sábado, dezembro 22

À pala do Estado

«Só há no mundo um negócio melhor, dizia Isabel Vaz, então dirigente da Espírito Santo Saúde (hoje dirigente da Fosun), e é o das armas. Mas o da saúde é apetitoso. A saúde é um maná porque a procura é indiferente ao preço, dado tratar-se de uma necessidade básica: pagaríamos o que quer que fosse pelo tratamento dos nossos familiares, se não houvesse um sistema público e gratuito. E essa é a explicação para a mobilização de tantos interesses em torno da definição de uma nova Lei de Bases da Saúde. 
A saúde privada não seria, aliás, um problema, se fosse de adesão estritamente voluntária, caso esse negócio não estivesse instalado a cavalo do Estado e tendo como premissa a degradação do sistema público. Essa é a particularidade do debate atual: os privados não estão a reclamar o seu direito ao negócio, que não tem qualquer limitação, podem construir os hospitais e clínicas que quiserem desde que cumpram os requisitos legais; estão a exigir que o Estado lhes pague esses hospitais ou lhes entregue os hospitais públicos. Por isso mesmo, precisam das parcerias público-privado para recrutarem pessoal médico e administradores e constituírem o seu poder onde ele tem que estar, instituindo uma renda paga pelo Estado. O exemplo de Braga é esclarecedor: os Mellos querem continuar a gerir o hospital desde que o Estado pague mais €50 mIlhões. O próximo passo seria criarem cursos privados para a formação de médicos. 
A forma como se movem estes interesses é de antologia. O anterior ministro nomeou uma socialista que foi assessora da Espírito Santo Saúde para dirigir a comissão que proporia a nova Lei de Bases. Personalidades do PS, PSD e CDS, junto com alguns empresários da saúde, iniciaram uma campanha por uma lei que proteja o privado (um elogio a Henrique Monteiro, um dos seus signatários, por ter anunciado a sua declaração de interesses num artigo recente). E, quando o Governo apresenta outra proposta, a pressão é tal que o Presidente toma a posição inédita de anunciar a sua preferência pelo modelo de Maria de Belém e por um acordo PS-PSD (que, aliás, não foi condição para aprovação da presente Lei de Bases e é uma exigência sem fundamento constitucional). 
A procissão ainda vai no adro, embora o Governo tenha escolhido um debate apressado, depois de se ter atrasado com jogos internos. Devia ter começado a preparar a sua proposta há dois anos, quando Arnaut e Semedo, cuja lei me parece adequada, lhe comunicaram a sua iniciativa. Agora, Costa apresenta a sua lei como uma recuperação do serviço público, apesar de, como revelado pelo Expresso, ter imposto na 25ª hora uma alteração essencial para proteger os privados. Então, para os defensores do serviço público, a escolha passa a ser entre umas boas frases que deixem o sistema intocado e degradado ou um plano exigente de recuperação do investimento e da estrutura do SNS, que será caro, apoiado numa lei que faça o que diz. Quem conhece os hospitais saberá escolher.» 
FL, Expresso 22.12.18 
Quando a conversa é sobre Saúde há sempre alguém que, à falta de melhor, decide alertar para a viragem à esquerda ou a argumentação ideológica do debate. 
Quando, recentemente, Marta Temido decidiu clarificar o texto da fórmula de delimitação de sectores público e privado da Saúde, escarrapachado na proposta de lei de bases da saúde de Maria de Belém, logo vários opinadores e jornalistas da nossa praça reagiram indignados à perigosa viragem à esquerda da lei. 
Todos sabemos a razão da nomeação de Maria de Belém para presidente da comissão encarregada do anteprojecto de Lei de Bases da Saúde. Sem surpresa, a ex-candidata à presidência da república cumpriu a redacção do extenso rol de bases, sem esquecer o negócio privado da Saúde à pala do Estado. 
Para já, mais que indignações de sacristia, o importante é o governo assumir um plano exigente de recuperação do SNS. Veremos o que Costa é capaz.
Nota: Marta Temido respondeu bem à chantagem da Mello Saúde Braga que exigiu mais 50 milhões para continuar a gerir o hospital. Como a coisa não pegou aí temos a assegurar arrecua que se pretende digna o ex ministro Luís Braga da Cruz e o arcebispo de Braga, Ricardo Rio, a pedirem uma reunião urgente a António Costa por causa do fim anunciado da PPP. 
A história curta da PPP de Braga dá para compor um "best seller" e pano para continuar.
clara gomes

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