SNS, trave mestra
Margaret Tatcher, ex-Primeiro Ministro do U.K.
Em Portugal e num Blog como o “Saúde SA”, frequentado por tantos administradores hospitalares e por tantos outros profissionais ou estudiosos da área da Saúde, falar em Serviço Nacional de Saúde (SNS) sem ser para lhe tecer loas é quase provocação.
E o SNS merece-as – as loas, não as provocações –. Como alguém já disse, o SNS deve ser considerado o projecto estrela do post 25 de Abril; “trave mestra da nossa democracia”, diz Saúde SA. Apesar de todos os constrangimentos e condições desfavoráveis, é forçoso reconhecer os progressos conseguidos nos últimos 30 anos na área da saúde. Não se devem todos ao SNS, já que houve também evolução noutras áreas que envolvem e condicionam os resultados na saúde. Mas muito maior seria o contributo do SNS sem os constrangimentos e condições desfavoráveis em que tem vivido. Alguns deles foram já proficientemente glosados ou são consensuais e por isso não voltaremos a eles. As leves considerações seguintes incidirão apenas sobre alguns mais esquecidos ou, talvez, menos consensuais, mas que nos parece deverem ser evidenciados.
Alguém respondeu ao General Ramalho Eanes, que perguntava para quando o SNS, que este não se transplantava e seria o resultado de uma sementeira de sementes variadas que tinha de ser feita. Não sei se o General entendeu a resposta ou se a pergunta era meramente de circunstância. Pouco depois foi “criado” o SNS, universal, geral e gratuito, decalcado no NHS, enformado por um conceito orgânico (conjunto de órgãos, serviços e estabelecimentos), sem quaisquer dúvidas de oportunidade ou conveniência. Deste generoso impulso, ou a partir dele, derivaram consequências negativas, a meu ver, algumas das quais ainda não ultrapassadas, abordadas nos cinco pontos seguintes:
1.ª a convicção de que o SNS implica, como condição para existir, que o Estado concentre a totalidade dos papeis na área da saúde: definir o conteúdo do SNS, possuir e gerir as unidades prestadoras, financiar as prestações, avaliar os resultados obtidos dos recursos afectados. Ora essa concentração não seria necessária. Bastaria que:
- a lei definisse o conteúdo e a normatividade do SNS – que, naturalmente, não será igual na Nigéria e no UK –;
- o pagamento das prestações fosse garantido por financiamento proveniente do Orçamento de Estado, donde o carácter evolutivo do SNS, balizado pelos recursos em cada tempo afectáveis;
- o Estado procedesse à avaliação dos resultados atingidos.
Pior ainda, deste equívoco maior, (o de o Estado assumir para si a posse da generalidade dos estabelecimentos prestadores e comprometer-se na sua gestão), derivam outros também importantes:
- o que pode chamar-se a indefinição da situação da responsabilidade, ou, se preferirmos, a inexistência de responsabilidade pelos estabelecimentos prestadores e pelas prestações de saúde: não responde o Estado porque não há gestores absentistas, não respondem os próprios estabelecimentos porque a sua responsabilidade é paralela com a sua autonomia e esta é anulada pelas interferências do Estado. Sobre este ponto parece não haver dúvidas quando verificamos que, mesmo aos Hospitais S.A. (agora E.P.E.), foram propostos Contratos Programa à 6.ª Feira para serem devolvidos, assinados, na 2.ª Feira seguinte;
- o Ministério e os seus Serviços Centrais, absorvidos com as minudências da gestão diária dos estabelecimentos prestadores, ficam indisponíveis para o desempenho que lhes compete, no qual não podem ser substituídos, e sem o qual tudo tem que andar à deriva;
- quando uma mesma instância gere e avalia, quem acreditará na avaliação? É o juiz em causa própria e não se estranhará que tudo esteja sempre bem;
- e a distribuição dos recursos pelas entidades prestadoras? Se esta competência anda junta com as de gerir e avaliar, alguém acredita que não haja derivações destinadas a retocar o cenário inconveniente? A propósito: quem saberá dizer, em termos aceitáveis, o que serão subsídios de convergência? (Não estou a pensar nos atribuídos pela U.E.!)
2ª- a funcionalização da Saúde, e designadamente do exercício médico, no sentido de aquisição da parte pior do que na função pública se comporta: objectivos vagos ou inexistentes e, consequentemente, não avaliação, menor consideração pelo Cliente e pelas suas conveniências, carga burocrática, primado da antiguidade sobre o mérito, pavor da mudança, entronização dos “direitos adquiridos”;
3ª- a ilusão de que, assim se queira, podem ser atribuídos direitos sem consideração da respectiva comportabilidade (o dinheiro sempre há-de aparecer), reduzindo a impertinências economicistas as chamadas de atenção sobre os efeitos orçamentais associados;
4.ª insuficiência constante do financiamento disponível, coabitando com desperdício significativo no qual a baixa produtividade representa a maior parte. Entre outros tópicos que poderiam ser aqui referidos, citam-se os seguintes:
- divórcio completo entre a produtividade e o sistema retributivo: nenhuma melhoria de remuneração foi indexada a qualquer ganho de produtividade;
- deficit de planeamento da rede, levando a situações de manutenção de serviços desnecessários, com procura insuficiente ou até perigosamente insuficiente, com subprodutividade, em alguns casos escandalosa, dos custos implicados;
- má gestão da capacidade da rede existente: acesso aos serviços de urgência suprindo resposta insuficiente dos cuidados primários, tratamento de doentes em hospitais de nível tecnicamente excessivo.
5.ª Não tendo sido atingido um pacto de regime na área da saúde, o que se verificou foi a inconstância das políticas e das orientações transmitidas e o estilo errático das medidas muitas vezes modificadas ou suspensas antes que pudessem considerar-se aplicadas e demonstrar a sua bondade.
Conclusão final: Neste contexto, o SNS teve um desempenho notável.
aidenós
3 Comments:
Este brilhante texto de análise crítica do SNS do Aidenós, não deixa margem para novas acjegas sem que se corra o risco de "plágio".
Os constrangimentos no funcionamento do SNS percebem-se em função do contexto político e social em que o Sistema foi criado; mas já menos se compreende que decorridos tantos anos não se tenha ainda dado verdadeiro início ao percurso exigido pelas mudanças sócio-ecnómicas ocorridas com particular incidência desde o início da década de 80 do século XX.
Hoje, já nada justifica um Estado intervencionista como aquele que criou o SNS.
A globalização e a escassez de recursos financeiros associada a sucessivas crises de crescimento económico vieram colocar especial atenção sobre as "falhas do Estado" e a necessidade de introdução de medidas de reforma do SNS assumiu especial acuidade.
A defesa da manutenção do centralismo actualmente existente, com a manutenção no domínio de intervenção directa da Administração Pública de todas as funções referidas pelo Aidenós não tem hoje justificação.
E parece-nos que a defesa do "status quo" é muitas vezes motivada pela defesa de interesses particulares e pessoais daqueles que se habituaram a ser os donos do Sistema. Fazem-no eventualmente por medo de perda de poder e de lugares de "mando", e enquanto titulares de cargos de governo não deixam muitas vezes de actuar em função da preparação do regresso aos lugares de origem que, uma eventual reforma, poderia extinguir.
Talvez por isso tenhamos assistido a persistentes e nem sempre justas críticas aos HH SA's (como o vierem demonstar os vários relatórios) e talvez por isso se verifiquem as frequente hesitações em relação às PPP e tarde o verdadeiro arranque da ERS.
E no entanto a existência de um SNS universal, geral e gratuito não é necessariamnete incompatível com a transferência para os particulares de algumas das tarefas a cargo do Estado, no domínio da Saúde.
Um estado menos intervencionista e mais regulador pode permitir, neste como noutro domínios, ganhos de eficácia e eficiência.
Poder-se-à dizer que o dinheiro até agora gasto com o SNS foi bem empregue.
O desafio será manter o modelo procurando através de ganhos de eficiência procurar o equilíbro entre os gastos e os serviços prestados pelo SNS.
A actual conjuntura económica parece no entanto arrastar a decisão política para a alteração do modelo.
Penso que o SNS já deu provas de conseguir sobreviver às maiores dificuldades. Com a nossa ajuda ...
As minhas desculpas ao aidenós por não ter inserido de início a citação da MT.
Um abraço
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