terça-feira, dezembro 23

Serviço público

Quando os hospitais são a única casa dos idosos:
Embrulhada numa manta, de olhos fixos na televisão de uma das salas de convívio para doentes do Hospital de Évora, Gertrudes Peralta passa os seus 93 anos pacientemente à espera de um familiar ou de uma vaga num lar. Foi encontrada caída em casa e há dois meses que teve alta. Mas, apesar de nenhuma doença a prender ao hospital, permanece internada. O único sobrinho vive em Lisboa e as instituições de apoio a idosos no Alentejo estão sobrelotadas. "Aqui vou estando. O hospital faz-me um favor, porque não consigo estar sozinha em casa."
Em Évora e nos outros hospitais do País nem todas as camas estão ocupadas por doentes. Chamam-lhes casos sociais: mesmo quando não precisam de cuidados hospitalares, permanecem internados porque não têm outro sítio para onde ir. No Inverno o número dispara.
Nos serviços do Ministério da Saúde ninguém sabe ao certo o número de utentes nesta situação. Nem a Direcção-Geral da Saúde, nem a Administração Central do Sistema de Saúde. O Instituto de Segurança Social também não. As contas são feitas localmente. O centro hospitalar de Lisboa Central tem 17 idosos, Faro dois, Évora sete, Beja 24, Portimão quatro e há 15 no Grande Porto. No Amadora-Sintra todos os meses há pelo menos dez. Adélia Gomes costuma dizer que se escrevesse novelas tinha histórias reais que davam grandes argumentos. E não há nada de alegre nas histórias que lhe passam pelas mãos no gabinete de acção social do Hospital Amadora-Sintra. O idoso que foi deixado nas Urgências com os documentos em cima do peito, os serviços a tentarem contactar a família, a família a não atender o telefone. A idosa que caiu doente numa cama e perdeu a consciência que a ligava a ela e ao filho deficiente ao Mundo. "Conseguimos uma vaga num lar para os dois. A senhora acabou por morrer poucos dias depois, mas aquele tempo acabou por ser fundamental para ele se integrar."
A doença nunca é boa, mas quando as estruturas sociais já são problemáticas, acaba por ser a gota de água. "Há casos que são conhecidos da comunidade há anos, como idosos que vivem com filhos toxicodependentes e que são colocados na mendicidade. Quando acabam doentes e dependentes, tudo explode", diz a assistente social.
Os idosos representam 42% dos casos que passam pelo serviço social. Este ano foram 2670, a maioria entre os 80 e os 90 anos. "São pessoas sozinhas ou que não têm relações familiares de proximidade há muitos anos. Outros têm família mas a família não tem condições para os ter", explica. Os abandonos são mais raros. Na maioria dos casos os filhos ou netos querem cuidar deles, mas não encontram soluções. "O apoio domiciliário é muito insuficiente, muitos funcionam apenas cinco dias por semana, uma vez por dia, e os lares privados não custam menos de 1200 euros". Nestas situações o hospital referencia para a Segurança Social. Mas, por falta de vagas, a espera às vezes é de meses.
Eugénio Fonseca, vice-presidente da Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade, refere que as vagas nos lares se têm mantido ao nível do ano passado. E serão 18 mil os idosos em lista de espera. O responsável refere que tem havido uma melhoria na ofertas de cuidados comunitários e na rede de cuidados continuados que, mesmo assim, está longe de ser suficiente.
Aos 74 anos, magra e cansada, numa cama do Hospital de Portimão, Maria (nome fictício) apenas ganha firmeza na voz para responder "não" quando lhe perguntam se quer ir para casa. "Estou aqui bem, em casa não estava melhor." Vítima de violência doméstica, de cujas sequelas tem vindo a recuperar, deu entrada na Urgência em Novembro. Os filhos alegaram falta de condições de habitabilidade e receio de novas agressões. Continua internada à espera de uma solução. Caso tal não aconteça, Maria passará a quadra natalícia não entre familiares mas entregue aos cuidados do pessoal do hospital.
Correio da Manhã, domingo 21/12/08

Esta é uma realidade com que lida no dia-a-dia quem trabalha em hospitais públicos. Os profissionais, em particular auxiliares de acção médica e enfermeiros, vão sendo o suporte emocional e família de substituição, de um número crescente de excluídos, idosos em particular, de uma sociedade mais preocupada em alienar que em cumprir as suas obrigações sociais. Estes dramas não são seguramente vividos no mundo asséptico dos hospitais privados, em que o “lixo social” não consegue transpor a barreira do valor do seguro de saúde ou da prestação do subsistema.
É uma realidade bem identificada e conhecida dos decisores políticos, as soluções tardam e quando aparecem, são aplicadas a conta-gotas com a justificação de que o Estado não tem dinheiro para tudo. Porém, quando se trata de solucionar as dificuldades dos poderosos, o dinheiro que não existia jorra como que por milagre. Aí já não há a preocupação de sobrecarregar as gerações futuras com os juros da dívida pública.
Esta é uma realidade que envergonha cada um de nós e que nos deve mobilizar, cada um no seu posto, para, de uma forma ou outra, se empenhar em soluções políticas (sim, é disso que se trata) que lhe ponham cobro.
tá visto

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