Patos bravos
Na inauguração de mais um Hospital privado - Senhor do Bomfim, Vila do Conde-
Passos Coelho achou por bem falar sobre
um consenso que abarque o futuro do SNS. Acha, o primeiro-ministro, que o SNS
será estruturalmente afectado pelas mutações demográficas (“temos cada vez
menos crianças, cada vez mais idosos com problemas que são típicos das
populações envelhecidas”…) link
.
Não se percebe bem o que para este governante estará em
causa. Se fossemos imediatistas poderíamos embarcar em perguntas directas:
- Serão preocupações sobre os cuidados primários que
deveriam cobrir toda a população independentemente dos grupos etários?
- Será a angústia de ver os cuidados continuados abrirem ao ritmo
marcado pelos apetites e capacidade do sector social?
- Será a necessidade contabilística de diminuir o número de
pediatras e aumentar o de gerontologistas?
Bem, não vale a pena inquirir o que se passa na cabeça de
Passos Coelho. A agenda política deste Governo para a Saúde assenta na velha
peia de um Serviço de Saúde onde o Estado seria o financiador e estruturas
privadas os prestadores. E numa outra coisa: a livre escolha !”… link.
Estas noções não são novas. Os primeiros indícios remontam
às alterações introduzidas na revisão constitucional de 1989 onde o direito à
saúde transita de ‘gratuito’ a ‘tendencialmente gratuito’ e passam também por
um hoje ‘esquecido’ livro sobre o ‘Financiamento do Sistema de Saúde em
Portugal’ (que embora não disponível on line convinha reler link),
elaborado em 1995, em fim de ciclo político do XII Governo Constitucional de
Cavaco Silva, sendo Paulo Mendo responsável pela pasta da Saúde onde, entre
muitas coisas, se anunciam algumas premonitórias alterações (separação entre
financiadores e prestadores, a empresarialização, concessão de hospitais e
finalmente modelos de ‘opting out’).
Este roteiro foi sendo paulatinamente introduzido à revelia
(ou nas margens) dos preceitos constitucionais. A caminhada, ou melhor, a
tortuosa marcha, foi sendo cumprida tendo por detrás um oculto e obscuro
programa ideológico. A ‘Reforma de 1990’ (Lei de Bases da Saúde / Lei nº 48/90,
de 24 de Agosto link)
para além do início das questões à volta das ‘taxas moderadoras’ (que
suscitaram a verificação de constitucionalidade) já avança com o alvitre de uma
separação entre financiador e prestador como condição para permitir a
introdução de gestão empresarial. Esta a primeira ‘machadada’ que no seu
posterior desenvolvimento contou com múltiplos cúmplices.
Em 2002, em pleno Governo Barroso e com Luís Filipe Pereira
ao leme, inicia-se a ‘mudança’. Aparecem, desastradamente, os Hospitais SA (Lei
nº27/2002, de 8 de Novembro link
)
como uma ‘experiência’ em 31 Hospitais, até então integrados no Sector Público
Administrativo (SPA), que não precisou de avaliar resultados, nem de
distanciamento temporal, para contaminar a maioria do sector hospitalar. Surge
então - como cogumelos em época outonal – ‘o delírio da empresarialização’ de
âmbito privado para gerir capitais exclusivamente públicos e, paralelamente, a
privatização descarada de hospitais (públicos) com as PPP (Decreto-Lei 185/2002
de 20 de Agosto link,
alterado pelo Decreto-Lei 86/2003 de 26 de Abril link).
Em 2005, já sob novo Governo (de maioria socialista),
procedeu-se a um novo ‘arranjo’ da rede hospitalar, essencialmente cosmético,
para evitar avaliações que tardavam (poderiam ser eventualmente incómodas) e camuflar
subfinanciamentos crónicos, transformando-se os Hospitais SA em Hospitais EPE
(Decreto-Lei 93/2005, de 7 de Junho link),
com o pretexto de permitir “compartilhar autonomia de gestão com sujeição à
tutela governamental”.
As PPP continuaram a fazer o seu caminho embora com algumas
alterações (Decreto-Lei 141/2006, de 27 de Julho link)
que geraram a 2ª. geração deste controverso modelo que nunca foi rigorosa e
cabalmente avaliado. Restam fundadas dúvidas se a gestão privada dos hospitais acrescentou
ganhos de eficiência, melhoria de qualidade dos cuidados e partilha de riscos que não podem ser
restritos a meras questões de investimento.
Se considerarmos o caso do Hospital Amadora-Sintra como um
projecto-piloto ressalta um largo campo de interrogações sobre a tipologia dos
compromissos assumidos (pelo Estado), os interesses dos utentes (cidadãos
contribuintes) e a partilha dos riscos (públicos versus privados) .
O programa delineado em 1995 está a ser paulatinamente
‘cumprido’ : o processo de separação entre financiador e prestador está em
franca velocidade de cruzeiro, a empresarialização dos hospitais corre de vento
em popa, ‘decretou-se’ que as PPP da saúde são um mar de rosas e soam já em
vários quadrantes as trombetas de possíveis ‘opting out’.
Pretende-se questionar o conceito de Serviço Nacional de
Saúde e substitui-lo por um Sistema Nacional de Saúde. As siglas são idênticas
(SNS) mas a substância é totalmente diferente. O sistema poderá ser aquilo que
o governo quiser e navegar à boleia de interesses políticos, partidários e dos
investidores sofrendo todo o tipo de entorses quando um serviço público é outra
coisa onde a responsabilidade do Estado, constitucionalmente definida, não pode
ser torpedeada ao sabor de concepções ideológicas e dos interesses privados. Na
verdade, o direito à saúde, independentemente das acrobacias neoliberais, é na
sua essência um ‘bem protegido’.
Não devemos atribuir grande importância às peregrinas ideias
do empresário Manuel Agonia sobre saúde (chamo-lhe ‘empresário’ porque pela
boçalidade expressiva parece não integrar - pelo menos no ‘economês’ - a nova
geração de ‘empreendedores’), melhor, sobre o ‘negócio da saúde’ a que
‘patrioticamente’ resolveu dedicar-se link.
Mais relevante em termos políticos foi a prestação ‘paralela
e complementar’ do Sr. Primeiro-Ministro (presente na cerimónia) que enrolado
na onda de financiar com dinheiros públicos serviços privados afirmou: “o
grande desafio do futuro é os cidadãos escolherem o local onde pretendem
receber os tratamentos de saúde". "Seria na mesma o Estado a
garantir, através dos impostos, o acesso aos cuidados, mas não tendo encargos
fixos, apenas contratando no mercado os melhores serviços ao melhor
preço", partilhou o primeiro-ministro, sublinhando o porquê de tal ainda
não ser possível. "O que nos impede é termos investido durante muitos
anos em equipamentos e serviços de saúde. E como bons investidores não
podemos deixar esses equipamentos vazios. Mas devemos criar, progressivamente,
condições para que essa liberdade das pessoas se possa materializar”, concluiu link.
É patético o mais alto responsável do actual Governo considerar-se
salvador do SNS e ao mesmo tempo defender a destruição do serviço público universal, equitativo e
tendencialmente gratuito, trocado por um sistema centrado no negócio gerido por
“patos bravos”, na mais pérfida tradição de liberalismo económico e social.
Ora, o dito ‘mercado de saúde’ é um espaço condicionado por
regras e especificidades próprias e está muito longe de ser o espaço ‘livre’
onde todo o tipo de negócios é possível, permitido e incentivado. Nos últimos
anos todas as alterações de formato têm sido contornadas com a progressiva
introdução de "stakeholders", uns internos, outros adjacentes
(externos), à sombra de um (falso e oportunista) estatuto supletivo e de
complementaridade. Este deambular tem vegetado até à entrada no ‘negócio’ dos
‘pesos-pesados’ (grandes grupos económicos, instituições financeiras e
seguradoras).
Há, todavia, um princípio que o primeiro-ministro teima em
ignorar (ou tenta levianamente ultrapassar). Uma eventual articulação do sector
público com o privado e o social (este muito em voga) não pode esquecer um dos
objectivos fundamentais do SNS, isto é, trata-se de um pilar social que se
tornou (depois do 25 de Abril) indispensável à coesão social nacional. E essa
articulação não é feita no mercado ou pelos ‘mercados’. É um ‘sistema em rede’
que como obrigação cobrir todo o território nacional e ser socialmente
inclusivo (equitativo). A tentação política do primeiro-ministro é a inversa:
‘trabalhar sem rede’, muito ao jeito de um equilibrista circense, ofuscado por
peias neoliberais.
Um serviço público de carácter universal não deve, nem pode,
ficar exclusivamente dependente da lei da oferta e da procura. Sendo por um
lado a procura universal tal facto condiciona a oferta, e esta universalidade,
para evitar perversões monopolistas e assimetrias, terá forçosamente de ser
assegurada pelos poderes públicos. Será difícil, ou impossível, assegurar um
tão vasto tipo de oferta (que passa por diversas ‘redes’ coordenadas e
interdependentes - cuidados primários, hospitalares, cuidados continuados,
saúde pública, etc.) ou, numa versão intermédia mais delicodoce, não poderá
contentar-se com uma regulação conjuntural (nada global) eficaz na prevenção de
iniquidades e bloqueios. A intervenção numa área tão sensível, específica e
socialmente estratégica, como é a Saúde, passa pela necessidade
(obrigatoriedade) de assumir no terreno e a nível nacional uma dominante
preponderância bem como a liderança no campo da prestação de serviços, do
investimento, da formação e da investigação. Não poderá haver confusão entre a
necessidade de introduzir, em contínuo, ‘alterações gesticionárias’, para
eliminar disfunções de toda a ordem que o dia-a-dia evidencia e a sub-reptícia
mudança de paradigma. Eventuais correcções de trajectória não podem configurar
uma ‘inversão de marcha’ sem que concomitantemente se elimine o desastre de um
‘despiste democrático’.
O esquema de privatização, disfarçadamente em curso, está à
vista. A oferta privada concentra-se nos grandes centros urbanos e no litoral (onde
tem condições negociais para florescer) e transforma-se num instrumento de
aprofundamento das assimetrias nacionais e regionais que irremediavelmente
inquinam as básicas condições de acessibilidade.
O SNS corporiza uma‘necessidade pública’essencial destinada a satisfazer interesses colectivos
prerrogativa que os portugueses não estão dispostos a abrir mão, nem a fazer
cedências.
Por isso as afirmações do Sr. Manuel Agonia (classificando a
saúde como um ‘negócio’) foram chocantes. Só faltou alinhar pela asserção de
que a dita área será o ‘melhor negócio depois do armamento’.
Mas pior foi a infame colagem do primeiro-ministro a essas
declarações. Revelou uma obsessiva paranóia de tudo privatizar que adquire
foros patológicos. Mesmo tomando em conta que Passos Coelho se encontrava num
espaço vocacionado para síndromas neuropsiquiátricos (Alzheimer, doença
bipolar, esquizofrenia, parkinson, …link)
os sintomas alienantes (de pensamento político e de ‘entrega patrimonial’) são
deveras preocupantes e não devem ser desvalorizados.
Passos Coelho, já em plena campanha eleitoral, foi para os
lados da Póvoa em mítica (mística?) romagem à Senhora da Saúde e saiu-lhe na
rifa o Senhor Agonia [*], sem que se preveja um ’Bomfim’ (designação
premonitória da nova unidade).
[*] – A romagem da Agonia é uma tradição popular de Viana
que remonta aos finais do século XVIII dedicada aos pescadores e patrocinada
pelos mesmos. Não deve admirar, portanto, estas novas afeições vindas de
contemporâneos ‘pescadores de águas turvas’…
E-Pá!
Etiquetas: Crise e politica de saúde, E-Pá
1 Comments:
A "nossa" da APAH:
Enquanto a situação dos Administradores Hospitalares "de carreira" se vai deteriorando nos hospitais (chegados ao ponto da humilhação pessoal e profissional) a "nossa" APAH publica a respectiva revista em "circulo fechado".
Ao ponto a que chegamos...
Mau demais para ser verdade!
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