domingo, dezembro 22

Ilusões

… Depois dos cumprimentos costumeiros peço licença para entrar. Nestas andanças de consultas domiciliárias é de bom-tom cultivar uma atitude humilde, tanto mais explicita quanto mais modesto o lar que visitamos. A casa é pobre por fora e por dentro. Sobre o tampo duma mesa repousa um envelope com resultados de análises… por abrir. Junto, uma plêiade de novas requisições. É assim: o clínico, numa consulta de recurso, longe, muito longe do doente que nunca viu, emite uma longa lista de ECD após ter passado os olhos (quando passou!) sobre os resultados das análises (sem se dar ao incómodo de os registar, claro está). Há quem chame a isto: consulta! A este despesismo, sem proveito para o doente, não será alheia a política dos contratos de “médicos ao mais baixo preço”, de infeliz memória.
A páginas tantas da conversa fico a saber que, dias atrás, o doente caíra e a mulher, sem força para o levantar, ali ficou, no chão, a fazer-lhe companhia. Uma noite inteira. A conversa é interrompida por uma vizinha, ainda mais velha. Vem oferecer os seus préstimos, curvadinha de todo. “Os velhos que cuidem dos seus velhos” penso de mim para mim, agora sem a leveza do humor a aliviar a constatação.
Apesar dos notáveis esforços dos centros de dia, nestas aldeias envelhecidas os anciãos ficam, com frequência, entregues a si mesmos durante demasiado tempo. Os jovens, quando os há, trabalham ou estudam arredados quilómetros suficientes para apenas virem dormir.
A evolução demográfica do país não pressagia tempos fáceis! Com uma faixa de idosos de crescente dimensão e minguando inexoravelmente o contingente das idades produtivas é de espantar que ainda haja quem acredite nos criadores de ilusões que reivindicam a diminuição da idade da reforma, fim das pensões de miséria, reforço do financiamento do estado social. Tudo isto em paralelo com a diminuição da carga fiscal e aumento de salários! E, claro está, subsídios a empresas improdutivas ou investimentos em obras públicas megalómanas e sem proveito para a nação.
Vivemos tempos difíceis e a fuga à realidade, própria de povos ingénuos, tornou-se uma tentação para os vendilhões de fantasias. A sede de poder cega-os e preferem ganhar eleições com quimeras a enfrentar realidades amargas mas incontornáveis.

Acácio Gouveia, JM 02.12.13 link