domingo, setembro 28

O estado da nossa medicina


O texto da Visão link é uma espécie de retrato borrão do estado da nossa Medicina actual. Para evitar generalidades, haveria que escalpelizar de cima a baixo o nosso sistema de saúde o que manifestamente está fora da minha competência e disponibilidade. Vou pois limitar-me a fazer algumas considerações sobre as razões que, em meu entender, podem explicar algumas das aberrações ali retratadas:

Com um ratio de profissionais dentro do que é recomendado pela OMS e idêntico ao da França, não é seguramente por falta de médicos que o sistema não funciona. As explicações devem procurar-se nas distorções e falta de planeamento na formação, com manifesta carência de médicos de família e especialistas hospitalares nalgumas áreas; na visão hospitalocêntrica e médicocêntrica (dificuldade em delegar competências em enfermeiros e técnicos paramédicos); na assimetria na distribuição geográfica, situação agravada com o fim da obrigatoriedade de concurso a lugares vagos e, mais recentemente, com o aumento da oferta dos privados nos grandes centros urbanos do litoral. Há, para além disso, uma baixa produtividade global do SNS explicável por uma falta de “accountability” do topo à base, deficiências de organização, ausência de incentivos e baixos índices de profissionalização com recurso ao pluriemprego.

O SNS tem sido vítima da incapacidade reformadora do poder político. Em vez da procura de consensos alargados conducentes a um rumo coerente de reforma, cada ministro tem tentado imprimir e deixar o seu cunho pessoal. Daqui resulta uma produção legislativa avulsa, senão mesmo errática e contraditória. Vogando ao sabor da transitoriedade e das opções ideológicas de cada ministro (várias no mesmo governo), o SNS foi enfraquecendo e perdeu consistência, tornando-se alvo fácil de interesses individuais e corporativos e, mais recentemente, do grande capital financeiro trazido à ribalta por Luís Filipe Pereira e Correia de Campos.

A incapacidade em reformar o SNS dentro do espírito de serviço público, levou á solução fácil da precarização do emprego, através dos contratos individuais não enquadrados num processo de contratação colectiva e à destruição das carreiras médicas, bloqueando concursos para quem estava e não permitindo o acesso às mesmas aos médicos mais novos. Estava pois criado o estado de espírito nos profissionais para se descomprometerem cada vez mais com o SNS procurando soluções externas alternativas e geralmente mais rentáveis. Perde-se em estabilidade e realização profissional mas compensa financeiramente. A qualidade do trabalho prestado nestas circunstâncias é outra questão.
Não é estranha a esta situação a mercantilização progressiva da sociedade com a perda de valores colectivos e do conceito de interesse público. Hoje tudo serve para fazer dinheiro e o acto médico também não escapa à voragem destruidora de valores humanistas em busca o lucro a qualquer custo. Como dizia o director clínico de uma recente unidade privada, para os meus médicos o limite é o Céu ou, noutra versão, melhor que o negócio das armas só o da Saúde.
Chegados a este ponto, não surpreendem as situações profissionais descritas no artigo da Visão. Quem permanece está cansado e desespera por não ver soluções que conduzam o SNS ao seu trilho natural. Os rejeitados e os que se cansam, compensam frustrações com uma prática lucrativa exercida nas franjas do sistema. Ou, então, procuram nas novas unidades hospitalares uma qualidade de exercício de medicina que pensam já não voltar a ser possível no sistema público.

Tá visto

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8 Comments:

Blogger tambemquero said...

O bastonário da Ordem dos Médicos, Pedro Nunes, afirmou hoje que a instituição apoia a intenção do Ministério da Saúde em contratar mais clínicos estrangeiros, mas sublinhou que a Ordem não irá permitir que trabalhem em Portugal “médicos que não tenham a formação adequada”.

A Ordem dos Médicos anunciou hoje que Portugal tem actualmente 4287 médicos estrangeiros a exercer no país e que o Ministério da Saúde pretende avançar com novos acordos para a contratação de mais profissionais. O mercado da América Latina é o alvo.

Pedro Nunes, que falava em declarações à TSF, concordou com a pretensão do Governo mas alertou que é obrigatório assegurar que os médicos a contratar tenhas as qualificações necessárias.

O bastonário sublinhou à rádio que em “muitos lugares do globo, por motivos estritamente económicos, muitas universidades não têm qualidade comparável às universidades portuguesas” e “formam médicos que não são médicos capazes de trabalhar no sistema de saúde português”.

Apesar de apoiar o Ministério da Saúde nesta matéria, Pedro Nunes lembrou que há muitos estudantes de Medicina nas universidades portuguesas que esperam um lugar nas unidades de saúde quando iniciarem o internato. “O que é necessário garantir é que esses médicos sejam aproveitados”, defendeu o responsável
JP 29.09.08


A ministra da Saúde, Ana Jorge, negou hoje que haja saturação no mercado de trabalho para os internos de Medicina Geral e Familiar, contestando a posição do coordenador do internato daquela especialidade na zona Centro.

"Não há saturação no mercado neste momento", sublinhou a ministra no final da sessão de abertura do 13.º Congresso Nacional de Medicina Familiar, a decorrer no Centro de Congressos do Estoril.

Ana Jorge respondia desta forma às críticas e aos alertas lançados ontem pelo coordenador do internato de Medicina Geral e Familiar (MGF) da zona Centro, Rui Nogueira, que afirmou que há uma saturação no mercado de trabalho para os internos de MGF e que o ministério não tem capacidade para os colocar.

"São reais algumas questões, mas penso que há uma interpretação que não será a de não ter capacidade", disse Ana Jorge, contrariando as acusações deixadas por Rui Nogueira de incapacidade da tutela na colocação dos jovens médicos de família.

Para a ministra, o número de internos de MGF a sair para o mercado de trabalho "não são internos a mais" e referiu que se tem "aumentado o número todos os anos para que mais médicos possam fazer a especialidade". "É conhecido que nós temos muitos cidadãos que ainda não têm médico de família", reafirmou.

A falta de médicos de família para todos os portugueses está na base da reforma dos cuidados de saúde primários e da constituição das Unidades de Saúde Familiares (USF), relembrou a ministra, que disse também esperar que os objectivos propostos para este ano nesta área sejam atingidos, o que representaria, de acordo com a ministra, mais 200 mil portugueses com médico de família.

"Neste momento nós já estamos com 143 USF a funcionar. O nosso objectivo para 2008 são 150 e esperamos que antes do fim do ano possamos obter esse número. Isso significa que os profissionais têm aderido de uma forma muito consciente e eficaz para mais USF estarem a funcionar", declarou a ministra.

Esta reforma está a ser "bem-sucedida", garantiu Ana Jorge.
JP 28.09.08

10:46 da manhã  
Blogger Joaopedro said...

O que terá levado o senhor bastonário a mudar de estratégia ?
Talvez o avanço registado no processo de negociação das carreiras médicas em curso, que, assim, parece estar fadado para chegar a bom porto.

11:57 da manhã  
Blogger e-pá! said...

Caro João Pedro:

Experimente ler esta prosa...link

Começou a perceber a mudança...?

5:43 da tarde  
Blogger Hospitaisepe said...

Estou de acordo com o tá visto: Não é por falta de médicos que o sistema não funciona.

Concordo igualmente com a lista de causas que aponta para a crise que podem levar ao colapso total do sistema, se, entretanto, não formos capazes de levar por diante uma reforma capaz.
a) Visão hospitalocêntrica e medicocêntrica;
b) Assimetria na distribuição geográfica dos médicos;
c) Saída de especialistas para o privado;
d) Incapacidade dos politicos promoverem reformas adequadas;
e) Mercantilização da sociedade;
f) Baixa produtividade do sector.

As estruturas de classe fazem da revisão das carreiras o elemento chave de todo o processo.
Ora todos nós sabemos que por mais importante que seja este ponto, por si só, não nos leva à resolução do problema.

É preciso apurar por outro lado, eu pelo menos tenho dúvidas, se este governo, para além do empenho inquestionável da ministra da saúde, está verdadeiramente empenhado em salvar o serviço público, reunindo para tal todos os meios indispensáveis.
Tenho dúvidas, caso o PS volte a obter maioria absoluta, qual a política de saúde a que o próximo governo dará seguimento: a de Ana Jorge ou de Correia de Campos.
É que, apesar do fio condutor estar a ser respeitado, há profundas diferenças, como é evidente.

6:59 da tarde  
Blogger ochoa said...

Autoridade que regula o sector de medicamento alertou, esta segunda-feira, que há cidadãos em Portugal «a correr sérios riscos de saúde» por consumirem medicamentos contrafeitos, que já invadiram áreas como a oncologia e a cardiologia.
O alerta do Infarmed foi feito, esta segunda-feira, durante a apresentação de resultados preliminares de uma investigação a medicamentos falsificados, a qual revelou «dados preocupantes».

Das 85 amostras de medicamentos provenientes de encomendas postais que o Infarmed está a investigar desde Junho, 79 (93 por cento) são medicamentos contrafeitos, oriundos da Índia e da China.

Os medicamentos contrafeitos - que durante algum tempo incidiam mais em áreas como a impotência sexual e o emagrecimento - estão a abranger especialidades como a oncologia, a cardiologia e a neurologia.

De acordo com Vasco Maria, presidente do Infarmed, a contrafacção está a atingir elevados níveis de sofisticação, sendo necessária uma investigação rigorosa para concluir que se trata de um fármaco falsificado.
TSF 29.09.08

O infarmed não é a entidade fiscalizadora?
Se tem dificuldades peça uma mãozinha à ASAE.
Não foi CC que autorizou a venda de medicamentos pela Internet?
Não as pensam e depois ai daqui del rei que a saúde dos portugueses corre perigo.
Além do mais, é uma pessima propaganda para o Viagra.

7:14 da tarde  
Blogger e-pá! said...

Caro hospitaisepe:

"Concordo igualmente com a lista de causas que aponta para a crise que podem levar ao colapso total do sistema, se, entretanto, não formos capazes de levar por diante uma reforma capaz.
a) Visão hospitalocêntrica e medicocêntrica;
b)....


Visão medicocêntrica?

Bem, a centralidade de um sistema de saúde é (deve ser), de facto, o doente.

Mas não há Medicina sem médicos.

O uso do conceito "medicocêntrico" é usual nos comunicados do sector profissional de enfermagem, que pretendem conquistar espaços, ao abrigo de um exercício de autonomia, quer na área médica, quer na gestão, quer na organização e chefia dos Serviços.
Defendem para a sua organização profissional um esquema de trabalho o mais "horizontalizado" possível.

Entretanto, para serem coerentes na sua autonomia, "colonizam" os auxiliares de accção médica...

Mas não quero entrar neste campo, num momento em que os enfermeiros estão a desenvolver acções de protesto avançadas - greves. Atitude que merece o meu maior respeito e compreensão.

O meu espanto é o uso do torpe conceito "medicoêntrico", vindo da área da gestão. Enfim.

8:54 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Caro e-pá,

Penso que quer dizer que a centralidade do SNS será o Utente...
Para existir SNS não é necessário haver doentes, mas sim utentes (ou clientes, dependendo, entre outras coisas da perspectiva!)!
"...que pretendem conquistar espaços, ao abrigo de um exercício de autonomia, quer na área médica, quer na gestão, quer na organização e chefia dos Serviços.
Defendem para a sua organização profissional um esquema de trabalho o mais "horizontalizado" possível."
?????????????????????????

Para não entrar em polemicas mais profundas na sua perspectiva os enfermeiros não têm competências para a área de gestão? Não devem desempenhar um papel de relevo na organização dos Cuidados de Saúde e do SNS?? E para terminar não podem/devem ser considerados em pé de igualdade com os médicos???

Por estarmos no momento em que estamos acho o seu comentário deveras ofensivo!
O SNS faz-se com utentes e esperemos que com a reforma dos CSP isso se revele de facto!

10:17 da tarde  
Blogger e-pá! said...

Caro variovaisuss:

Bem, "utente" é o sujeito que utiliza, que faz uso.
Todavia, o post original referia-se à "vida hospitalar".
A não ser que queira empolar o volume da prestação da Medicina Preventiva (continuo a lembrar-lhe que estamos a falar de Hospitais), o que chama utente é, de facto, o doente, ou o enfermo se gostar mais...
No SNS não deve haver "clientes", deixe isso lá para o H da Luz, etc..

"Para não entrar em polémicas mais profundas na sua perspectiva os enfermeiros não têm competências para a área de gestão?
-Têm, na sua área profissional, mas diferentes dos gestores que definem e projectam planos estatégicos, de contratualização, etc.

Não devem desempenhar um papel de relevo na organização dos Cuidados de Saúde e do SNS??
- Devem, colaborar mas o papel de relevo na organização e estruturação dos Serviços deve estar da responsabilidade e competência da Administração

E para terminar não podem/devem ser considerados em pé de igualdade com os médicos???"
- Devem ser considerados em "pé de igualdade", dentro de um largo espectro que abranja os profissionais da área da Saúde, numa organização unitária e integrada como é o SNS.
Agora, entre um médico e um enfermeiro existem competências e desempenhos diferentes..


É quase como no refrão anti-racista: todos diferentes, todos iguais ...

Tive o cuidado de salvaguardar o momento que vive o sector profissional de enfermagem. Dessa precaução, desse minha reserva, tirou tristes ilações, fazendo alguma demagogia.

A reforma dos CPS é importante mas, creia, não vai mudar o paradigma do SNS, nem preverter a sua estrutura, organização, finalidades e funcionamento.
Se reformar, o que estava mal, anquilosado, pouco eficiente, é já muito bom.
Mas creia que não vai ser nenhuma revolução!
Muito menos no âmbito profissional.

A terminar, e creia que sinceramente, desejo-lhe os maiores êxitos para a greve em curso!

11:22 da tarde  

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