sábado, maio 12

Racionalização terapêutica


“Decidir, politicamente, de forma alheada da evidência científica disponível, ou não a procurando, teria consequências desastrosas: aumento da ineficiência e injustiça do sistema, piores resultados em saúde e aumento da despesa (p. ex. despesa com medicamentos não sujeitos à devida avaliação fármaco-económica).” CC na Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) - 4 de Maio de 2007.linkAs afirmações do MS são importantes enquanto sustentáculo das decisões políticas.
Não vou debruçar-me sobre o contexto geral dessas decisões. Não pretendo analisar os problemas genéricos da “boa governação” em Saúde.
Todavia, as considerações do Sr. Ministro interessam-me, enquanto médico, no campo da política do medicamento.
De facto, as despesas com medicamentos são extremamente significativas no contexto económico nacional, atingindo – se incluirmos os consumos hospitalares - cerca de 2.5 % (?)do PIB.
A poderosa dimensão do impacto económico decorrente destas cifras determina, ao nível das políticas da saúde, a necessidade de uma síntese estruturada de dados, o que, em primeiro plano, enfatiza o papel dos sistemas de intercâmbio de informação, colheita de dados e seu tratamento.
Este tipo de síntese, no campo das decisões, confronta-se, a cada passo, com o conceito de “evidência científica”.
Hoje, parecem-me persistirem diversos entendimentos sobre esta necessidade. O conceito de “evidência científica” vai sendo paulatinamente qualificado. Assim temos, como CC, utilizou: um conceito global – a evidência científica “disponível” - e as suas variantes aplicáveis: abstracta (“evidence-based policy”) e pragmática (“evidence-aware policy”). É absolutamente compreensível a preferência dos decisores por esta última variante, já que a mesma lhes permite, para além de uma visão realista, uma maior flexibilidade.
As questões colocam-se ao nível das evidências científicas “disponíveis”, isto é, das metodologias utilizadas para a sua obtenção e, consequentemente, do seu valor e qualidade.

Este é um problema recorrente para os médicos. Quando se fala nos gastos com medicamentos “salta”, de imediato, para o ar, a necessidade de elaborar protocolos terapêuticos e guidelines como suporte para a obtenção de ganhos (benefícios, vantagens, tipo de utilização, custos, …) nesta área. No domínio dos princípios estamos todos de acordo. E gostaria que, as questões que me ocorrem colocar, não sejam interpretadas como uma obstaculização a uma racionalização da prescrição e disciplina no consumo de fármacos.
Todavia, os médicos defrontam-se (e são confrontados) com outros níveis de evidência - para além da terapêutica – como, por exemplo: a “diagnostica” e a “prognóstica”. Será, portanto, mais abrangente falar de “normas de orientação clínica” e, este conceito alargado, transporta-nos para um mundo mais complexo. Neste “mundo” temos ainda mais gradientes, entre eles: a evidência científica “suficiente” e/ou “confiável”. Escrevo, “confiável” e não “fiável”, porque entendo que a fiabilidade, ou se quisermos a idoneidade, dessa evidência deve ser partilhada, por todos os intervenientes – do investigador (produtor) ao consumidor final (o doente).
Aqui, à volta do “confiável”, nasce um importante problema: a depuração da informação disponível (reports, papers, abstracts,…) e a obtenção de índices de credibilidade (eticamente) suficientes. Os benefícios esperados com novas terapêuticas, ou novas tecnologias, podem traduzir resultados que, à luz do dia, se mostram enviesados. Todos temos presente as questões geradas à volta dos novos anti-inflamatórios inibidores específicos da Cox2 (coxibes) (painkillers) e a sua segurança cardio-vascular. Na realidade, verificamos que, na introdução no mercado de novos fármacos, a prática actualmente disseminada é, a própria empresa investigadora, muitas vezes coincidente com a empresa produtora, coordenar e orientar os ensaios clínicos (em todas as suas fases). Isto é eticamente insuportável (em termos de conflito de interesses) e possibilita a moldagem (adaptação) da “evidência científica”. Subordina, ou abre espaço para isso, à entorse da evidência sobrevalorizando, em detrimento da verificação, os critérios económicos.
Finalmente, é necessário ter consciência que as “normas” neste campo, dadas as diversidades e particularidades nosológicas, têm um universo de aplicação, obviamente, limitado.

Quando se constroem, ou se transpõe, por exemplo, protocolos de utilização terapêutica é preciso constituir equipas multidisciplinares que, para além de médicos, integrem epidemiologistas, farmacêuticos, enfermeiros, gestores, técnicos de informação, representantes de associações de doentes, etc. Cada situação em estudo determina importantes e decisivas especificidades de recrutamento destas equipas. Estes grupos de trabalho defrontam-se, frequentemente, com difíceis problemas de liderança, quer internos (dinâmica, credibilidade), quer externos (aplicabilidade, aceitação). É necessário uma activa colaboração e o envolvimento das sociedades científicas médicas e farmacêuticas, dos colégios de especialidades da OM, da OF, de laboratórios de experimentação e controlo, etc. Só, passando por este arrastado processo, nascem os consensos, viáveis e aplicáveis.

Depois, a implementação. O actual estatuto das direcções clínicas hospitalares, introduziu homogeneidade na equipa administrativa, muitas vezes pela via da coerência política (ou afinidades partidárias), mas esse facto, diminuiu ou hipotecou a capacidade de intervenção juntos dos seus pares. É por esta via, ou sob esta supervisão que entram (deviam entrar), na prática clínica hospitalar, os protocolos terapêuticos. Por despacho ministerial, ou imposição discricionária, será difícil e levantará resistências.

Voltemos à construção da evidência científica.
Sabemos que a evidência científica, seja ela construída sob amplos consensos ou simplesmente transposta e validada, necessita de ser validada e, os 2 mais importantes instrumentos de análise, são:
1.) benefício esperado;
2.) custo-efectividade.

Aqui, na análise dos custos resultantes da efectiva aplicação dos protocolos, ou guidelines, a gestão económica da Saúde, têm um papel relevante, a par dos já referenciados sistemas de informação, controlo do “circuito” e gestão médico-farmacêutica.

Quando nos deparamos com tantos e diferenciados requisitos e conhecendo a realidade do País, compreende-se o porquê dos problemas em desenvolver protocolos, de que todos falamos e defendemos como um instrumento de racionalidade na decisão terapêutica.

Na realidade, a aplicação da evidência científica na Saúde em Portugal, como referiu o MS, já incidiu sobre a reestruturação de algumas grandes questões: cuidados primários, cuidados continuados, saúde materno-infantil (maternidades), urgências. Todas ainda sem recuo, ou distanciação, suficiente para uma efectiva avaliação de resultados. Estas reestruturações ou reorganizações (reformas como o governo gosta de lhes chamar) processaram-se, nem sempre fazendo uso da melhor metodologia política, enfermaram de uma “não-evidência”, mas essa análise excede o âmbito deste comentário.
No domínio terapêutico há, no meio hospitalar, avanços significativos no domínio do circuito do medicamento (entretanto alienados), mas falta ainda percorrer um longo caminho.
Futuros passos na área da política do medicamento e, no que diz respeito, aos indispensáveis protocolos terapêuticos, têm que ser dados à margem de análises restritivas do consumo e do custo dos fármacos, salvaguardando a universalidade e a equidade. Em primeiro lugar, subordinados à análise do benefício dos doentes e, em concomitância, com a avaliação fármaco-económica, complementar. Com rigor e simplicidade, em termos de gestão médica. Esperemos que o País não chegue a conhecer “listas de espera terapêuticas”.

A interacção, na Saúde, entre o mundo técnico-científico e o político-social é permanente, por vezes, difícil. O relacionamento com destes dois mundos com a gestão económica dos recursos da Saúde, pode – se não utilizarmos metodologias correctas - ser conflituoso e, deste modo, prejudicar a centralidade do sistema – o doente.
O grande objectivo da racionalização na área terapêutica não deverá ser minimizar custos mas permitir sustentadas e progressivas mais valias aos doentes.
Enquanto, neste País, existir um SNS no âmago de um Estado Social.


É-Pá

Etiquetas:

3 Comments:

Blogger O cavalinho da chuva said...

O E-pá já vai no medicamento. Grande velocidade mas cuidado com as curvas.

Só para acepipe:

1. O país já conheceu listas de espera terapêuticas - vulgo, já que gosta de utilizar as palavras correctas - racionamento, nomeadamente para os agentes biológicos no tratamento dos diversos reumatismos.

2. Fique a saber que as Associações de Doentes são habitualmente financiadas pela Indústria Farmacêutica e que alguns países com consciência disso estão disponíveis para as financiar.

3. A maioria dos indivíduos com saberes suficientes para "guideliners" estão envolvidos com a Indústria Farmacêutica.

4. A pergunta interest-based ou evidence-based é uma questão em cima da mesa de todos os especialistas do medicamento.

5. Sabe o que são ghost authors ?

Abraço.

9:08 da manhã  
Blogger saudepe said...

Um comentário extenso, com algumas boas ideias mas um tanto confuso.
Q
uando se trata da racionalidade terapêutica, relativamente à utilização do medicamento, a evidência de suporte que se deve buscar são os ganhos terapêuticos de uma nova determinada substância relativamente ao processo terapêutico medicamentoso até aí utilizado.

Para medir estes ganhos há os ensaios clínicos.

Comprovada a vantagem terapêutica de uma determinada terapêutica através dos referidos ensaios, há que perguntar: quanto custa?

O apuramento dos custos desta vantagem é essencial para actuar com racionalidade no conjunto do sistema. É que os recursos disponíveis são escassos e não chegam para comprar todas e quaisquer vantagens. Há que dirigir os recursos, através de critérios rigorosos de forma a seleccionar as terapêuticas mais vantajosas que se traduzam em melhores ganhos em saúde.
É que no mercado do medicamento muito agressivo, há muitos produtos em que não vale a pena investir.
Aqui a evidência científica é por vezes muito difícil de apurar devido não só à complexidade das materias, como também à poderosa influência do maketing, onde a indústria investe anualmente milhões de dólares.

2:51 da tarde  
Blogger cotovia said...

Um caso sério este É-Pá.
A bater-se de igual para igual com o grupo dos farmacêuticos e dos AH.
É salutar ver a matéria do medicamento tratada por um "não especialista".
É igualmente salutar ver a forma como o É-Pá aborda as diferentes temas com uma sensibilidade e irreverência originais.

3:00 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home