Ilusões
… Depois dos cumprimentos costumeiros peço licença para
entrar. Nestas andanças de consultas domiciliárias é de bom-tom cultivar uma
atitude humilde, tanto mais explicita quanto mais modesto o lar que visitamos.
A casa é pobre por fora e por dentro. Sobre o tampo duma mesa repousa um
envelope com resultados de análises… por abrir. Junto, uma plêiade de novas
requisições. É assim: o clínico, numa consulta de recurso, longe, muito longe
do doente que nunca viu, emite uma longa lista de ECD após ter passado os olhos
(quando passou!) sobre os resultados das análises (sem se dar ao incómodo de os
registar, claro está). Há quem chame a isto: consulta! A este despesismo, sem
proveito para o doente, não será alheia a política dos contratos de “médicos ao
mais baixo preço”, de infeliz memória.
A páginas tantas da conversa fico a saber que, dias atrás, o
doente caíra e a mulher, sem força para o levantar, ali ficou, no chão, a
fazer-lhe companhia. Uma noite inteira. A conversa é interrompida por uma
vizinha, ainda mais velha. Vem oferecer os seus préstimos, curvadinha de todo.
“Os velhos que cuidem dos seus velhos” penso de mim para mim, agora sem a
leveza do humor a aliviar a constatação.
Apesar dos notáveis esforços dos centros de dia, nestas
aldeias envelhecidas os anciãos ficam, com frequência, entregues a si mesmos
durante demasiado tempo. Os jovens, quando os há, trabalham ou estudam
arredados quilómetros suficientes para apenas virem dormir.
A evolução demográfica do país não pressagia tempos fáceis!
Com uma faixa de idosos de crescente dimensão e minguando inexoravelmente o
contingente das idades produtivas é de espantar que ainda haja quem acredite
nos criadores de ilusões que reivindicam a diminuição da idade da reforma, fim
das pensões de miséria, reforço do financiamento do estado social. Tudo isto em
paralelo com a diminuição da carga fiscal e aumento de salários! E, claro está,
subsídios a empresas improdutivas ou investimentos em obras públicas
megalómanas e sem proveito para a nação.
Vivemos tempos difíceis e a fuga à realidade, própria de
povos ingénuos, tornou-se uma tentação para os vendilhões de fantasias. A sede
de poder cega-os e preferem ganhar eleições com quimeras a enfrentar realidades
amargas mas incontornáveis.
Acácio Gouveia, JM 02.12.13 link
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home