domingo, janeiro 8

As urgências, os hospitais e os internistas

A Dona Lourdes (nome fictício) é uma doente de 75 anos que esteve internada no meu serviço, por uma traqueobronquite aguda, com mais 13 problemas de saúde e que teve, no último ano, 20 admissões no serviço de urgência, um internamento, oito consultas no centro de saúde e quatro no hospital. Este é o tipo de doentes que invadiu os hospitais: doentes idosos, frágeis e com múltiplas doenças, a quem uma gripe ou uma infecção respiratória descompensa facilmente. 
Os cuidados que estamos a dar a estes doentes são fragmentados, reactivos, baseados nos episódios agudos, através das urgências, e o modelo hospitalar que temos, dividido em silos dedicados a órgãos ou sistemas, de acordo com as várias especialidades médicas, já não é adequado. 
A resposta a estes doentes constitui o grande desafio dos sistemas de saúde e passa seguramente por novas formas de organização nos hospitais, programas integrados entre os níveis de cuidados, baseada em equipas multidisciplinares, por pensar os problemas de saúde em conjunto com os problemas sociais, por um maior apoio aos autocuidados. Os internistas e os médicos de família são essenciais para esta resposta.
Porquê a Medicina Interna? 
Porque a fragmentação progressiva das especialidades de órgão ou sistema, induzida pelo crescimento do conhecimento, tem gerado hiperespecialistas, que sabem cada vez mais sobre cada vez menos, mas estes doentes precisam de alguém que cuide deles de forma global. Por outro lado, a Medicina Interna tem qualidades inestimáveis num contexto de crescente exigência no uso dos recursos: é flexível, multipotencial e eficiente, na medida em que as nossas ferramentas principais são a história clínica e o exame objectivo, e com isso conseguimos três quartos dos diagnósticos.
Nós estamos nas urgências, nas enfermarias, nas unidades diferenciadas, nos cuidados intensivos, nos cuidados paliativos, nos hospitais de dia, nas consultas, mas somos também necessários nos serviços cirúrgicos, para prevenir as complicações em vez de sermos chamados apenas quando elas ocorrem. 
Queremos implementar projectos inovadores que retirem os doentes crónicos das urgências e diminuam os internamentos, através de Unidades de Medicina Ambulatória, que incluam os hospitais de dia, unidades de diagnóstico rápido, programas de hospitalização domiciliária e programas de cuidados integrados. Cada cidadão deveria ter, além do seu médico de família, o seu “internista de referência”, o médico que faz a ponte entre o hospital e os cuidados primários.
Apesar da Medicina Interna ser a especialidade com maior número de médicos nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde, a necessidade da Medicina Interna tem crescido de forma mais acelerada do que a formação de internistas, e é por isso que a Medicina Interna é também a especialidade mais carenciada nos hospitais do SNS. Esta carência só é compensada pela nossa dedicação aos doentes, traduzida em milhares de horas a mais não remuneradas, folgas que ficam por gozar, vida pessoal e familiar comprometidas. Todos os invernos somos sujeitos a um enorme esforço adicional, sem qualquer tipo de incentivo. Os nossos doentes precisam de muitos mais internistas, mas a nossa atividade tem de ser mais reconhecida, mais dignificada e mais bem compensada.
Luís Campos, Presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna, Expresso 7 de Janeiro de 2017


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