segunda-feira, julho 14

A Liberdade e a Ética (…dos cemitérios)


A Ética não é um bem asséptico nem uma cartilha de ingenuidades. O código proposto pelo Ministério da Saúde na sua versão ‘original’ link , mesmo após algumas ‘revisões’ e flexibilizações, sob a pressão de uma indignação pronta e genuína, não consegue despir-se do seu cariz inicial, altamente redutor das liberdades dos profissionais de saúde do SNS (e não só dos médicos). Trata-se de um documento que nasceu enviesado, ardiloso e opaco. Alguém escreveu ‘aquilo’ e publicitou com o beneplácito de um reduzido círculo de decisores. Para encurtar razões a ineludível opção política foi a elaboração de uma ‘ética utilitarista’.
A ideia de que os ‘custos sociais’ podem ser manipulados (adicionados, subtraídos ou distorcidos) ou ainda escondidos por detrás de ‘princípios morais’ está subjacente em todo este documento com pretensões a orientar (‘regular’) o comportamento dos profissionais que trabalham no SNS .
Abrangências e compensações digladiam-se em todo o documento. Quando se proclama como linha mestra de acção política (como este Governo tem feito) a ‘convergência’ entre o sector público e privado o presente documento perde razão de existir. O que existe de semelhante, ou de aproximado, para o sector privado fica a léguas de distância se, p. exº. considerarmos outros serviços de âmbito público (CTT, p. exº., link).
Finalmente, ficam à margem (para já diminuídos) o vasto conjunto de ‘perdedores’ (utentes) que, segundo a proposta de texto legislativo, deverão ter informação ‘filtrada’ entremeada de salamaleques e de evocações de excelência mas omissa nas deficiências É em nome destes (‘universais’ utentes) se pretende ‘moralizar’ para sonegar dados relevantes.
O neoliberalismo, na verdade, perde-se nas entrelinhas do imaginário e do lúbrico tentando iludir aquilo que realmente é. E é, na verdade, uma burla.
As intenções serão outras. Primeiro, encobrir o processo de degradação do SNS que, como é claro, não se confina ao código de ética mas atinge transversalmente toda a estrutura do SNS desde a rede de cuidados primários, à reforma hospitalar, às carreiras profissionais desembocando na ‘compressão’ de salários (justificada por mecanismos equitativos). Depois, este processo de ‘degradação’ está a ser diligentemente encarreirado para uma ‘silenciosa’ transferência de competências e, obviamente, de financiamento bem visível quando, à revelia da inteligência e da sensatez, se referencia, que alguns portugueses, em dia de greve serviços públicos, puderam auferir de cuidados no sector privado e social. Nem o inefável Luís Filipe Pereira tinha ousado tanto.
Pretende-se ‘justificar’ que se procedeu assim (na senda do colapso do SNS), não por propósitos ideológicos ou por comezinhos planos tácticos, como é cada vez mais evidente, mas por que se tratou de um ‘período de excepção’ que pretendia ‘salvar’ o SNS despojando-o de aquilo que se considerou à partida como sendo desperdícios. Estamos perante a clássica imagem do despejar a água suja do banho com o bebé lá dentro. Não é inteligível como se pretende salvar o que não estando imune a reformas está estruturalmente saudável e, em termos de função social, recomendável. Apesar de todos os malabarismos, de todas as insuficiências, de todos os cortes persiste um enorme consenso sobre a ‘necessidade’ de um SNS constitucionalmente definido, i. e., universal, equitativo e tendencialmente gratuito.
Para o exterior insiste-se que ninguém está de fora, que se porfia por uma meritória sustentabilidade que tudo não passa da correcção de desvarios orçamentais e uma gestão ‘moderna’ dos recursos humanos. Na realidade, a abrangente e capciosa austeridade empurra o SNS para o precipício link onde as reformas não existem (nem sequer estão na gaveta) e o investimento negativo. É de uma candura estrema a pública ‘confissão’ de Paulo Macedo de que “não compreende a greve [dos médicos]” link.
À borda deste (precipício) quer o sector privado, quer o social, posicionam-se para repartir os despojos de um despedaçado sector público. E qual o grito dos governantes neste intermezzo: a greve é uma manifestação politizada! Como se os tractos de polé a que os portugueses têm sido sujeitos tenham passado sem consequências pela sociedade. A fome e a miséria empurram as pessoas para opções políticas. Bem pode gritar Paulo Macedo porque como dizia La Fontaine “barriga vazia não tem ouvidos”.
A estratégia do MS é ganhar tempo. Quando a tensão sobe tudo pode ser negociado e o diálogo torna-se um instrumento frenador da indignação onde se colocam todas as expectativas. Quando a tempestade amaina é o inverso. Aí entra em cena a desgastante táctica de erguer obstáculos, criar bloqueios, adiar. Novas reuniões só para lá as vindimas link. De facto estamos de regresso aos tempos em que “somos fantasmas a vaguear num cemitério abandonado” (Vinhas da Ira, J. Steinbeck).

E-Pá!

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