26 Dezembro
Que triste é o 26 Dez ! Depois de um almoço tardio de restos da consoada, peguei-me à leitura dos livros deste Natal.
Fiquei-me no MEC (com miles davis, por fundo - the complete live at the plugged nickel 1965).
Ele há, assim, dias tristemente felizes.
(...) Para mim, o Natal evoca um labirinto de desilusões: restaurantes fechados; táxis mais raros do que as cervejarias de Odivelas que servem Beluga quando esgotam os tremoços; ruas chuvosas e vazias com ratazanas encharcadas e deprimidas que se arrastam pelas ruas, tendo perdido o gosto à vida…
Evoca consoadas ao relento à espera que abrisse o Kremlin; presentes tão vis que ofendiam pessoalmente os contemplados, com realce para aquelas «peúgas» atoalhadas e felpudas, tingidas nas raras core que o próprio arco-iris rejeitava e para as «águas de colónia» que bastava libertar do celofane e destapar para serem imediatamente detectadas em Marte.
O Natal trazia discussões familiares que, de tão profundas, punham em causa a própria sociedade. E a sociedade, reconhecendo-se arruinada, deixava-se ficar. Para não falar nos estragos irreversíveis aos ouvidos e ao juízo e no massacre do – já de si frágil – conceito de parentesco».
Eram secas ininterruptas a ver filmes amadores acerca de baptismos e aniversários de nascituros obesos que, apesar de mal encarados e incontinentes, já se consideravam napoleõzinhos. Tudo isto à mistura com excursões a Braga e Barcelos, imortalizadas em bobinas desconexas de Super 8 invariavelmente dominadas por figurantes indesejados e inidentificáveis – geralmente gente idosa inexplicavelmente vestida de roxo e escarlate.
O meu pai detestava presentes, aniversários e outras comemorações agendadas e inescapáveis. Festa, para ele, era ir almoçar ou jantar espontaneamente com as pessoas de quem gostava. E sobretudo sozinho com a minha mãe, por quem, à medida que o tempo passava e ia crescendo a consciência dessa fatalidade, ia ficando cada vez mais perplexo e apaixonado.
Embora, para sermos gastronomicamente honestos, pesava mais o desejo de poder depois dançar com ela do que propriamente a qualidade ou o preço da garoupa ou o apuro posto no Manhattan. Mas, das outras vezes – quando a fome de dança tinha sido provisoriamente saciada e a saudade dos filhos subia na tabela das prioridades - , levavam-nos com eles; ao menos isso.
O dia de Natal não era excepção. Com grande esforço, lá se encontrava (ou convencia) um restaurante que nos abrisse as portas no dia 25. Fomos com certeza a muitos tais mas, por alguma razão, só me lembro de um único estabelecimento (muito meritório em dias normais) chamado Narciso.
Era ali no Narciso em Carcavelos que nos juntávamos, quase em cima do mar – com as portas todas a bater de tanta ventania. Havia infalivelmente um rafeiro simpatiquíssimo mas obviamente mal amado, acompanhado à distância pelo que sempre nos pareceu ser um sinistro pedófilo avulso e arrependido; ambos a molhar as patas à beira-mar numa estranha sintonia.
E nós, diga-se, não nos sentíamos mais consolados, perante este quadro tão desolador, pelos famosos filetes de pescada «à Narciso». Eram habitualmente lapidares mas, naquelas ocasiões, tornavam-se museológicos e mesmo passíveis de acção judicial (...).
Miguel Esteves Cardoso, A minha Andorinha, Assírio & Alvim
Fiquei-me no MEC (com miles davis, por fundo - the complete live at the plugged nickel 1965).
Ele há, assim, dias tristemente felizes.
(...) Para mim, o Natal evoca um labirinto de desilusões: restaurantes fechados; táxis mais raros do que as cervejarias de Odivelas que servem Beluga quando esgotam os tremoços; ruas chuvosas e vazias com ratazanas encharcadas e deprimidas que se arrastam pelas ruas, tendo perdido o gosto à vida…
Evoca consoadas ao relento à espera que abrisse o Kremlin; presentes tão vis que ofendiam pessoalmente os contemplados, com realce para aquelas «peúgas» atoalhadas e felpudas, tingidas nas raras core que o próprio arco-iris rejeitava e para as «águas de colónia» que bastava libertar do celofane e destapar para serem imediatamente detectadas em Marte.
O Natal trazia discussões familiares que, de tão profundas, punham em causa a própria sociedade. E a sociedade, reconhecendo-se arruinada, deixava-se ficar. Para não falar nos estragos irreversíveis aos ouvidos e ao juízo e no massacre do – já de si frágil – conceito de parentesco».
Eram secas ininterruptas a ver filmes amadores acerca de baptismos e aniversários de nascituros obesos que, apesar de mal encarados e incontinentes, já se consideravam napoleõzinhos. Tudo isto à mistura com excursões a Braga e Barcelos, imortalizadas em bobinas desconexas de Super 8 invariavelmente dominadas por figurantes indesejados e inidentificáveis – geralmente gente idosa inexplicavelmente vestida de roxo e escarlate.
O meu pai detestava presentes, aniversários e outras comemorações agendadas e inescapáveis. Festa, para ele, era ir almoçar ou jantar espontaneamente com as pessoas de quem gostava. E sobretudo sozinho com a minha mãe, por quem, à medida que o tempo passava e ia crescendo a consciência dessa fatalidade, ia ficando cada vez mais perplexo e apaixonado.
Embora, para sermos gastronomicamente honestos, pesava mais o desejo de poder depois dançar com ela do que propriamente a qualidade ou o preço da garoupa ou o apuro posto no Manhattan. Mas, das outras vezes – quando a fome de dança tinha sido provisoriamente saciada e a saudade dos filhos subia na tabela das prioridades - , levavam-nos com eles; ao menos isso.
O dia de Natal não era excepção. Com grande esforço, lá se encontrava (ou convencia) um restaurante que nos abrisse as portas no dia 25. Fomos com certeza a muitos tais mas, por alguma razão, só me lembro de um único estabelecimento (muito meritório em dias normais) chamado Narciso.
Era ali no Narciso em Carcavelos que nos juntávamos, quase em cima do mar – com as portas todas a bater de tanta ventania. Havia infalivelmente um rafeiro simpatiquíssimo mas obviamente mal amado, acompanhado à distância pelo que sempre nos pareceu ser um sinistro pedófilo avulso e arrependido; ambos a molhar as patas à beira-mar numa estranha sintonia.
E nós, diga-se, não nos sentíamos mais consolados, perante este quadro tão desolador, pelos famosos filetes de pescada «à Narciso». Eram habitualmente lapidares mas, naquelas ocasiões, tornavam-se museológicos e mesmo passíveis de acção judicial (...).
Miguel Esteves Cardoso, A minha Andorinha, Assírio & Alvim
3 Comments:
O Narciso, ponto de encontro de gerações de surfistas, encontra-se há algum tempo encerrado.
O melhor de Miles Davis com wayne shorter (sax tenor); herbie hancock - piano; ron carter - baixo; tony williams- bateria.
Quem não gosta de jazz é porque não ouviu ainda estas gravações.
Melhor, só ter visto o MD nestas apresentações ao vivo.
Tenho do Natal excelentes recordações.
Compreende-se que o MEC tenha ficado traumatizado. Mas dá sempre jeito estes quadros para compor a ficção.
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