sábado, janeiro 26

SIM

A nova Lei de Bases da Saúde deve limitar a participação dos privados no SNS? 
Deve até esclarecer que os privados não “participam” no Serviço Nacional de Saúde (SNS), que é “universal e geral” e portanto público, pois é ao Estado que cabe a obrigação de promover o acesso aos cuidados de saúde para todas as pessoas (Constituição art. 64º). Atalhando razões, se me falam de liberdade para o negócio privado, façam favor de criar as empresas, desde que cumpram as regras; mas esse negócio não deve depender do dinheiro do Estado. É parte do sistema de serviços mercantis de saúde, que só os pagantes podem utilizar, e não do serviço público, disponível para quem precise. Portanto, o debate ideológico não me interessa verdadeiramente e é uma farsa: os nossos liberais só querem empresas de saúde se o Estado lhes pagar. Adoram o empreendedorismo desde que seja de chapéu estendido. Não há aqui ideologia, há corrida aos cabedais. É por isso que destes liberais não ouvimos outra coisa senão pedidos de concessões de parcerias público-privadas (PPP) ou a tentativa de degradar e piratear os serviços públicos, para abrirem mercado. Como escreve candidamente a Associação da Hospitalização Privada, “[defendemos] um Estado Garantia com a intervenção do mercado”. 
O modo desta “garantia” revela o que é a saúde em Portugal. Segundo a Conta do SNS, da despesa corrente em 2019, 10.110 milhões de euros, 38%, irá para o privado. Essa é a primeira garantia que as empresas exigem que o Estado lhes pague o que não fazem e, em grande medida, deviam e podiam fazer (radiologia, quase 100 milhões, endoscopias, 40 milhões, por exemplo). Os privados exigem ainda a garantia de financiamento por outros canais. O mais conhecido são as PPP: recebem 474 milhões este ano. Na hemodiálise, a quase totalidade do tratamento em ambulatório é entregue a um grupo restrito de multinacionais, que fixam o preço. Cobram 275 milhões. Mas a garantia pode ser mais inventiva: o governo PSD-CDS entregou o Centro de Reabilitação do Norte, construído pelo Estado, a uma Misericórdia, sem se maçar com um concurso, e dias antes de cessar funções, em 2015, ofereceu a outras Misericórdias um contrato de cirurgias até 2020. Já tinha entregue a este sector alguns hospitais (Anadia, Fafe e Serpa). Aos hospitais privados são pagos mais de 500 milhões. Em suma, um em cada quatro euros do SNS vai para privados. Percebo bem porque defendem que o Estado tenha a obrigação de lhes manter as rendas. A “garantia” pode, por isso, ser agressiva. O dr. Óscar Gaspar, em nome dos hospitais privados, chegou a ameaçar cessarem as cirurgias para a ADSE se lhes cobrassem 38 milhões de faturas abusivas de 2015 e 2016. Não se passou nada, sem a ADSE os hospitais privados não vivem. Em Braga, no verão passado, registou-se um aumento do tempo de espera em otorrinolaringologia. O ministério verificou que o pessoal especializado era suficiente, mas os Mello pediam mais 50 milhões para renovar o contrato. 
Ora aí está, o privado colonizando o SNS é caro para todos. Resultado: comparando Portugal com a Alemanha, em percentagem do PIB, as nossas famílias gastam o dobro do que as alemãs. Há quem se atreva a chamar eficiência a isto. Sim, uma Lei de Bases feita para suportar este negócio perverso seria continuar a fraude de ter maus serviços públicos para garantir bons negócios. 
Francisco Louçã, expresso 26.01.19