura a concorrência externa, se bem conduzida, poderá constituir um poderoso incentivo, tanto no aumento da produtividade como da qualidade das prestações de saúde. Mas só se bem conduzida;

b) – As mutilações devem ser mínimas; no entanto, em situações limite, os médicos não têm alternativa que não seja recorrer a elas para salvaguardar a vida do doente. Sobretudo se há dificuldades de sustentabilidade económico financeira, o Estado tem o direito e o dever estrito de eleger o combate ao desperdício, em qualquer das suas formas, como a frente n-º 1. Mas é preciso ser capaz de entender que, em algumas situações, restringir direitos, mesmo que sejam direitos sociais, como é o caso do acesso aos cuidados de saúde, pode ser a medida necessária para que os direitos sociais subsistam. Muito mais se o que estiver em causa for, simplesmente, a forma e a organização pelas quais se acede a esses direitos.
AIDENÓS

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1 Comments:

Blogger e-pá! said...

Caro aidenós:

Algumas discordâncias (também), ou melhor, algumas interrogações:

1.
a) Como explicar que uma medicina liberal (o termo é seu!), supostamente "desorganizada", é uma ameaça ao SNS?
b) O sector privado "organizado" poderá ser "tomado" como inofensivo?

2.
a) Os "recrutamentos" do sector privado no SNS, não incidem especialmente sobre médicos em exclusividade (não conheço particularmente a úlltima "leva", mas, p. exemplo, no H das Descobertas, não foi assim).
b) Por outro lado, o "recrutamento" de profissionais de saúde no SNS não incide exclusivamente sobre os médicos e seria interessante avaliar esta "actividade piscatória", p. exº., no âmbito dos AH .
Não acha ?

......


Uma concordância (muito condicionada):

I.
Quanto à concorrência interna, embora de acordo, julgo que será necessário disciplinar e organizar a colheita de dados e a metodologia de registos. A cirurgia de ambultatório e, em menor escala, o SGIC, têm trazido à tona discrepâncias, que se traduzem em "produtividades artificiais"...

II.
A existência de um mercado de saúde - a tal concorrência que sugere faltar ao SNS para estimulá-lo - só é, para mim, aceitável num quadro de estrita e eficiente regulação (do mercado) - a ERS não tem estrutura, nem estará vocacionada! - e de avaliações qualitativas da produtividade - p. exº. índices de case mix, taxas de re-internamento, manutenção de doentes "em cativeiro" (% de 2ºs consultas), etc. - nas diferentes instituições (públicas e privadas).

III.
Mais, esta situação, pressupõe na rede hospitalar nacional, outras coisas, como sejam:
a) estratégia de investimentos(tecnologia e metodologias de gestão)
b) sistemas de incentivos equilibrados;
c) alterações estruturais ( debate sério sobre a dimensão, etc);
d) modernização organizativa (os CRI's, etc.);
e) eficiente e ágil sistema de informações inter-hospitalares, com os CPS e os Cuidaos Continuados;
f) ...

Sem isso ... "é entregar o ouro ao bandido".

7:07 da tarde  

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