domingo, março 29

Paulo Macedo, não deixa saudades

Representantes do sector analisam prestação do ministro
A pouco mais de seis meses do final da legislatura e das eleições legislativas, «Tempo Medicina» propôs aos vários representantes de instituições da área da Saúde, bem como a um observador atento e informado, uma reflexão sobre a política e a conduta de Paulo Macedo, como líder do Ministério da Saúde.  Embora as opiniões sejam naturalmente divergentes, os aspectos negativos superam de longe o que de positivo teve o seu mandato
«Como a avalia a prestação de Paulo Macedo como líder do Ministério da Saúde? O que destaca de positivo e negativo no seu mandato?»
Carlos Cortes, presidente do Conselho Regional do Centro da Ordem dos Médicos
«O legado do Dr. Paulo Macedo é ter desumanizado a Saúde» «O desempenho do titular da pasta da Saúde caracterizou-se mais pelo seu papel de empresário da saúde do que propriamente pelas suas preocupações pelos doentes ou pelas condições do trabalho dos profissionais. Concentrou-se, quase em exclusividade, nas questões financeiras e esqueceu as preocupações essenciais de um sistema público de saúde: o acesso aos cuidados de saúde, a equidade no atendimento e os meios necessários para a prevenção, o diagnóstico e o tratamento. A degradação do Serviço Nacional de Saúde (SNS) é de tal ordem que lançou milhares de médicos para a emigração, para a aposentação e para as unidades privadas. Concomitantemente, os hospitais e centros de saúde alistaram-se numa luta diária por adquirir meios de diagnóstico básico ou medicação adequada para os seus doentes. Acrescento, aliás, que houve uma importante poupança na área da Saúde que serviu para equilibrar o deficit de outros ministérios prejudicando a sustentabilidade e o desenvolvimento do SNS. Os cortes na Saúde, muito além do programado e desejado, puseram em causa a confiança que os portugueses depositavam num sistema considerado como dos melhores do mundo. Hoje, a grande perda do SNS é a sua humanização. As estatísticas de números de consultas e cirurgia, as pressões exercidas sobre os médicos, os programas informáticos disfuncionais, a ausência de dignificação do trabalho dos médicos afastam, a passos largos, a Medicina do doente. Temos de relevar a excepcional capacidade de trabalho e empenho dos médicos e dos outros profissionais de saúde em condições tão adversas. O legado do Dr. Paulo Macedo é ter desumanizado a Saúde e mercantilizado o seu funcionamento. Com graves consequências para os profissionais de saúde e para os seus doentes.»
Rui Nogueira, presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar
Ministro «não tem qualquer orientação estratégica clara para a Saúde em Portugal» «Excluindo a tentativa frustrada de uma melhor gestão (o maior controlo económico, incentivo ao mercado dos genéricos e a informatização de alguns processos e actividades) não é fácil encontrar pontos positivos neste mandato do ministro Paulo Macedo. Quanto aos negativos, a lista é imensa, desde logo a falta de comunicação com os médicos de família e APMGF, a estagnação das carreiras médicas, o drama que se instala em todos os concursos de MGF (o concurso que abriu em Fevereiro passado está estagnado), a falta de sensibilidade pela acessibilidade dos utentes com a centralização dos hospitais, a falta de planeamento a longo prazo, o aumento do número de vagas para o Internato de MGF que põe em causa a formação dos futuros MF e a tentativa do regresso dos clínicos gerais. Também a pontuar de forma negativa está a desvalorização e o desrespeito pelo trabalho do médico, com redução de salários ou tentativa de transferência das actividades específicas para outros grupos profissionais (até as receitas deixaram de dizer médico!). Depois, a APMGF destaca a total estagnação e desinvestimento na reforma dos CSP, a desqualificação dos cuidados de saúde de proximidade (o regresso da  figura de clínico geral é um atentado!) e a aberração de listas de 1900 utentes para todos. Em suma, Paulo Macedo não planeia, reage depois de muita denúncia (injecção de capital nos hospitais, contratação de pessoal, demissões hospital S. João, etc.) e o que é exigido aos médicos é prestar cuidados de saúde de qualidade ao mais baixo preço. A Associação conclui, por isso, que o ministro da Saúde não tem qualquer orientação estratégica clara para a saúde em Portugal a não ser fazer cortes cegos que colocaram/colocam em risco a saúde dos portugueses. Com um SNS diminuto sem grande qualidade confrontado com hospitais privados e com uma política de saúde neoliberal os médicos de MGF sentem-se em contraciclo.»
Marta Temido, presidente da APAH
«Procurou-se o controlo da despesa pública mas não a reforma da despesa pública» «A governação do Ministério da Saúde enfrentou, no último quadriénio, um dos mais adversos contextos económicos de que há memória na história do SNS. Os condicionalismos do PAEF dominaram as opções políticas do actual executivo. A Saúde não foi excepção. Como tal, as virtudes e os pecados que possam ser assacados às políticas da UE e do FMI são semelhantes aos imputáveis às políticas para o sector.  Procurou-se o controlo da despesa pública mas não se procurou a reforma da despesa pública. Não foi uma originalidade portuguesa. Análises sobre a avaliação das respostas das políticas de saúde europeias à crise financeira convergem na identificação do recurso a medidas de melhoria da eficiência, mais ou menos bem-sucedidas, mas também na referência a que não se aproveitou o momento para acrescentar valor, através de políticas dirigidas à efectiva melhoria do estado de saúde das populações. E é esse, não outro, o objectivo dos sistemas de saúde.  Para os utentes, o aspecto mais positivo deste ciclo radicou, provavelmente, na capacidade de redução da despesa com medicamentos, sem afectar o consumo, obtendo um impacto positivo no orçamento das famílias e no orçamento do SNS; o ponto mais negativo, e de efeitos ainda não inteiramente observáveis, terá sido o aumento das despesas out of pocket (especialmente das taxas moderadoras).  Para os administradores hospitalares, o aspecto mais negativo foi, inequivocamente, a perda de autonomia no exercício profissional; como o mais positivo poderá ser identificado o desenvolvimento de um conjunto de ferramentas de gestão, como o benchmarking hospitalar, e o aprofundamento de algumas modalidades de financiamento, como o pagamento por doente tratado em algumas doenças oncológicas.»
Alberto Abreu da Silva, presidente da ANEM
«O Ministério da Saúde podia ter feito mais» para melhorar a formação médica «No que respeita ao garante da saúde, a ANEM acredita que Portugal ainda apresenta um excelente serviço à sua população. Assim, à parte das recentes notícias que enumeram várias situações, em que os serviços de saúde não demonstram o seu maior potencial, há ainda um longo caminho a percorrer na formação médica em Portugal. Esta melhoria não passa necessariamente por uma alteração das metodologias de ensino, quer universitário, quer pós-graduado,  mas sim por um planeamento integrado da formação médica nestas duas valências. E, aqui, o Ministério da Saúde podia ter feito mais. Actualmente existe um desperdício de recursos na formação médica que se repercute numa diminuição das condições pedagógicas das escolas médicas e um excesso de recém-graduados que não contribui para a melhoria da saúde em Portugal. Quer a ANEM, quer a Ordem dos Médicos têm alertado para este problema há anos, sem que tenham existido adaptações por parte do Ministério da Saúde e da Educação com vista à sua resolução, que passaria por um planeamento integrado da formação médica em Portugal.  Estamos, em última instância, a falar da qualidade da saúde, pois este excesso de estudantes de Medicina coloca, por um lado, centenas de doentes em situações desconfortáveis nos vários hospitais afiliados a escolas médicas e, por outro, augura a existência de médicos indiferenciados, porque a capacidade de formação especializar recém-graduados em Portugal alcançou, virtualmente, o seu limite. Esperamos então que deste governo transite para o futuro um conjunto de recomendações que permitam contornar esta problemática, que se assume como a maior preocupação da ANEM relativamente à saúde em Portugal.»
Germano Couto, bastonário da Ordem dos Enfermeiros
«Foram tomadas decisões ruinosas no que toma à emergência pré-hospitalar» «A prestação do ministro da Saúde foi globalmente positiva. É alguém de fora da área da Saúde que soube dirigir um dos ministérios cujas medidas têm maior impacto na vida dos portugueses. Não é simples gerir uma estrutura tão complexa, tão dispersa e com diferenças nas lideranças e nas práticas clinicas e organizacionais tão marcadas, principalmente num momento de crise. Os pontos positivos que identificamos foi o combate à fraude, cujo sucesso é inegável; a promoção de genéricos e a redução de despesa do Estado e das famílias com medicamentos; o controlo da derrapagem dos gastos públicos com a saúde, ao mesmo tempo que foi possível ir pagando dívidas remanescentes. Devemos ainda acrescentar a aprovação do diploma do enfermeiro de família, cuja processo de implementação ainda irá demorar. Os pontos negativos prendem-se com o facto de não ter sido capaz de alterar o acesso dos cidadãos a consultas rápidas que respondam aos seus problemas emergentes, ainda que muitos destes não sejam urgentes. Esta situação, que foi visível com a recente sobrelotação dos serviços de Urgência, é antiga, mas foi agravada com o encerramento de respostas locais alternativas. Não conseguiu igualmente realizar alterações estruturais nos serviços de saúde que permitissem que os resultados em saúde fossem os verdadeiros indicadores da produção do SNS e de financiamento.  No âmbito do Ministério da Saúde, nomeadamente com os secretários de Estado, foram tomadas decisões ruinosas no que toca à emergência pré-hospitalar que colocam em causa a segurança das pessoas e em que a Ordem dos Enfermeiros teve de intervir judicialmente na defesa dos cidadãos. O planeamento de recursos humanos em saúde e a rentabilização das competências dos diferentes profissionais, entre os quais os enfermeiros e enfermeiros especialistas, foram igualmente pontos negativos do mandato deste Ministério».
Bernardo Vilas Boas, presidente da AN-USF
 «O principal erro do Sr. Ministro foi não definir os CSP como prioridade» «O principal erro do Sr. Ministro foi não definir os CSP como prioridade e não os ter considerado essenciais e estratégicos para a saúde dos portugueses. Os gravíssimos problemas que estamos a viver nesta altura, particularmente nas Urgências dos hospitais, estão relacionados com essa opção. Estão relacionados também com a política geral do Governo para o SNS, que fica marcada pelas restrições financeiras, quando, mais do que nunca, os portugueses precisavam deste suporte fundamental para minorar as consequências do empobrecimento, do desemprego e da deterioração da qualidade de vida. O Sr. Ministro da Saúde demitiu-se desde o início do seu mandato de liderar a Reforma dos CSP. Em consequência, esta reforma, que deveria estar generalizada, retrocedeu nos últimos anos face às expectativas dos profissionais e às necessidades dos utentes. Os centros de saúde, os agrupamentos e as diferentes unidades funcionais estão, assim, muito longe de poder cumprir plenamente a sua missão, por falta de investimento, de visão estratégica e de economia de saúde. Apesar existirem 418 USF, que abrangem cerca de metade da população, mantém-se um elevado e inaceitável número de utentes (cerca de 1,4 milhões) sem equipa de família, sem médico de família, sem enfermeiro e sem secretário clínico. Mantém-se a falta de articulação com os hospitais e as dificuldades de resposta destes, como se está a verificar.  Sublinhamos que a participação das equipas das USF e dos Aces no planeamento e o investimento no atendimento de proximidade e personalizado têm de ser verdadeira e permanentemente estimulados. Por fim, assistimos à permanência de hardware obsoleto, de rede muito lenta e de software que parece uma manta de retalhos. Em vez de facilitador, temos um sistema de informação que consegue criar mais problemas do que soluções, infernizando muitas vezes o dia-a-dia dos profissionais e dos utentes.»
João Almeida Lopes, presidente da Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica
«Desde 2011 que a Cadeia de Valor do Medicamento foi claramente eleito o principal alvo para a redução da despesa do Estado na Saúde e o resultado das várias medidas aplicadas foi a redução do preço dos medicamentos em Portugal para valores abaixo da média europeia. Também, através dos protocolos assinados entre a Apifarma e o Ministério da Saúde, as empresas farmacêuticas contribuíram directamente para a redução da despesa do Estado com cerca de 800 milhões de euros. O curto prazo em que se reduziu o valor do mercado de medicamentos em Portugal, a par das contribuições extraordinárias das empresas e da manutenção de valores elevados de dívida por parte dos hospitais públicos, colocaram graves constrangimentos à actividade das empresas farmacêuticas.   Embora a Apifarma reconheça o esforço do Governo em, nomeadamente no último ano, tentar reduzir o valor da dívida dos hospitais públicos, o seu carácter estrutural, e que motiva o contínuo crescimento, mantém-se. E vai manter-se enquanto os hospitais não forem financiados de acordo com as necessidades dos doentes que acolhem. Por outro lado, o nivelamento dos preços dos medicamentos para valores abaixo da média europeia gera novos problemas para os doentes portugueses, como a falta de medicamentos nas farmácias, devido à sua reexportação para países onde o seu preço é mais atractivo.»
Tempo Medicina, 27.03.14

Etiquetas: