terça-feira, outubro 7

Ébola em Espanha e as ‘marés’…

Para os europeus que se julgavam ao abrigo da epidemia ebola chegou hoje uma notícia alarmante. O surto estará entre nós até ao fim de Outubro link.
O caso da auxiliar de enfermagem que contraiu a doença ao integrar a equipa profissional criada no Hospital Carlos III em Madrid para lidar com o primeiro doente evacuado para a Europa, o religioso Miguel Pajares proveniente da Libéria e falecido a 12 de Agosto, bem como do médico missionário espanhol Manuel García Viejo, evacuado da Serra Leoa e que veio a falecer, em 26 de Setembro, no Hospital Carlos III (Madrid), vítima de febre hemorrágica por ebola, levanta algumas questões que não podem ser escamoteadas.
Assim: ou os cuidados a ter perante este tipo de doentes não foram bem planeados e concebidos; ou existiram falhas na sua prestação. Ambas as questões circunscrevem-se ao domínio das falhas organizativas e/ou técnicas.
Em relação às circunstâncias até agora apuradas não existiu qualquer comunicação de acidente de trabalho, como por exemplo, rotura de luvas (que no protocolo de equipamento de protecção individual em vigor deverão ser duplas) em eventuais contactos com os doentes evacuados da Africa Ocidental ou, onde a poderá haver maior risco, relativas a eventuais percalços ocorridos no despir do equipamento individual de protecção.
Segundo o jornal ABC.es link foi solicitada pelos representantes de enfermagem uma investigação ‘a fundo’ sobre este novo caso, procedimento que é de manifesto interesse público e profissional.
Existe, uma terceira hipótese que pode levantar algumas interrogações e incide sobre a eventualidade de existência de hiatos na cadeia de transmissão do vírus do reservatório (morcegos frutíferos) ao homem, onde vectores intermédios (macacos, comida, etc.) sempre se apresentaram como carecendo de melhor verificação e esclarecimento. Mas a existência destes pontos frágeis e ainda obscuros parecem dizer respeito ao ‘ambiente e tradições culturais africanos’ onde, de facto e por ora, a doença permanece acantonada e continua a proliferar de modo endémico.
De qualquer modo, e perante a inexistência de factos que comprovem estarmos perante falhas inequívocas (humanas ou técnicas) toda a cadeia epidemiológica deverá ser revisitada. Neste momento deixou de haver lugar para dogmas.
Os dados conhecidos em relação às normas de manuseamento, condições de isolamento e outros cuidados preventivos a prestar e que determinam o desenvolvimento de medidas cautelares para os profissionais de saúde e restante pessoal hospitalar são taxativos e decorrem de postulados divulgados pela conceituada agência sanitária norte-americana (CDC) link.
Todavia, as primeiras denuncias não tardaram a aparecer e provêm do pessoal do Hospital Carlos III. E referem que os ‘equipamentos de protecção individual’, utilizados nesse Hospital, poderão não cumprir, na plenitude, as normas definidas para estas situações link. No entanto, as (más) notícias não acabam aqui e mais recentemente foi referido pela Associação de Enfermeiros de Madrid link que pessoal hospitalar com possibilidades de ter de lidar com doentes de ebola recebeu uma formação de 45 minutos…
Existe porém uma outra ‘história’ (pregressa) que tenderá a permanecer oculta. Essa diz respeito ao Hospital Carlos III e as recentes alterações da rede hospitalar em Madrid feitas em nome de uma eficiência sempre denominada como ‘reformista’ e ‘estrutural’ para esconder medidas orçamentais restritivas (cortes).
Parece cada vez mais notório que o Hospital Carlos III foi preparado de ‘improviso’ (ad hoc) para receber o primeiro doente de ebola evacuado para a Europa link. Foi lançada a suspeição de que o hospital em causa tem um nível 2 de isolamento e, por exemplo, nos EUA, os dez hospitais preparados para estes doentes teriam um nível 4 (mais avançado).
Mas, recuando no tempo, verificamos que antes de todo o actual imbróglio existiu o ‘plano de reestruturação sanitária de Madrid’. E, também, antes da ‘mexida sanitária’, o hospital em referência, especializado em doenças tropicais e infecto-contagiosas, que possuía capacidade instalada (condições físicas, técnicas e humanas) apropriada para especiais situações de contingência no domínio da infecciologia, i. e., quartos com pressão negativa, duplo acesso, incineração própria, câmaras de vigilância, ascensor próprio.
Interessa saber o que foi desactivado pela referida «reestruturação» porque, neste momento, é impossível ignorar todo o processo de “reconversão” do hospital num centro geriátrico e de doentes terminais link foi vítima de um ‘transformismo reformador’ que, na altura, levantou profunda celeuma.
Independentemente do apuramento da realidade á volta deste caso particular da infecção de uma profissional pelo vírus ébola que tem espalhado algum pânico (profissional e social) há, desde logo, responsabilidades políticas a apurar.
Certo que o ‘acidente’ se trata de uma contingência excepcional – o Governo Autónomo de Madrid não podia prever o presente surto de ébola - mas as decisões políticas em saúde não podem ignorar ou passar ao lado dos imponderáveis. Esta é uma característica da gestão em saúde que faz com que gestores indiferenciados tropecem na primeira dificuldade.
Para que não existam dúvidas sobre as perturbações na rede sanitária e hospitalar de Madrid será conveniente recordar que tudo começou com a proposta de ‘externalização’ (eufemismo de ‘privatização’) de 6 hospitais, nessa área geográfica, decididas pelo conselheiro Javier Fernández-Lasquetty, com o apoio do partido no poder (PP), que não resistiu a uma providencia cautelar judicial, pedindo a demissão.
O projecto ‘global’ não avançou mas, de imediato, o Governo da Comunidade de Madrid deu início a manobras de ‘desmantelamento’ à volta do sacrossanto conceito de sustentabilidade (financeira) link.
O Hospital Carlos III é uma das vítimas da ‘reestruturação’ em curso sendo ‘desactivado’ e foi transformado naquilo que por cá se designa por unidades de cuidados continuados e/ou cuidados paliativos.
Quando em Maio de 2013 o pessoal sanitário da comunidade de Madrid entrou em greve link contra a ‘reforma sanitária’ que o Governo Autonómico de Madrid, sob a batuta do PP, tentava impor aos madrilenos, os profissionais de saúde estavam a tentar prevenir casos como o presente. Não foram ouvidos. O resultado (embora indirecto e desfasado no tempo) está à vista. A ‘maré branca’ que então varreu a Espanha (e não só Madrid) link contra a destruição do sistema público de saúde corre o risco de transformar-se agora numa ‘maré escarlate’ (hemorrágica).

E-Pá!

Etiquetas:

2 Comments:

Blogger DrFeelGood said...

um relato solitário e cheio de faltas de informação aquele que o médico Juan Manuel Parra, adjunto das urgências do Hospital de Alcorcón, em Madrid, faz das 16 horas que passou a assistir Teresa Romero, auxiliar de enfermagem, o primeiro caso de contágio de ébola fora de África. A descrição, por escrito, inclui o uso de um fato de segurança demasiado curto e foi feita pelo próprio antes de pedir para ser colocado em isolamento no Hospital Carlos III da capital espanhola.

“As mangas estavam curtas”, conta Parra, de 41 anos, explicando só ter mudado para o equipamento de maior nível de segurança disponível no hospital (uniforme completo, com máscara, óculos, dois pares de luvas e cobertura para os sapatos) às 17h, altura em que é informado da possibilidade de se tratar de um diagnóstico positivo de ébola, nove horas depois de ter começado a atender Romero, cujo estado não parava de piorar. O médico teve de tirar e voltar a colocar o fato de protecção pelo menos 13 vezes, considerando, por isso, que esteve em risco de contágio.

À chegada de Romero, que avisou ter tido contacto com o vírus, é o próprio Parra que activa o protocolo para estes casos e a envia para um quarto de isolamento – isto, depois de a auxiliar ter sido transportada numa ambulância convencional.

O condutor da ambulância e o maqueiro que levaram a enfermeira avisaram o Departamento de Saúde de Madrid que a paciente dizia ter ébola, mas este aviso não foi levado a sério porque um médico de uma unidade de Atendimento Domiciliário que a vira meia hora antes a encontrou com 37,2 graus de temperatura, em vez dos 38,6 que fazem soar o alarme e descartou essa possibilidade.

Assim, das duas viaturas disponíveis, a empresa de ambulâncias Safe Eurolimp enviou o modelo convencional (sem equipamento para doentes contagiosos). O maqueiro que a recolheu fê-lo com máscara, luvas e uma bata de papel. A ambulância, que não foi desinfectada, ainda recolheu outros sete pacientes.

Durante todo o dia de segunda-feira, em casa e no hospital, Romero (que entretanto já teve o seu cão abatido) nunca parou de dizer que tinha ébola e de alertar o pessoal médico para o perigo de contágio. Mas o conselheiro de Saúde da Comunidade de Madrid, Francisco Javier Rodríguez, responsabiliza a auxiliar, acusando-o de ter ocultado ao médico e às pessoas que a assistiram antes disso que tratara dois sacerdotes repatriados de África (um morreu em Agosto; outro em Setembro).
JP 09.10.14

8:46 da tarde  
Blogger DrFeelGood said...

...
Protecções insuficientes
Já no Hospital de Alcorcón, o problema, para além dos equipamentos de protecção disponíveis serem pequenos, foi o tempo que demorou até que os resultados das análises chegassem ao médico, que acabou por saber destes através pelos jornais.

Durante as primeiras horas, até os sintomas se agudizarem e Parra pedir para extrair uma amostra de sangue, o médico e os enfermeiros que entraram no quarto fizeram-no com “fato de primeiro nível”, que inclui uma bata impermeável, dois pares de luvas, uma touca e uma máscara cirúrgica. Mas às 11h já o médico avisara os seus superiores para “o estado de deterioração da paciente” e defendera “a necessidade de uma actuação imediata”.

Entre as ordens do médico para que os envolvidos no tratamento a Romero mudassem para equipamentos de maior segurança, o próprio continua sem o fazer, descreve, por estar sozinho a coordenar o caso. “Durante este tempo, a paciente começa a piorar, com tendência para a hipotensão, náuseas e mal-estar, obrigando a medidas de apoio”, descreve, num texto a que os jornais espanhóis tiveram acesso.

Saber pelos jornais
Ainda que seja o máximo responsável pelo caso, não é o primeiro a saber que a análise inicial deu positivo para o vírus. “Apesar de a primeira amostra ser positiva, eu não tenho conhecimento directo disso, a não ser pelos jornais”, denuncia.

Considerando “o alto risco de complicações”, às 18h, Parra pede que a enfermeira seja transferida para o Hospital Carlos III, que é o centro de referência em Madrid para estes casos e foi onde Romero contraiu o vírus. Uma segunda análise, uma hora depois, confirma que a paciente está infectada com ébola e o médico volta a saber disso “primeiro pelos media e não pela autoridade competente” (o El Mundo escreve que soube uma hora antes de Parra). Só cinco horas mais tarde, depois da meia-noite, chega a ambulância que levaria Romero para o Carlos III.

Durante a tarde de quarta-feira, Parra pediu para ser internado no mesmo hospital. Esta quinta-feira, há seis pessoas em isolamento no Hospital Carlos III.
JP 09.10.14

8:47 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home