Sucata política
Está a terminar o período de graça de Paulo Macedo, sem que
as reformas essenciais tivessem sido feitas
Num dos dias da semana passada, Passos Coelho surpreendeu
com a declaração de que esteve ao lado do Serviço Nacional de Saúde (SNS) no
seu momento mais difícil. Não se sabia que tinha havido um recente “momento
difícil”, nem que Passos Coelho tinha estado à cabeceira do doente. O SNS nos
seus 35 anos de vida passou por momentos bem mais difíceis, o principal dos
quais foi a revogação da orgânica proposta pela lei que o criou em 1979,
praticada por um governo da AD em 1982 e depois anulada por decisão da então
Comissão Constitucional. A decisão levou a repor em vigor a anterior
legislação. Mais tarde, a regulamentação da lei de bases por Leonor Beleza
(1990) e depois o regulamento do SNS de Arlindo de Carvalho (1993) foram
momentos difíceis, afinal vencidos com bom senso. No final da década de 1990, a
concentração de recursos na educação levou à penúria orçamental na saúde,
prejudicando a racionalidade da gestão, aumentando o endividamento, fazendo
perder eficiência ao sistema. O padrão continuou na primeira metade da primeira
década do novo século, com rectificativos e novos e insuficientes orçamentos
iniciais. O ciclo só foi quebrado em 2005 e anos seguintes com dotações
orçamentais quase coincidentes com a despesa real, o que permitia impor regras
de cumprimento financeiro estrito e eficiente. O sistema deteriorou-se depois,
sobretudo a partir do ano eleitoral de 2009. As restrições orçamentais da
troika levaram a que, apesar do esforço conseguido na redução da despesa
pública, dominantemente à custa da contenção do gasto em medicamentos, ajudado
pelo fim das patentes do terceiro ciclo terapêutico e erupção dos genéricos,
afinal se voltasse a cair em novos défices orçamentais. Quando se aperta o
cinto sem emagrecer a sério, nomeadamente através de exercício físico, o corpo
retoma o volume antigo mais depressa do que se pensa. E apesar dos méritos de
Paulo Macedo em manter o sistema de saúde com rosto humano, está a terminar o
período de graça, sem que reformas essenciais tivessem sido feitas. Algumas
delas foram propostas por Passos Coelho, no seu livro Mudar, edições Quetzal,
2010. Vale a pena rever:
a) lutar contra o despesismo, a desorganização e a
indisciplina nos grandes hospitais. A situação voltou ao que era, por nada ter
mudado. Teria sido necessário não apenas colocar músculo na administração mas
sobretudo interessar os gestores intermédios na gestão. Ora tudo os afasta de
tal responsabilidade: não escolhem dimensão, pessoal, instalações, por vezes o
equipamento e não têm qualquer poder sobre os subordinados a não ser o que
derive da sua autoridade científica e profissional. Sem poderes não há
objectivos nem metas; sem objectivos não há gestão;
b) produzir indicadores de comparabilidade entre o
desempenho público e privado para serviços e patologias semelhantes, preparando
a futura eventual privatização de hospitais públicos (a começar pelas de
pequena e média dimensão). Não se produziram indicadores que permitam escolher
entre o hospital público e o privado. A escolha baseia-se no marketing, onde o
aspecto exterior, as amenidades e a notoriedade mediática de clientes são
dominantes. Pior ainda é admitir que os produtos são iguais e possam ser postos
em competição: o público oferece serviço que não pode ser descontinuado, mesmo
que ineficiente, aguenta a emergência, as especialidades caras, o pessoal que
não pode ser despedido, o ensino que tem de acolher e a investigação que deve
apoiar. Nenhuma servidão impende sobre a hospitalização privada, a menos que
delas tire vantagem promocional. Não tendo sido produzidos os indicadores, ao
menos o país foi poupado à privatização de pequenos e médios hospitais, a que
tornaria mais desigual e distante o acesso das populações;
c) separar as funções entre a prestação pública e a
não-pública, para prevenir conflitos de interesse nos prestadores. Excelente
recomendação que teria o apoio de muita gente, até de médicos e enfermeiros,
bem como de hospitais privados que apostaram na profissionalização a sério do
seu pessoal. Embrulhado em pequenas querelas infindáveis com as representações
profissionais, faltou pulmão ao governo para dar este importante passo o qual,
pela primeira vez na história da saúde em Portugal, tinha aberta uma janela de
oportunidade. Que pena!;
d) não haverá razão nenhuma para que não existam escolas privadas
de medicina, desde que suportadas por bons hospitais, de adequada dimensão,
escreveu ainda Passos Coelho. Muita boa gente concorda, sobretudo os pais dos
cerca de duzentos estudantes de medicina que em cada ano se encontram a estudar
lá fora (Espanha e República Checa, sobretudo). Desconhece-se qualquer esforço
do governo em incentivar este tipo de investimento e espera-se que os habituais
atavismos nacionais se não oponham, quando ele surgir.
O governo entrou em fase de autocontemplação paralisante.
Deixou de pensar em reformas. A um ano de eleições perdeu impulso, energia,
capacidade. Deixou-se embrulhar em meadas na educação e na justiça, fruto da
combinação explosiva da incompetência com a arrogância. Gere ataques de
carácter com vagares de artesão reformado. Começou já a fase da distribuição:
salário mínimo, redução de impostos, remoção de cortes de ordenados e pensões.
Sem ter levado a cabo qualquer reforma que atraísse investimento e criasse
inovação. Pelo contrário, a incerteza fiscal, salarial e pensionista, os cortes
anárquicos na ciência e na educação não construíram uma linha de rumo. Quem lhe
suceder recebe um molho de sucata política.
Correia de Campos, JP 29.09.14
Etiquetas: Paulo Macedo, s.n.s
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