quarta-feira, outubro 1

Carinho para os médicos


Reclama o Bastonário Pedro Nunes
1. Mesmo sem duvidar da veracidade das situações relatadas não posso deixar de estar convencido de que os pontos para o mergulho das autoras do trabalho publicado pela Visão link foram cuidadosamente seleccionados. De facto, se os casos concretos que nos são descritos fossem representativos do universo “médicos no SNS” certamente a situação deste não seria preocupante e o SNS não teria de recorrer à contratação de médicos a empresas de venda (!) de serviços médicos. O problema é que esses não passam de casos excepcionais de dedicação e entrega, num contexto que se caracteriza por marcada sub produtividade, como se comprova quando se consulta a estatística de actividade ou pelo confronto com outros países com número de médicos semelhante ao nosso. Então, é como diz o É-pá: “Comparar a situação hospitalar de Portugal com Países "com uma medicina altamente profissionalizada, a tempo inteiro e com grande eficiência ", … é o mesmo que comparar um guarda-chuva com a feira de Espinho.” Por que tem de ser assim, creio ser a pergunta implícita no desafio do Xavier.

2. Questão para a qual cada um tem a sua resposta. A resposta do Bastonário da OM foi deixada muito clara na recente entrevista ao TM:
i) – Exclusividade dos médicos no SNS? - “A exclusividade começa no dia em que os médicos tiverem uma remuneração condigna”;
ii) – Obrigar os jovens médicos a permanecer um período de tempo no SNS, apoiando a reforma dos CSP e o sucesso da sua implementação? – “Foram traídas muitas das aspirações dos médicos de família, porque não se viram vantagens em termos remuneratórios”.
iii) – Há escassez de médicos no SNS? – “Isso é um problema que se resolve abrindo vagas nas faculdades de Medicina e pagando mais aos médicos para eles não saírem.”
iv) – O SNS não tem orçamento para rever as remunerações dos médicos? – Se não tem dinheiro, tem de os atrair de outras formas, tem de os tratar bem”, sem controlo biométrico da assiduidade. “Esta (tratar os médicos com carinho) é que é a chave do problema dos próximos 10 anos....” Isto é, mais 10 anos sem que nada mude, deixando subsistir a margem existente para que o problema da “remuneração condigna”, tal como a entende, continue a ter resposta fora do SNS, onde, em Portugal, os preços sobreaquecidos são dos mais elevados da EU.
Resumir tudo a uma remuneração condigna ou a um tratamento que nada mude nem controle enquanto não houver dinheiro, parece-me curto para Bastonário, sintomático do tratamento de carinho pretendido para os médicos e representativo do que são os objectivos que a maioria destes acolheu, mesmo no âmbito do SNS. Com que resultados? Com os referidos no trabalho da Visão e que todos conhecemos.

3. Não contesto, e ninguém contestará, que os médicos têm direito a uma remuneração condigna. Nem que todo o processo de profissionalização do trabalho médico e da respectiva remuneração foi mal conduzido, desde o seu início com o SNS, sem plano nem projecto, como costuma dizer-se, mediante sucessivas rendições a reivindicações e, sobretudo, completamente desligado de objectivos – com os quais a administração pública nunca soube lidar – e, portanto, ignorando totalmente os níveis de produtividade desejáveis e necessários e que devem influir na remuneração. Isto significa que seria injusto responsabilizar apenas os médicos – e muito mais todos os médicos – pelo que agora encontramos e que poderá resumir-se nas alíneas seguintes:
i) – Sub-produtividade global, apesar da elevada produtividade de alguns;
ii) – Níveis de remuneração no SNS considerados não motivadores, apesar de, no âmbito da FP e a par das remunerações dos Juízes, serem as mais elevadas (basta consultar no DR as listagens das pensões de aposentação concedidas ou, dentro do SNS, ver nos relatórios dos HH-EPE, quantos são os médicos membros dos CA que não optam pelo vencimento da carreira médica);
iii) – Desigual distribuição no território, mesmo considerado a desertificação crescente do interior, procurando, naturalmente, a localização que oferece melhores perspectivas de perfazer a remuneração condigna, o mesmo se verificando na opção por áreas do SNS (CSP, HH, CCI) e, dentro de cada área, na opção por especialidades;
iv) Grandes HH com número de médicos que, em alguns casos, excede o número de camas e, apesar disso, recorrendo largamente à subcontratação de serviços ao sector privado (MCDT) e até de trabalho médico para preencher as suas escalas de SU;
v) – Apesar disso, e apesar da tecnologia disponível, organização interna deficiente, má utilização dos recursos humanos mais qualificados e mais dispendiosos, tendo de executar tarefas que não se justificam ou que deveriam ser executadas por pessoal de menor qualificação, e que dão significativo contributo para a sub produtividade acima referida;
vi) – Finalmente, para terminar, haveria que referir as consequências de um SNS ainda excessivamente hospitalocêntrico e desarticulado, onde os HH são forçados a responder não só às suas insuficiências de organização e programação mas também às que derivam das insuficiências de outras áreas do SNS.
Isto é, parte significativa da responsabilidade pelo status quo tem de atribuir-se aos sucessivos Governos que não souberam ou não foram capazes de tomar atempadamente as medidas necessárias.
O que contesto é que seja possível prosseguir na mesma linha, continuando a desperdiçar recursos porque não atingirão qualquer objectivo, em vez de os investir num futuro melhor e comportável para o país que formos sendo.

4. Outro contributo para a situação que atravessamos vem do que, à falta de melhor que de momento me ocorra, chamarei de endeusamento da profissão médica. Pelo valor que atribuímos à vida e à capacidade de intervir e muitas vezes superar as ameaças que o nosso modo de viver lhe opõe, ficou-nos a tendência atávica, irracional, mas mesmo assim tendência, de ver na medicina qualquer coisa de ainda sacralizada. Não é o médico, somos nós que assim o sentimos, e o mal não está em que o sintamos, mas sim no que transmitimos, ou seja, no sentimento de superioridade que fomentamos nos que, ainda não médicos, fazem da medicina a sua opção profissional. O Estado tem-lhes exigido classificação de, pelo menos, 18,2 valores no fim do secundário para aceder à FM, o que considero uma barbaridade de exigência, não sei impeditiva do desenvolvimento integral dos jovens, e que, ainda por cima, não garante a escolha dos melhores futuros profissionais médicos, pois que a procura de renda maior e mais segura (como dizem os economistas) pode desviá-los da que seria a sua opção vocacional. Não me perguntem qual deveria ser a alternativa, só me parece que não deveria ser apenas essa classificação. Temos-lhes garantido formação post-graduada remunerada para todos, num contexto em que dezenas de milhar de outros licenciados escolhem entre o desemprego ou a aceitação de tarefas não adequadas à sua formação. Em contrapartida, estamos a legitimá-los para, porque os consideramos os melhores, exigirem tratamento diferenciado daquele que o SNS pode dispensar.

O que seja remuneração condigna não é, seguramente o mesmo para o Senhor Bastonário e para o cidadão comum.

Aidenos

Etiquetas:

5 Comments:

Blogger vida nova said...

Mais um post excelente deste bloguista sempre atento e exímio analista.

12:01 da manhã  
Blogger tambemquero said...

Cá está!
O Estado sem dinheiro para pagar uma remuneração condigna aos médicos, com pouca ou nenhuma pachorra para os carinhos reivindicados pelo bastonário (que também custa dinheiro em ineficiência) a única solução está em entregar esta geringonça aos privados.
É por isso, que aparece Vital Moreira, o actual proeminente ideólogo do PS, a escrever o seguinte:
...SNS tem de ser competitivo com o sector privado quanto aos custos dos cuidados que presta. De outro modo, será preferível a sua contratação externa...
Fácil, não é ?

8:42 da manhã  
Blogger ochoa said...

...Carreiras é assunto de todos

«Tempo Medicina» — Como se posiciona a Ordem dos Médicos no processo de negociação das carreiras?
Álvaro Beleza — É um momento crucial para o futuro das carreiras médicas. Estas são um pilar fundamental do Serviço Nacional de Saúde (SNS) porque são a regulação do sistema. E agora que estamos numa época de crise financeira, como se vê, as regulações são muito importantes. Penso que houve por parte dos anteriores ministérios da Saúde uma estratégia deliberada de destruir as carreiras para flexibilizar o sistema de contratação de médicos com um objectivo puramente financeiro. O certo é que isso desregulamenta o próprio sistema, porque os médicos são centrais no sistema de Saúde. A Ordem dos Médicos (OM) tem aqui um papel que é o da formação e da certificação da evolução científica e profissional dos colegas. Neste sentido, a Ordem lançou o debate sobre as carreiras médicas e há dois colegas, João de Deus e Paulo Fidalgo, que elaboraram um documento que é um ponto de partida para um debate interno, e também com outros intervenientes, para que depois haja uma discussão sobre este tema. O que acontece é que, por vezes as agendas aceleram e o Ministério da Saúde (MS) chamou a Ordem para uma reunião. É bom que se diga que a Ordem tem de ter as suas posições porque há matérias que são dos sindicatos e há outras que são da Ordem. Mas tudo isto é de todos.

«TM» — Seria benéfico que já houvesse um documento base consensualizado, uma vez que o Governo já iniciou o processo?
AB — Ainda se vai a tempo. As negociações ainda agora começaram. O Governo quis apalpar o terreno, aquele texto é muito genérico. Não havendo documento, é óbvio que somos leais e o bastonário representa os médicos. Era bom que ele já estivesse feito, mas a estrutura [da Ordem] é pesada.

«TM» — Em que se reflecte essa estrutura pesada?
AB — Há coisas que não funcionam tão bem. É por isso que a Ordem precisa de se modernizar, temos de melhorar o seu funcionamento, nomeadamente, o acesso electrónico através da criação de um blogue em que as pessoas participem e que o próprio sistema de eleições passe ser electrónico. Por outro lado, os conselhos regionais e o Conselho Nacional Executivo perdem tempo a discutir questões burocráticas e administrativas, e depois não têm tempo para falar das que são fundamentais.

«TM» — Carlos Arroz alertou para o facto de no documento da tutela enviado aos parceiros estar indicado que os graus não têm implicação nos salários e nas funções. Qual é a sua opinião?
AB — Isso é inaceitável. No documento [enviado pela tutela] esse é o ponto central. Um director de um hospital pode ser engenheiro, arquitecto ou médico, mas para alguém ser director de um serviço de Medicina ou Cirurgia não pode ser só um gestor, tem de conhecer o estado da arte, ter experiência. A Saúde é um negócio diferente dos outros negócios. Para bem do serviço de Saúde — e isto não é uma atitude corporativa —, se os graus não tiverem correspondência nas funções e nos salários vamos ter problemas como os que têm surgido com a contratação de empresas médicas. Porque se chama equipas de urgência na Urgência? Porque se criam laços entre os colegas e definem-se mecanismos. Se as pessoas não se conhecem, o serviço não funciona tão bem e até se acaba por gastar mais dinheiro. Queria-se «cortar» nos médicos, mas chegou-se a um ponto em que se gasta mais dinheiro e a qualidade é pior. Assim não se chega a lado nenhum. A OM tem o papel de ajudar os governos a melhorar o serviço prestado aos doentes e criar regras para que um médico, para ser director de um departamento de Cirurgia num hospital, por exemplo, tenha de ser um cirurgião com provas dadas. Isto faz todo o sentido. Depois, a administração escolhe, dentro daquela categoria, o que for mais capaz. ...

TEMPO MEDICINA 2008.09.29

12:09 da tarde  
Blogger e-pá! said...

Caro aidenós:

"Comparar a situação hospitalar de Portugal com Países "com uma medicina altamente profissionalizada, a tempo inteiro e com grande eficiência ", … é o mesmo que comparar um guarda-chuva com a feira de Espinho."

Não podemos ficar pelas aparências, pela rama...
O que se quis dizer é que situações na aparentemente similares são, profundamente, diferentes, portanto, incomparáveis.

Somos um País "atípico".
Pagamos ao nivel europeu e recebemos, vivemos (melhor sobrevivemos), como se fossemos 3º. Mundo, para, imaginem, tornar-nos competitivos.
Até, Manuel Pinho, nosso ME, inventou esta pechincha para vender na China.

Já, todos, demos para este peditório...

Goethe advertia:
"comparar não é, para um ignorante, senão um meio cómodo de se eximir de julgar."

Embora não sejamos uns "ignorantes", propriamente ditos, temos o vício de andar de comparação em comparação.
Cotejamos situações dispares, confrontando-as...

1:12 da tarde  
Blogger aidenós said...

Caro tambemquero:

1. “ … a única solução está em entregar esta geringonça aos privados”.
A conclusão seria sua e não minha (seria, porque está claro que não é o que defende). O que eu defendo é apenas que não há razão válida (a incúria, a acomodação e a incompetência não estão neste lote) para que o desperdício de recursos e a ineficiência no âmbito do SNS tenham de ser mantidas e o empurrem para uma situação de insustentabilidade. E mais ainda: que uma concorrência correcta dos privados, se o Estado a souber gerir, comparando o que é comparável, pode dar considerável contributo de estímulo na redução do desperdício e no aumento da eficiência, não só em termos de custos mas também na melhoria da qualidade. Se o SNS quiser, tem todas as condições para ficar à frente na disputa.

2. “O Estado sem dinheiro para pagar uma remuneração condigna aos médicos”?
Não tem, se remuneração condigna tiver o entendimento que o Senhor Bastonário lhe dá; mas terá, se prevalecer um entendimento razoável, enquadrável no contexto do SNS, motivador e articulado com os níveis de desempenho exigível. O mesmo se diga do carinho reclamado para os médicos (e por que não para todos os demais?) que não pode significar permitir tudo ou ver uma agressão ou um insulto em cada tentativa de mudança.

3:28 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home