quarta-feira, dezembro 13

SNS

A Fragilidade do Estado e as razões do outro lado.

Por força da Constituição e da legislação subsequente – e agora também por força da adesão à C.E., que tem como princípio fundamental a liberdade de estabelecimento e a livre circulação de pessoas e bens – os nossos cuidados de saúde são prestados por um S.N.S. (dito universal, geral e tendencialmente gratuito, ou seja, tendencialmente financiado pelo O.E.) e por um sector privado onde a medicina é exercida em regime de profissão liberal.

Que a forma de convivência entre os dois sectores não é a melhor parece não precisar de ser evidenciado. É claramente perceptível – até no âmbito do Saudesa – o sentimento de desconfiança de cada lado em relação ao lado oposto. Se preciso fosse, aqui fica o testemunho insuspeito do Professor Lobo Antunes (Ver Post “Desafios ao Profissionalismo Tradicional, de 7 de Dezembro), defendendo a clarificação nesta área:

- “A pouco e pouco, vai-se revelando também a magnitude dos conflitos de interesse na prestação de cuidados de saúde, e é para mim fundamental a sua abordagem franca, já que são evidentes as consequências económicas e éticas de tais abusos”;

- “Continua mais que indecisa a definição do papel dos prestadores privados da saúde e a regulamentação das várias formas possíveis de cooperação. Esta é uma situação incompreensível, pelo que implica de custos para o cidadão contribuinte e de desperdício de recursos humanos e técnicos”.

Valerá a pena reflectir um pouco sobre as causas deste relacionamento mal definido e sobre as razões de cada uma das partes. Sem isso, é bem provável que tudo continue na mesma, e que, como já referi (Post SNS-Sustentabilidade e Acesso, de 3 de Dezembro) mantenhamos a rejeição imediata e acrítica, diria sentimental, que fazemos de qualquer ideia ou iniciativa que pareça contrariar o SNS tal como o concebemos no nosso imaginário e que, na verdade, nunca conseguimos ter. Acrescento agora: nem nunca conseguiremos. Mas, talvez relembrar o passado – já distante, mas bastante próximo – possa ajudar a compreendermos melhor o que atingimos e o que está em jogo.

Os cuidados de saúde até ao SNS.

- Até criação do SNS o Estado assumia, relativamente à saúde, uma responsabilidade meramente complementar da atribuída aos indivíduos e seus agregados familiares, às próprias entidades prestadoras (normalmente os HH eram propriedade das Misericórdias que tinham ou obtinham alguns recursos) e às câmaras municipais que comparticipavam também no pagamento das despesas do internamento hospitalar dos não pensionistas. Os doentes eram, então, classificados como indigentes, porcionistas (vários escalões) ou pensionistas de enfermaria ou de quarto particular, quando estes existiam (os pensionistas eram muito baixa percentagem sobre o total dos internados). Grupo à parte eram os beneficiários da Previdência Social, (trabalhadores dos sectores secundário e terciário e seus familiares a cargo) para os quais havia tabelas próprias. Era este grupo de internados que propiciava a maior parte das receitas dos Hospitais. O Estado assumia a primeira responsabilidade apenas nos seus HH, e estes eram os HCL e HSM, em Lisboa, os HUC e o HSJ, respectivamente em Coimbra e no Porto. Todos HH universitários, com a excepção dos HCL. Para se fazer ideia sobre qual seria a intervenção dos HH, bastará referir que a maioria:

- utilizava enfermagem religiosa (quase toda sem habilitação profissional e, normalmente, não remunerada);
- não dispunha de quadro de médicos, que intervinham na base do voluntariado e, mesmo nos HH do Estado, tinham remuneração apenas simbólica (inferior à do pessoal administrativo);
- o pessoal técnico, quando existia, era escassíssimo e sem habilitação própria; nem existiam cursos que lha pudessem conferir. A maior parte das vezes, os exames complementares de diagnóstico eram pedidos a outros HH ou, quase sempre, a laboratórios privados;
- as despesas de alimentação de doentes e de algum do pessoal, eram, de longe, a rubrica de consumos que mais pesava no orçamento, pois representavam à volta de 30% do total nos HH do Estado (ainda mais nos restantes, de menores recursos) contra cerca de 1%, percentagem actual correspondente. Em peso percentual vinha, logo a seguir, o tratamento de roupas.

A organização (?) da sua intervenção era condizente com o acabado de referir: a cama e o internamento eram o grande (para não dizer o único) critério de afirmação e diferenciação dos HH – ainda hoje o são mais do que deveriam! –; a consulta externa (a Previdência tinha as chamadas “consultas das Caixas” para os seus beneficiários, com os mesmos médicos que também iam aos HH e que além disso tinham a sua própria clínica privada) tinha reduzida diferenciação e baixa procura (quase sempre menor que a da urgência); os serviços de urgência, superlotados (principalmente nos HH do Estado) eram, de muito longe, a porta principal de acesso ao internamento; a C.A. e o H.D. seriam então puros anacronismos.

Neste contexto, com rigor se deveria dizer que os HH eram para os pobres, recorrendo ao sector privado quem pudesse ou conseguisse maneira de pagar os seus custos (de internamento e de honorários);

Penso que não carreguei demais nas tintas no quadro precedente. Não há que escamotear: a cultura subjacente era a dessa fase da história dos nossos HH; sem negar a evolução, foi ela que directa ou indirectamente (pelo “legado” da geração precedente) moldou muitos dos nossos profissionais; foi daqui que o SNS arrancou, plantado de estaca e não semeado em terreno cuidadosamente preparado. Só poderia pegar por oposição, porque era portador não tanto de processos novos como de nova filosofia. Possivelmente, arrancou como pôde, isto é, de outra forma não arrancaria. Mas as consequências ficam lá e é com elas que temos de viver.

O caminho do SNS

Antes de mais, e a título preventivo (confesso), não sou tão optimista como sempre foi e continua a ser o Professor Paulo Mendo, que afirma:

“Nunca os serviços de Saúde em Portugal foram tão bons como hoje.
Nunca os índices sanitários de Portugal nos deixaram, justificadamente, tão orgulhosos como hoje: nunca os hospitais, os centros de saúde, a medicina privada, a sua hospitalização, os laboratórios, centros de radiologia, unidades de medicina física e recuperação, centros de hemodiálise e unidades de saúde de um modo geral estiveram tão bem equipados, tão bem administrados, tão iguais ao que de melhor há no mundo desenvolvido, como hoje.
“Nestes últimos trinta anos, a política de Saúde, centrada na criação e universalização de um Serviço Nacional de Saúde, constitui, indiscutivelmente, a jóia da coroa da nossa democracia.”
(Colectânea Futuro da Saúde em Portugal, da APAH e da APDH).

Será que a pertença a outra geração ajuda a saltar mais alto e a ver melhor a floresta, atentando menos nas árvores? De qualquer modo, penso que, mesmo sem optimismo, é inteiramente justo relevar a performance do SNS nos últimos trinta anos. Mas, aqui e agora, é das árvores que nos ocupamos.

É forçoso reconhecer que o SNS: (aspectos negativos a vermelho)

I- valorizou e qualificou os recursos humanos: criou carreiras profissionais, embora de forma excessivamente rígida no regular das condições de nelas progredir, requalificou as pessoas, garantiu a qualidade e actualização técnica dos profissionais da saúde, melhorou o nível de profissionalismo, designadamente pela exigência generalizada do tempo completo, reviu e melhorou as remunerações, mas fê-lo quase sempre a reboque de contestações e em resposta pontual às exigências de cada momento e nunca com visão sistémica, não conseguindo fazer a associação necessária entre remunerações e produtividade, antes mantendo a tradição da função pública em que remunerações e promoções se ligam principalmente à antiguidade e são vistas como conquistas irreversíveis. De avaliação e suas consequências, que me ocorra, nada houve digno de registo;

ii -foi melhorando os equipamentos e construiu novos edifícios – HH e C.S – indiscutivelmente de melhor qualidade, mas em alguns casos desnecessários como a utilização veio demonstrar, ou seja, não houve suficiente capacidade de planeamento e previsão; nem sempre a criação de novas infra-estruturas levou ao encerramento das anteriores e, principalmente, apesar dos alertas que a observação de realidades e tendências noutras latitudes deveria ter detectado, criou capacidade de internamento excessiva, com deficit de instalações para intervenção em H.D. e em C.A. e permitiu ou foi conivente na criação não justificada de serviços (ex.s: maternidades e S.U., ineficientes porque não justificados pela implantação geográfica, pela demografia e pelas tendências claramente detectáveis)
;

iii- conseguiu superar o sub financiamento crónico da Saúde que é uma das prioridades no O.E., colocando-nos, neste aspecto, na linha da frente da C.E., mas, com excesso de capacidade instalada, não superou a sub produtividade (vide listas de espera) nem a existência de desperdício inaceitável, a vários níveis e sob diversas formas. Ainda aqui, revelou baixo nível de capacidade de avaliar e controlar as entidades prestadoras, o que possibilita o aumento do desperdício, pela porta de procedimentos indesejáveis, como a multiplicação de actos desnecessários ou por “up-coding” que a inexistência de adequada capacidade de avaliação e controlo deixa facilmente passar;

iv- apesar da criação da carreira de clínica geral, com desenvolvimento paralelo ao da carreira médica hospitalar, o que, indiscutivelmente, foi um passo significativo no sentido da afirmação da importância dos CP, parece não ter havido persistência e continuidade suficiente nos esforços e iniciativas necessárias para impor e demonstrar o papel indispensável dos C.P. em qualquer sistema de saúde e, sobretudo, não é detectável qualquer avanço significativo no que respeita à coordenação necessária entre áreas (C.P/C.Diferenciados). Também as iniciativas para promoção da saúde e fomento de hábitos e comportamentos que a defendam não têm tido tanta atenção como se impunha.

v-as diferenças de remuneração possíveis de atingir pelos profissionais de saúde no SNS e no sector privado não permitem que as mesmas se posicionem em alternativa séria. Seria necessário juntar, e articular com as medidas referidas no ponto i, uma regulamentação satisfatória do regime de acumulação de funções públicas e privadas que clarificasse as águas, não permitindo situações de promiscuidade, o que o SNS não conseguiu. Falta um “estatuto do trabalhador da saúde” que contemple adequadamente as suas especificidades, os direitos e deveres dos profissionais.

Ajustar a rota

Sobre o sentido da reforma necessária do SNS, para que ele continue o melhor e corresponda à minha ambição, tal como já anteriormente referi, seria necessário intervir nos seguintes pontos:

i -criar separação de papeis no âmbito do SNS, em contraposição com a actual concentração de todos os poderes (e, portanto, de todas as responsabilidades) no M.S.;

ii -reconhecimento, e não invasão, da autonomia das entidades prestadoras, cujos órgãos, de outro modo, não podem ser julgados responsáveis pela respectiva gestão;

iii -criação, no M.S., de capacidade adequada de definição do que se integra no SNS e das condições da sua prestação, bem como da sua avaliação e controlo; (o que é indispensável, e seria, por si só, um grande avanço, mesmo que não haja qualquer alteração do SNS);

iv - eliminar a promiscuidade, no âmbito do sector público, o que se conseguiria com legislação que não permitisse a acumulação no sector público com o exercício de actividade privada concorrente.

v -promover a concorrência no âmbito do SNS, não só entre os prestadores integrados no sector público, mas também, só em condições estritamente definidas e quando se considerarem definidas, admitindo como prestadores do SNS também prestadores privados enquanto e na medida em que, mediante avaliação e controlo efectivo, mostrarem possuir os requisitos exigíveis. O mesmo objectivo, de criação de condições para uma concorrência real, - criadora de qualidade e de eficiência – seria promovido através de financiamento por doente tratado, no internamento, na C.E., no S.U., em C.A. ou em H.D., mediante tabelas com variabilidade adequada, e que excluiriam os custos ligados a responsabilidades especiais, como ensino e formação post-graduada, que seriam remuneradas em separado.

Esta intervenção, se bem conduzida e bem sucedida, poderia eliminar/reduzir drasticamente o desperdício existente e contribuir para a qualidade e eficiência do SNS e também para a sua sustentabilidade financeira.

Porém, há que reconhecer que os efeitos esperáveis não seriam imediatos e essa sustentabilidade não ficaria, só por isso, garantida. Serão necessárias medidas adicionais para, no médio/longo prazo, fazer frente ao crescimento esperado das despesas, se, e à medida que, esse crescimento se verificar.

Estando em causa um SNS, universal, geral e tendencialmente gratuito, haverá que restringir algum ou alguns destes atributos quando já não for possível aumentar o financiamento do O.E. Ninguém duvidará que será uma opção difícil de fazer, mas... será como tudo na vida: há coisas de que não gostamos e até receamos e que têm de ser feitas para conservar o essencial. Para mim, o SNS.
AIDENÓS

1 Comments:

Blogger tambemquero said...

A migração dos médicos para os HHs privados a médio-longo prazo é benéfica porque há "segundas linhas" de qualidade (o mesmo não se pode dizer do Benfica) prontas a tapar as brechas dos que saem.

Menos médicos em serviços ingurgitados só podem melhorar o desempenho.
CC ao DE.

Este homem dava um excelente guionista em Hollywood.

1:26 da tarde  

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