Futuro sem futuro
Os problemas com que o
SNS se confronta hoje só serão agravados com este suposto “regresso às
origens”.
Recentemente veio a público a notícia de que o antigo ministro da Saúde
António Arnaut e o ex-líder do Bloco de esquerda, João Semedo, proporão
brevemente uma nova Lei de Bases da Saúde que consagre supostamente o regresso
do Serviço Nacional de Saúde (SNS) à sua “matriz original”.
Significa isto, segundo a notícia, que só o Estado poderá prestar cuidados
de saúde, no âmbito do SNS, proibindo-se os acordos, hoje existentes, com as
Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS) e as Parcerias
Público-Privadas (PPP), ou seja, “a administração, gestão e financiamento da
prestação de cuidados de saúde é exclusivamente pública, não podendo sob
qualquer forma ser entregue a entidades privadas ou sociais, com ou sem fins
lucrativos”. De acordo com a notícia, a estas entidades privadas e sociais, na
área da saúde, será reservado apenas um papel complementar na oferta do SNS,
não podendo concorrer nem conflituar com os prestadores públicos.
Esta é uma opção de fundo errada, afastada da realidade, de cariz ideológico,
que a meu ver apenas terá por efeito aprofundar os problemas do SNS, agravando
as dificuldades de acesso da população aos cuidados de saúde, colocando
problemas acrescidos à sustentabilidade do SNS e criando condições para o
aumento da ineficiência que hoje se verifica no SNS, com custos acrescidos para
o país.
Os problemas com os quais o SNS se confronta hoje só serão agravados com
este suposto “regresso às origens”. Em concreto, podemos sintetizar em três
grandes áreas os problemas de fundo do SNS.
1. Dificuldade de acessibilidade da população aos cuidados de saúde do SNS,
no tempo e na forma de que necessita. Para comprovar esta afirmação, basta lembrar que num
país em que é garantido constitucionalmente a todos os cidadãos o acesso
generalizado, tendencialmente gratuito (só com taxas moderadoras), aos cuidados
de saúde, existem cerca de 2,7 milhões de portugueses que têm seguros de saúde
privados.
Mesmo levando em conta que uma parte deste número de portugueses se
encontra abrangido por seguros de saúde privados disponibilizados por empresas,
resta ainda um grande número de cidadãos, cerca de 1,2 milhões, que estão
dispostos a pagar do seu bolso cuidados de saúde (apesar da garantia
constitucional de que o sector público os facultará gratuitamente)). E isto
porque não têm a acessibilidade que desejam: por ex., querem evitar longas
listas de espera para cirurgias, para a marcação de consultas, etc.
Só numa visão ideológica é que este problema seria resolvido por “mais do
mesmo”, ou seja, pelo reforço do papel (ineficiente) do Estado. E este suposto
regresso às origens representaria ainda um retrocesso enorme na prestação de
cuidados de saúde aos mais idosos e carenciados, ao eliminar o papel
fundamental das IPSS em especial nos cuidados continuados, onde o Estado não
tem vocação para os prestar directamente.
2. A sustentabilidade financeira do SNS é outro dos problemas com os quais
o SNS se confronta. Na primeira década, o crescimento do PIB não atingiu, em média, o valor de
0,5% ao ano, enquanto a despesa pública em saúde aumentou por ano, em média,
mais do dobro: cerca de 1,1%.
Nos anos decorridos da segunda década, as despesas públicas em saúde
continuaram a crescer mais do que o PIB e esta situação tenderá a agravar-se e,
a prazo, a tornar-se insustentável, atendendo ao envelhecimento da população e
ao consequente aumento das doenças crónicas (que já hoje representam cerca de
75% dos custos do SNS) e ainda ao aumento dos custos derivados da evolução
tecnológica, bem expresso pelo custo dos medicamentos inovadores e das novas
técnicas de imagiologia.
É evidente que os recursos financeiros do Estado que podem ser afectos ao
financiamento da saúde não são ilimitados e a solução não está em excluir a
participação das outras entidades sociais ou privadas no SNS. As PPP têm tido
um papel muito importante no investimento no sector da saúde (libertando os
recursos do Estado para outras necessidades) com vantagem comparativa ao nível
da eficiência de custos com o sector público e prestando um bom serviço aos utentes,
e as IPSS têm tido, como referi, um papel extremamente relevante na cobertura
do país na prestação de cuidados aos mais idosos e carenciados.
3. A ineficiência do SNS ao nível dos custos é amplamente reconhecida e é
outro dos problemas que não se resolvem com o suposto “regresso às origens”. Calcula-se que teremos hoje entre 15
a 20% de ineficiência no SNS. Isto é, tendo em conta que o Estado, em 2016,
terá despendido cerca de 11 milhares de milhões (bi) de euros no sector da
saúde, significa isto que o país poderia gastar menos entre 1,65 bi euros a 2,2
bi euros, para assegurar o mesmo nível de cuidados de saúde, ou então poderia
aumentar os cuidados de saúde, para a população, entre 15 a 20%, sem aumento de
custos, na hipótese de aquela ineficiência ser eliminada.
O combate a esta ineficiência não se faz proibindo outras entidades sociais
e privadas, que são mais eficientes do que o sector público, de actuarem no
SNS. Pelo contrário, precisamos de criar um sistema em que exista um “benchmarking”
entre o sector público e as outras iniciativas social e privada no interior do
SNS, para beneficiar a população, por forma a evidenciar e a combater as
ineficiências do sector público.
Neste contexto, há que reconhecer que as outras iniciativas social e privada,
em especial esta última, têm mecanismos de motivação dos seus recursos humanos
que o Estado não tem (incentivos, avaliação de performance efectiva, etc.) e
que podem ter um papel fundamental no aumento da eficiência.
Em minha opinião, estes problemas de fundo apontados ao SNS apenas podem
ser enfrentados com uma orientação estratégica diametralmente oposta àquela que
supostamente faria regressar o SNS “às origens” através de uma Reforma
Estrutural da Saúde que estabeleça a mudança do paradigma existente, ou seja, a
passagem do conceito de Serviço Nacional de Saúde em que o Estado assume todas
as funções (prestador, produtor, financiador) para um Sistema Nacional de Saúde
aberto, onde coexistem as iniciativas pública, privada e social e regulado pela
Entidade Reguladora da Saúde independente e autónoma.
Neste novo paradigma, o Estado continua a garantir constitucionalmente o
direito da população ao acesso tendencialmente gratuito aos cuidados de saúde,
de forma universal como hoje. Mas se de acordo com a Constituição o Estado tem
que garantir um bem público — os cuidados de saúde (e em meu entender deverá
continuar a fazê-lo) —, não tem que necessariamente produzir esse bem público
ou produzi-lo na sua totalidade. Poderá contratualizar esses cuidados de saúde
para a população, no todo ou em parte, às iniciativas social e privada,
exigindo qualidade e pagando em função de resultados para a população: por ex.,
exigência de tempos de atendimento adequados para consultas, inexistência de
listas de espera para cirurgias, etc.
Esta mudança estratégica possibilitaria o “benchmarking” das
unidades de prestação de cuidados de saúde — públicas, privadas e sociais —, o
que traria benefícios claros para o sector da saúde e para o país, o que
poderia ser potenciado pela introdução (progressiva) da liberdade de escolha
pelos utentes das unidades a que quisessem recorrer.
Esta mudança estratégica não implicaria qualquer aumento de custos ou
restrição de acesso aos cuidados de saúde do SNS por parte da população, pois
os utentes continuariam a ter acesso a qualquer prestador — público, privado ou
social — nos mesmos moldes em que hoje se processa o acesso ao SNS, ou seja,
tendencialmente gratuito, como impõe a Constituição, apenas com o pagamento das
taxas moderadoras.
É tempo, a meu ver, de ultrapassarmos no sector da saúde a discussão da
reforma da saúde centrada em termos de público e privado. A questão não é a de
discutir se a natureza do Sistema de Saúde é pública ou privada mas sim se
serve as necessidades dos portugueses e se é sustentável o esforço financeiro
do Estado. Ou seja, há que centrar a actuação a desenvolver no sector da saúde,
não nos produtores dos cuidados de saúde, não na questão da propriedade dos
meios (se são públicos, privados ou sociais), mas sim nas necessidades das
pessoas, da população: na garantia efectiva da universalidade do acesso, na
qualidade dos cuidados, nos resultados para os utentes e nas respostas
eficientes, atempadas e humanizadas.
Luís Filipe Pereira, JP 07.11.17 link
................
Com o título “Que caminho futuro para o Serviço Nacional de Saúde?” Luís
Filipe Pereira publicou no jornal Público de 7/11 um artigo de opinião onde,
diga-se com justiça, expressa com clareza o que outros de forma dissimulada vêm
dizendo nos ditos areópagos. Sem subterfúgios, o ex-ministro da Saúde defende
que o futuro do Serviço Nacional de Saúde é transformar-se num modelo
concorrencial público/privado mantendo apenas a sigla: SNS = Sistema Nacional
de Saúde. Ou seja, é um futuro sem futuro.
Todas as
opiniões são respeitáveis, o que não se pode é continuar a alimentar, a coberto
do dito pacto para a Saúde, a ambiguidade do modelo de saúde que nos orienta.
De uma vez por todas há que decidir se queremos manter um Serviço Público de
matriz Beveridgiana ou migrar para um modelo assente em seguros de saúde,
públicos e privados. Se assim for, para continuar a assegurar a universalidade
com equidade no acesso à Saúde, o Estado terá de suportar os custos de, pelo
menos, os 5,8 milhões concidadãos isentos do pagamento de taxa moderadora por
insuficiência económica. Quem defende com seriedade tal mudança tem a obrigação
de dizer quanto é que vai custar ao erário púbico e a cada um de nós, um modelo
desta natureza. Coisa que Luís Filipe Pereira não faz neste seu artigo.
A
continuada instabilidade laboral verificada no Serviço Nacional de Saúde,
contrastando com a acalmia reivindicativa em que vive o sector privado, pode
levar o Governo à tentação de delegar nos privados a resolução de problemas
laborais que hoje, manifestamente, o Ministério da Saúde não consegue resolver.
Se tal vier a acontecer, a solução não passa de uma ilusão pois o “cheque a
pagar” em todos os capítulos será bem superior ao custo de implementação das
medidas necessárias à reforma do Serviço Nacional de Saúde.
Tavisto
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3 Comments:
Revisão da Lei de Bases da Saúde. Esta iniciativa do Arnault e Semedo dinamizadora da actual maioria do governo da geringonça tem trazido muita preocupação aos interesses instalados da Saúde privada. A ponto de estes senhores sentirem necessidade de saírem a terreiro esgrimir argumentos.
O que esta malta quer é a continuação de investimentos sem riscos protegidos pelos dinheiros públicos.
Verba para prevenção da doença é insignificante
link
«É dito na notícia que foram atribuídos, em 2015, 105,5 milhões de euros do SNS, pouco mais de 1% do seu orçamento, para a prevenção da doença. No mesmo ano, o sistema de saúde da Bulgária gastava 5% do seu orçamento. Porém, se é necessário maior financiamento para a promoção da saúde e para a prevenção da doença, do que o SNS está a precisar é de ter outra organização, a qual seja alargada a outros parceiros sociais e outra regulação social. Só assim faz sentido aumentar o financiamento para aquelas medidas de política de saúde. Caso contrário já sabemos para onde vai parar o dinheiro.»
Cipriano Justo, in facebook
Eu diria que o orçamento da saúde (2018) vai continuar pasto privilegiado dos privados sa Saúde.
A questão da ineficiência do SNS é falsa!
Quem já fez uma comparação (séria) entre os recursos gastos e a produção dos Hospitais EPE?
Quem já fez uma comparação (séria) entre os recursos humanos admitidos nos hospitais do SNS após a implementação do modelo SA e EPE relativamente aos anteriormente existentes? E a produção aumentou?
Se alguém quer pagar para obter cuidados de saude...pode ter acesso a eles aqui ou na China! O que não está certo é que estejamos a pagar milhões a empresas que prestam serviços que o Estado também pode prestar!
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