Vendidos por trinta dinheiros
Porque o silêncio é inimigo da justiça, é preciso dizer: Os profissionais do Hospital de São Marcos, actualmente reduzido a uma comissão liquidatária, foram vendidos. Como uma bomba perfusora, um computador ou uma secretária. Fazem parte de um «pacote», que incluiu uma estrutura de prestação de serviços, os prestadores desses serviços, e os beneficiários dos mesmos serviços. Numa espécie de alquimia dos tempos modernos, uma instituição privada (ser)viu-se com muito mais que um hospital e os seus funcionários. (Ser)viu-se com um mercado (quase) totalitário da prestação do serviço contratado. (Ser)viu-se com um pagante que tem que pagar e paga, ainda que possa atrasar-se a fazê-lo.
Aproximando-se agora a transição para as novas instalações, tem sido o previsível sufoco gestionário. E temos assistido, nos últimos tempos, a entrevistas conduzidas por um grupo de meninos-gestores, a muitos profissionais médicos, de assistentes a assistentes graduados seniores, onde reina o desplante de propostas remuneratórias para quem quiser transitar para a nova unidade hospitalar. O inconcebível, inominável desplante de propor a assistentes graduados em exclusividade vencimentos de 2200-2400 euros mensais por 40 horas, de propor a assistentes em 35 horas vencimentos de 1700-1900 euros mensais por 40 horas. Num Hospital em que há médicos contratados pela Sociedade Gestora a ganharem mais de 5000 euros mensais (das «especialidades muito carenciadas»). E tudo isto sob o manto do «mas se o sotôr não aceita, não podemos contar com o sôtor no novo Hospital». E tudo isto com o beneplácito do MS, ACSS e ARS Norte.
A este propósito, a ARS Norte recentemente emitiu uma nota informativa onde afirma que o instrumento de mobilidade previsto para os profissionais do hospital é a cedência por interesse público. A cedência que permitirá a uma das partes, se insatisfeita (como suponho que uma, facilmente, ficará), denunciá-la mediante pré-aviso de 1 mês, colocando o profissional na malha da mobilidade. E parece que (quase) toda a gente ganha: o MS, que sempre perde alguns funcionários públicos (esses preguiçosos inveterados), a Sociedade Gestora que pode condicionar os profissionais a aceitar reduções da massa salarial com uma carga horária igual ou superior, e os profissionais a quem se permite, condescendentemente, trabalhar num Hospital de ponta (nem que não vá ter ponta por onde se lhe pegue).
E pergunta-se, e estranha-se: o que ganha a Sociedade Gestora com esta afronta aos profissionais, nomeadamente aos médicos? Qual o tipo de lealdade conquistada a profissionais aos quais se lhes diz «muito bem, agora o sotôr, para ter o ensejo de trabalhar connosco, abdica de metade do seu vencimento, fica com menos dias de férias, trabalha as mesmas horas ou um pouquinho mais» e, perante a cara de espanto de muitos, rematam «mas o sotôr agora, depois de 20 ou 30 anos em exclusividade, pode finalmente fazer privada» ou «damos-lhe um suplemento se vir x doentes este ano, x+y no próximo, x+y+z no seguinte». As costas destes indivíduos devem queimar de tão quentes…
E cá andamos. A convocar doentes para serem operados às cataratas, nem que dementes, nem que com neoplasias terminais. A ver as habilidades da facturação nos exames e procedimentos. A reconvocar (quase compulsivamente) doentes que faltaram, a dar altas administrativas, a ver os doentes indefinidamente pela primeira vez, a inventar consultas urgentes, de triagem, de prescrição. Impedidos de alterar a agenda cá andamos a marcar 3 e 4 doentes à mesma hora. Cá andamos a justificar nº de consultas e cirurgias, primeiras versus segundas, tempos de execução e taxas de ocupação, GDH e case-mix, e etc., e etc. Tempos para reuniões, estudos, publicações, congressos, moderações e afins, apenas se não comprometerem a actividade (dita) assistencial. Cá andamos. Neste antro. Neste inominável antro.
Para não falar no corte das «ceias» dos profissionais, no racionamento do leite (do leite, leram bem) das crianças na Pediatria, nas camas que não se podem fazer todos os dias, dos lençóis aproveitados de doentes transferidos de outros hospitais. E a avistar todos os dias os carros topo de gama, todos curiosamente de finais de 2009, que adornam o parque da Administração. Cá andamos sem luz ao fim do túnel. Sem nenhuma das virtudes e com todos os vícios dos hospitais privados (e mais um: o de não se depender sequer dos «subsistemas», mas do «sistema» em si).
Cá andamos, vendidos por nem 30 dinheiros pela ARS e pelo MS. Até ao dia, que não se afigura distante, em que vamos dizer: cá andámos.
E neste silêncio, neste silêncio que não se percebe, neste silêncio de abandono.»
Ante Meridiem
Aproximando-se agora a transição para as novas instalações, tem sido o previsível sufoco gestionário. E temos assistido, nos últimos tempos, a entrevistas conduzidas por um grupo de meninos-gestores, a muitos profissionais médicos, de assistentes a assistentes graduados seniores, onde reina o desplante de propostas remuneratórias para quem quiser transitar para a nova unidade hospitalar. O inconcebível, inominável desplante de propor a assistentes graduados em exclusividade vencimentos de 2200-2400 euros mensais por 40 horas, de propor a assistentes em 35 horas vencimentos de 1700-1900 euros mensais por 40 horas. Num Hospital em que há médicos contratados pela Sociedade Gestora a ganharem mais de 5000 euros mensais (das «especialidades muito carenciadas»). E tudo isto sob o manto do «mas se o sotôr não aceita, não podemos contar com o sôtor no novo Hospital». E tudo isto com o beneplácito do MS, ACSS e ARS Norte.
A este propósito, a ARS Norte recentemente emitiu uma nota informativa onde afirma que o instrumento de mobilidade previsto para os profissionais do hospital é a cedência por interesse público. A cedência que permitirá a uma das partes, se insatisfeita (como suponho que uma, facilmente, ficará), denunciá-la mediante pré-aviso de 1 mês, colocando o profissional na malha da mobilidade. E parece que (quase) toda a gente ganha: o MS, que sempre perde alguns funcionários públicos (esses preguiçosos inveterados), a Sociedade Gestora que pode condicionar os profissionais a aceitar reduções da massa salarial com uma carga horária igual ou superior, e os profissionais a quem se permite, condescendentemente, trabalhar num Hospital de ponta (nem que não vá ter ponta por onde se lhe pegue).
E pergunta-se, e estranha-se: o que ganha a Sociedade Gestora com esta afronta aos profissionais, nomeadamente aos médicos? Qual o tipo de lealdade conquistada a profissionais aos quais se lhes diz «muito bem, agora o sotôr, para ter o ensejo de trabalhar connosco, abdica de metade do seu vencimento, fica com menos dias de férias, trabalha as mesmas horas ou um pouquinho mais» e, perante a cara de espanto de muitos, rematam «mas o sotôr agora, depois de 20 ou 30 anos em exclusividade, pode finalmente fazer privada» ou «damos-lhe um suplemento se vir x doentes este ano, x+y no próximo, x+y+z no seguinte». As costas destes indivíduos devem queimar de tão quentes…
E cá andamos. A convocar doentes para serem operados às cataratas, nem que dementes, nem que com neoplasias terminais. A ver as habilidades da facturação nos exames e procedimentos. A reconvocar (quase compulsivamente) doentes que faltaram, a dar altas administrativas, a ver os doentes indefinidamente pela primeira vez, a inventar consultas urgentes, de triagem, de prescrição. Impedidos de alterar a agenda cá andamos a marcar 3 e 4 doentes à mesma hora. Cá andamos a justificar nº de consultas e cirurgias, primeiras versus segundas, tempos de execução e taxas de ocupação, GDH e case-mix, e etc., e etc. Tempos para reuniões, estudos, publicações, congressos, moderações e afins, apenas se não comprometerem a actividade (dita) assistencial. Cá andamos. Neste antro. Neste inominável antro.
Para não falar no corte das «ceias» dos profissionais, no racionamento do leite (do leite, leram bem) das crianças na Pediatria, nas camas que não se podem fazer todos os dias, dos lençóis aproveitados de doentes transferidos de outros hospitais. E a avistar todos os dias os carros topo de gama, todos curiosamente de finais de 2009, que adornam o parque da Administração. Cá andamos sem luz ao fim do túnel. Sem nenhuma das virtudes e com todos os vícios dos hospitais privados (e mais um: o de não se depender sequer dos «subsistemas», mas do «sistema» em si).
Cá andamos, vendidos por nem 30 dinheiros pela ARS e pelo MS. Até ao dia, que não se afigura distante, em que vamos dizer: cá andámos.
E neste silêncio, neste silêncio que não se percebe, neste silêncio de abandono.»
Ante Meridiem
Etiquetas: PPP Hospital de Braga
9 Comments:
A procissão ainda vai no adro…
Começam a desvanecer-se as ilusões daqueles que, com alguma ingenuidade, acreditaram na miragem privatizadora do sistema de saúde. O blá-blá da eficiência, da eficácia que enfeita a modernaça gestão propagandeada pelos operadores privados aí está no seu real esplendor. Pelo caminho vão soçobrando os sonhos de refazer os caminhos de uma medicina moderna, de base científica, prestigiada e suportada em carreiras médicas exigentes e rigorosas. Que diria Miller Guerra se pudesse assistir ao desmoronar daquilo que ajudou a criar.
O futuro é muito claro. Zurzir “na coisa pública”. Intoxicar os “media” com a entediante insustentabilidade, incentivar a abertura de faculdades e a importação de médicos low-cost. Proletarizar a profissão e embaratecer os recursos. Propostas salariais que remontam às práticas Taylorianas da revolução industrial. Vencimentos inclusivos sem qualquer tipo de discriminação face ao trabalho em horas incómodas. Prémios por gastar menos em remédios e material clínico, etc. etc.
A tudo isto os distintos dirigentes sindicais, tão rigorosos e exigentes com o Estado e os hospitais empresa, mal se ouvem. E o novo Bastonário? Será que trocará a exaltante cruzada contra a DCI pela defesa de uma medicina de qualidade contra as grandes superfícies que pretendem retalhar o exercício da profissão médica?
Perante isto quem defende os cidadãos do risco da destruição do sistema de saúde? Ficaremos nas mãos dos garotos formados nas consultoras da moda e treinados para dar palpites sobre coisas sérias à medida que as (poucas) ideias lhe vão escorrendo pelo gel do cabelo?
Continuaremos a assistir às “compras” dos aprendizes de reguladores por dez réis de mel coado?
E a senhora ministra? Qual Che Guevara (no feminino) defensora do SNS? Não lhe explicaram ainda que ficará para a história como a primeira responsável por tudo isto?
A culpa é da moda das feiras medievais. Tal é o culto que se confundem as realidades temporais. Nesse tempo, a propriedade era vendida ou tomada com a totalidade dos servos da gleba, que ficavam obrigados a servir e pagar rendas ao novo senhor, detentor de todos os direitos, incluindo o de justiça (?).
Os funcionários são os novos servos da gleba e estão com sorte que não se lembrem do direito de pernada.
Talvez se ler o que está escrito no site do SIM perceba o silêncio dos dirigentes sindicais.
Ver
http://www.simedicos.pt/Noticias/SIM-requer-a-ACT-procedimento-contra-ordenacional-contra-Escala-Braga.aspx
O que se passa é que a Escala Braga se comporta como uma estrutura prepotente e fascista, com ampla cobertura a alto nível governamental.
Foi-nos enviado o seguinte COMUNICADO DE IMPRENSA
No seguimento da informação recentemente veiculada por alguns órgãos de comunicação social, que refere a alegada saída do actual Gestor de Contrato, que acompanha a actividade das entidades gestoras da Parceria Público-Privado do Hospital de Braga para a José de Mello Saúde , vimos esclarecer o seguinte:
- A referida notícia é completamente falsa e não tem qualquer fundamento, pelo que vimos negar veementemente as afirmações contidas na mesma a este propósito;
- Consideramos inqualificável que sejam publicadas notícias deste teor, sem qualquer tipo de fundamento ou confirmação prévia, e que apenas contribuem para a desinformação dos leitores.
Carnaxide, 11 de Fevereiro de 2011
Assessoria de Comunicação
O Governo PS sempre tão amiguinho do Estado Social é o primeiro promotos das privatizações.
O SNS continua a ser retalhado e vendido a empresários privados incompetentes como é o caso da José Mello Saúde.
É esta a política do PS de José Sócrates.
Este post espelha com clareza uma realidade que, sendo mais visível nas PPP's com gestão privada [ou concessionada], começa a estender-se aos HH's do SNS, na sua maioria EPE's.
Na verdade tudo parece ser possível manipular - desde o desempenho aos resultados - se acaso não se impuserem drásticos mecanismos de avaliação, se não existir uma regulação idónea, se os resultados [e as contas] forem "trabalhados"...
Entregar HH's a empresas, ou submetê-los a uma gestão desse tipo [ad libidum], conduzirá a um tipo de insustentabilidade [pouco mencionada] do SNS - a insustentabilidade técnico-profissional - que o apetite pelo lucro, o excesso de zelo, o autoritarismo e o carreirismo - fomentam.
Aliás, o futuro do País com estas modalidades de gestão [não só no SNS], baseada na contenção, nas restrições salariais, na desmotivação, no medo, espectro de mobilidades discricionárias, etc., está condenado, a médio prazo, ao mais penoso fracasso. Pode ser uma solução [às vezes nem isso!] imediatista, sem perspectivas de sucesso [e de sustentabilidade].
Por isso, esboço um sorriso quando ouço algumas luminárias debitarem frases do tipo: "não é possível promover a saúde contra os médicos"...[cito de memória].
E escancaro-me a rir quando sou confrontado com os "brilhantes" resultados das gestões privadas face à "fatal e predestinada" mediocridade da coisa pública.
Porque, se calhar ingenuamente considero que "rir é o melhor remédio"...
«A convocar doentes para serem operados às cataratas, nem que dementes...» (SIC)
Mas, e os doentes dementes não podem ser operados às cataratas?
Os meus parabéns por este texto tão bem escrito. Ainda que esteja há pouco tempo nesta "coisa de ser médica" reconheço que os esqueminhas e artimanhas que tenho visto por parte de hospitais me têm tirado o juízo.
É impressionante como o Estado aceita pagar mal aos seus funcionários sendo conivente com o enriquecimento absurdo das empresas com quem tem contratos...
E aos poucos, lá se vai a vontade de fazer boa medicina...
se é este o futuro almejado para garantir a sustentabilidade da prestação de cuidados de saúde no SNS, 2 comentários simples:
* exemplos conhecidos mostram-nos consequências financeiramente catastróficas e agravadas; é o que se pode esperar quando se pretende fazer da DOENÇA (nem sequer falo de saúde) um NEGÓCIO, confiando em indivíduos que olham em primeiro e em último lugar para os balanços mensais e anuais e para quem "formação humanista" representa a 4ª área de ensino no secundário ou um bom jargão para vender projectos de novos Hospitais. Facturação abusiva e falsa; fiscalização do Ministério da Saúde devidamente "integrada"; refeições insuficientes para os doentes; desinvestimento no desenvolvimento de cuidados especializados; obliteração dos tempos de produção científica e do desenvolvimento de competências locais; favorecimento de contratos de prestação de produtos e serviços a empresas "do grupo"; criação e desenvolvimento de áreas "carenciadas", financeiramente mais rentáveis, relegando para segundo plano necessidades assistenciais de significativo impacto na saúde populacional; redundância administrativa; remodelação desnecessária de suporte informático.. (exemplos semelhantes, concretos e quotidianos abundam)
* o conceito clássico e precioso de "Serviço" será substituído por um sucedâneo 1) estéril na prestação de cuidados de saúde de qualidade, 2) insuficiente para criar e manter competências especializadas locais, 3) incapaz de garantir formação médica contínua, 4) incompetente para obter idoneidade formativa para o internato médico (e no caso do Hospital de Braga incompetente para assegurar ensino médico pré-graduado), 5) desinteressado em alcançar a multidisciplinaridade exigida ao quotidiano de um hospital do mundo civilizado no século XXI, 6) desligado da realidade de saúde local.
AM, bem espero que não tenhas/tenhamos que juntar o acento agudo, que consiga/consigamos quebrar o silêncio e que nessa altura a poesia permaneça na rua.
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