A Liberdade e a Ética (…dos cemitérios)
A Ética não é um bem asséptico nem uma cartilha de
ingenuidades. O código proposto pelo Ministério da Saúde na sua versão
‘original’ link
, mesmo após algumas ‘revisões’ e flexibilizações, sob a pressão de uma
indignação pronta e genuína, não consegue despir-se do seu cariz inicial,
altamente redutor das liberdades dos profissionais de saúde do SNS (e não só
dos médicos). Trata-se de um documento que nasceu enviesado, ardiloso e opaco.
Alguém escreveu ‘aquilo’ e publicitou com o beneplácito de um reduzido círculo
de decisores. Para encurtar razões a ineludível opção política foi a elaboração
de uma ‘ética utilitarista’.
A ideia de que os ‘custos sociais’ podem ser manipulados
(adicionados, subtraídos ou distorcidos) ou ainda escondidos por detrás de
‘princípios morais’ está subjacente em todo este documento com pretensões a
orientar (‘regular’) o comportamento dos profissionais que trabalham no SNS .
Abrangências e compensações digladiam-se em todo o
documento. Quando se proclama como linha mestra de acção política (como este
Governo tem feito) a ‘convergência’ entre o sector público e privado o presente
documento perde razão de existir. O que existe de semelhante, ou de aproximado,
para o sector privado fica a léguas de distância se, p. exº. considerarmos outros
serviços de âmbito público (CTT, p. exº., link).
Finalmente, ficam à margem (para já diminuídos) o vasto
conjunto de ‘perdedores’ (utentes) que, segundo a proposta de texto
legislativo, deverão ter informação ‘filtrada’ entremeada de salamaleques e de
evocações de excelência mas omissa nas deficiências É em nome destes
(‘universais’ utentes) se pretende ‘moralizar’ para sonegar dados relevantes.
O neoliberalismo, na verdade, perde-se nas entrelinhas do
imaginário e do lúbrico tentando iludir aquilo que realmente é. E é, na
verdade, uma burla.
As intenções serão outras. Primeiro, encobrir o processo de
degradação do SNS que, como é claro, não se confina ao código de ética mas
atinge transversalmente toda a estrutura do SNS desde a rede de cuidados primários,
à reforma hospitalar, às carreiras profissionais desembocando na ‘compressão’
de salários (justificada por mecanismos equitativos). Depois, este processo de
‘degradação’ está a ser diligentemente encarreirado para uma ‘silenciosa’
transferência de competências e, obviamente, de financiamento bem visível
quando, à revelia da inteligência e da sensatez, se referencia, que alguns
portugueses, em dia de greve serviços públicos, puderam auferir de cuidados no
sector privado e social. Nem o inefável Luís Filipe Pereira tinha ousado tanto.
Pretende-se ‘justificar’ que se procedeu assim (na senda do
colapso do SNS), não por propósitos ideológicos ou por comezinhos planos
tácticos, como é cada vez mais evidente, mas por que se tratou de um ‘período
de excepção’ que pretendia ‘salvar’ o SNS despojando-o de aquilo que se
considerou à partida como sendo desperdícios. Estamos perante a clássica imagem
do despejar a água suja do banho com o bebé lá dentro. Não é inteligível como
se pretende salvar o que não estando imune a reformas está estruturalmente
saudável e, em termos de função social, recomendável. Apesar de todos os
malabarismos, de todas as insuficiências, de todos os cortes persiste um enorme
consenso sobre a ‘necessidade’ de um SNS constitucionalmente definido, i. e.,
universal, equitativo e tendencialmente gratuito.
Para o exterior insiste-se que ninguém está de fora, que se
porfia por uma meritória sustentabilidade que tudo não passa da correcção de
desvarios orçamentais e uma gestão ‘moderna’ dos recursos humanos. Na
realidade, a abrangente e capciosa austeridade empurra o SNS para o precipício link onde as
reformas não existem (nem sequer estão na gaveta) e o investimento negativo. É
de uma candura estrema a pública ‘confissão’ de Paulo Macedo de que “não
compreende a greve [dos médicos]” link.
À borda deste (precipício) quer o sector privado, quer o
social, posicionam-se para repartir os despojos de um despedaçado sector
público. E qual o grito dos governantes neste intermezzo: a greve é uma
manifestação politizada! Como se os tractos de polé a que os portugueses têm
sido sujeitos tenham passado sem consequências pela sociedade. A fome e a
miséria empurram as pessoas para opções políticas. Bem pode gritar Paulo Macedo
porque como dizia La Fontaine “barriga vazia não tem ouvidos”.
A estratégia do MS é ganhar tempo. Quando a tensão sobe tudo
pode ser negociado e o diálogo torna-se um instrumento frenador da indignação
onde se colocam todas as expectativas. Quando a tempestade amaina é o inverso.
Aí entra em cena a desgastante táctica de erguer obstáculos, criar bloqueios,
adiar. Novas reuniões só para lá as vindimas link.
De facto estamos de regresso aos tempos em que “somos fantasmas a vaguear num
cemitério abandonado” (Vinhas da Ira, J. Steinbeck).
E-Pá!
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