Três palavras, uma depressão
Qual destas três palavras não entendeu? Não há dinheiro.
Assim falava Vítor Gaspar e assim ainda falam os que pretendem tornar
permanente a política de austeridade depressiva: não havia, não há e não haverá
dinheiro. Não havia dinheiro e daí a troika e o seu memorando. Não há dinheiro
e daí a proposta pós-democrática do Presidente da República. Não haverá
dinheiro e daí o segundo resgate, qualquer que seja o seu nome, com a mesma
austeridade, desta vez sem o FMI. Todas as fraudes - do "vivemos acima das
nossas possibilidades" ao "todos temos de fazer sacrifícios" - e
todas as políticas que estas inspiraram nos últimos dois anos - da mais
predadora vaga de privatizações aos cortes nos salários directos e indirectos -
são tributárias do poder de, com três palavras, enganar os portugueses com a
verdade.
É verdade que não havia e não há dinheiro suficiente para
pagar salários, pensões e todas as outras despesas públicas, sobretudo se se
incluir, decisivamente, o fardo de uma dívida pública crescente, que tem de ir
sendo amortizada, e cuja despesa anual, só com juros, aumentou mais de 50%,
entre 2010 e 2013, sendo já bastante superior à totalidade das receitas
previstas com as privatizações no memorando. É também verdade que, como
sublinhou o ex-secretário de Estado do Orçamento, Emanuel dos Santos, mesmo
quando se assinou o memorando havia dinheiro para pagar salários e pensões, já
que, só no decisivo primeiro semestre de 2011, as receitas de IRS e IRC
ultrapassavam as despesas com salários, e as contribuições para a Segurança
Social chegavam e sobravam para pagar as pensões.
De qualquer forma, estando exclusivamente dependente dos
agentes dos mercados financeiros ou, na falta de interesse destes, da
"bondade de estranhos", um Estado sem a possibilidade de financiar
monetariamente os seus défices não é bem um Estado e a sua dívida não é
definitivamente soberana. Estes estranhos constituíram, em 2011, uma troika,
nada bondosa, que nos emprestou dinheiro para garantir que os credores
privados, sobretudo os bancos, não tivessem perdas com a dívida portuguesa num
mundo ainda traumatizado com as consequências da falência do Lehman Brothers.
Estas perdas adviriam de uma decisão, que hoje é mais difícil do que era em
2011, mas que é igualmente necessária: recusar o memorando e declarar uma
moratória ao pagamento da dívida, isto é, uma suspensão dos pagamentos dos
juros e das amortizações ao longo de um processo negocial que terá na agenda,
entre outros temas, a reestruturação da tal dívida, reduzindo em profundidade o
seu montante.
Esta decisão é hoje mais difícil, mas não impossível, porque
mais de metade da dívida pública portuguesa está já nas mãos dos credores
oficiais, da troika, enquanto que, em 2010, metade estava na mão de credores
privados estrangeiros. É mais fácil a um Estado soberano negociar em posição de
força com os últimos, impondo-lhes perdas numa dívida sob a lei nacional.
No seu mea culpa sobre a depressão grega, o FMI tirou uma
conclusão que também se aplica a Portugal: a Grécia devia ter reestruturado a
dívida em profundidade, logo em 2010. Isso só não se fez porque os países
europeus mais poderosos e as instituições europeias não quiseram e porque
conseguiram impor essa vontade a elites nacionais subservientes, apostando
antes em salvar as suas grandes instituições financeiras com os tais resgates.
Os bancos do Centro europeu tiveram assim tempo de ir transferindo uma dívida
pública crescentemente impagável para a troika. Um processo replicado na dívida
privada pelo congelamento do financiamento externo à banca nacional,
prontamente substituído pelo BCE.
Esta socialização de perdas potenciais esteve, está e estará
associada a uma condicionalidade "austeritária". De facto, não há
outro nome para uma imposição externa da austeridade apoiada internamente pelas
fracções dominantes do capital, em especial do financeiro, ansioso por garantir
o acesso ao dinheiro barato e potencialmente ilimitado do BCE que é necessário
à sua sobrevivência. Estas políticas são a melhor forma de transferir custos
sociais para baixo, enquanto os de baixo transferem recursos para cima e para
fora. Por isso, o memorando foi apresentado por muitos como o melhor que tinha
acontecido à economia portuguesa, uma oportunidade para fazer coisas
impossíveis em circunstâncias democráticas normais. O Governo ainda em funções
apresentou-o como uma bandeira, aplicando com denodo as suas várias versões.
Façamos então um balanço e comecemos por ser generosos: as
sucessivas revisões do memorando eram inevitáveis, dado o ponto de partida
analítico-político e dada a incerteza que sempre rodeia qualquer plano. O
melhor que se pode dizer é que a confiança europeia na fraude conveniente da
"austeridade expansionista" levou a uma subestimação dos impactos
recessivos da austeridade. Isto afectou a trajectória do défice orçamental e da
dívida pública, as tais variáveis que se sabe serem endógenas, ou seja,
dependentes do andamento da economia.
Chegaremos ao fim de 2013 com uma economia com menos
capacidade para gerar riqueza, até porque terá quase menos 500 mil postos de
trabalho. O "não há dinheiro" também é uma profecia que se
autorrealiza. Só a diferença entre a taxa de desemprego prevista, em 2011, pela
troika para 2013 e o último valor previsto agora - 13,3% e 18,2%,
respectivamente - já é superior à taxa de desemprego total em 1999, ainda antes
da adesão ao euro. A actual taxa de desemprego está próxima do dobro do máximo
histórico antes da adesão a uma moeda que não nos serve, até porque não a
controlamos politicamente e quem o faz tem interesses divergentes. O valor do
investimento empresarial terá caído terá mais de 20%, só nos dois anos, 2012 e
2013, que já deviam ser de recuperação, segundo as previsões originais. O mesmo
INE que regularmente inquere milhares de responsáveis empresariais sobre as razões
para o investimento ou para a falta dele, obtém igual resposta há muito tempo:
fracas expectativas de vendas em primeiríssimo lugar; não há procura que
justifique manter a capacidade produtiva instalada, quanto mais expandi-la.
Toda a narrativa oficial sobre transformação estrutural e modernização
económica não passa assim de mais uma fraude.
Neste pano de fundo depressivo, há dois
"sucessos", um que sempre foi alardeado e o outro que o começa a ser,
a partir do momento em que a vergonha desaparece e a natureza de classe desta
política é assumida. Falo da eliminação do défice da balança corrente e da
queda dos salários - mais de 7,0% entre destruição de emprego e cortes nos
salários, só em 2012 -, ao mesmo tempo que os rendimentos de propriedade cresciam
sem parar. O primeiro "sucesso" foi conseguido sobretudo graças à
compressão da procura interna e aos seus efeitos recessivos, o que reduz as
importações, mas é de difícil compatibilização com a redução do défice
orçamental, já que a recessão que gera consolidação externa reduz as
necessárias receitas orçamentais. O segundo "sucesso" foi conseguido
graças a um desemprego de massas, ao medo que este gera, à destruição em curso
da contratação colectiva e dos direitos laborais e, finalmente, aos cortes impostos
na função pública. Esta regressão laboral, parte essencial da chamada
desvalorização interna, para além de aumentar o número de famílias insolventes,
aumentará as desigualdades e a precariedade, desmotivará ainda mais os
trabalhadores, desincentivará investimentos em formação, promoverá os
empresários mais medíocres que vivem da mão-de-obra barata e fragilizará ainda
mais o Estado-providência. O que existe de mais decente neste país - as suas
escolas, os seus hospitais, as suas protecções sociais, os seus espaços
públicos - está em risco a cada dia que passa.
De facto, sabemos que o Estado-providência é feito de
serviços públicos e de transferências sociais, quanto mais universais melhor,
porque mais eficazes e mais redistributivas, mas também de uma política
económica que garanta empregos decentes e de uma contratação colectiva que
atribui um papel aos sindicatos, um dos seus principais pilares políticos.
Estes são os cada vez mais frágeis alvos a abater pela troika e pelos seus
aliados internos. O desemprego é um instrumento. Por exemplo, os cortes de 4,7
mil milhões de euros de despesa almejados pela troika aumentarão brutalmente o
desemprego. Se seguirmos as estimativas do próprio Banco de Portugal - por cada
euro cortado a economia cai dois -, só esta escolha terá um efeito recessivo de
mais de 5%. As mesmas políticas perversas gerarão sempre os mesmos efeitos
perversos. E daqui não saímos com estas elites nacionais e com este
enquadramento europeu.
Que interesse nacional é servido por estas políticas? O
interesse da maioria dos que aqui vivem, que têm cada vez menos dinheiro e
menores possibilidades de aqui viver, não é de certeza. Talvez seja o interesse
da minoria de milionários nacionais, cujo número aumentou 3,4% só no ano
passado, e dos credores internos e externos.
Vítima das suas elites económicas e políticas, Portugal foi
metido num sistema cambial rígido, o euro, que mais parece o padrão-ouro de má
memória dos anos trinta. Portugal abdicou neste processo de todos os
instrumentos de política económica - cambial, monetária, orçamental,
industrial, comercial, de controlo de capitais - de que um Estado necessita
para se desenvolver. A democracia foi esvaziada de densidade material e a
deliberação foi substituída por um moralismo atroz que serve para ofuscar o que
está em causa. O resultado desta inserção dependente foi uma colossal dívida
externa, privada na sua maioria, alguns dos piores anos da história económica
do país em termos de crescimento e de emprego e a certeza de que, assim, para a
maioria o pior ainda está para vir.
Que fazer então neste país? Temos de regressar à política da
dívida com que começámos; esta é a nossa arma, a arma dos que sabem que têm de
desobedecer às estruturas de dominação europeias, de preferência coordenados
com outros na mesma situação por essas periferias afora. As elites nacionais e
europeias farão a única coisa que agora lhes resta: tentarão meter-nos medo com
a saída do euro. Precisamos de um Governo que prepare o país para uma
eventualidade que terá certamente custos, mas também muitos benefícios: com
controlo de capitais e um sistema financeiro socializado, com um banco central
capaz de emitir moeda e
com política industrial autónoma ganharíamos margem de
manobra; teríamos uma moeda que valeria menos, certamente, mas isso seria bom
para devedores, para os que exportam, para os que produzem para o mercado
interno, para os que estão desempregados e, logo, para os que estão empregados,
que teriam menos medo. Só se não tivermos medo é que seremos capazes, enquanto
país, de superar três palavras malditas e uma depressão.
Nota: este artigo beneficiou do livro de Emanuel dos Santos
- Sem Crescimento não há Consolidação Orçamental, Lisboa, Sílabo, 2012 - e
retoma temas de um livro colectivo de que sou co-autor e que será lançado em
Setembro - Resgatar Portugal: a Troika, a Crise e as Alternativas Urgentes,
Lisboa, Tinta da China, 2013.
João Rodrigues, Investigador do Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra e co-autor do blogue Ladrões de Bicicletas link
Etiquetas: bater no fundo, liberais pacotilha
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home