A Crise
Parece que, finalmente, todos tomamos consciência da crise económica que atingiu a grande maioria dos países da OCDE, a Europa e, muito em particular Portugal.
A Ministra da Saúde anunciou recentemente um pacote de medidas para o sector, cujo denominador comum é o corte de despesas em áreas em que se supõe haver desperdícios: horas extraordinárias, fornecimento de serviços externos não prioritários e/ou escandalosamente caros, contratações de mais pessoal e gastos com medicamentos.
Tratam-se, naturalmente, de medidas conjunturais, de ataque a uma situação económica crítica e à beira do colapso, mas que têm, no essencial, sentido. Nas áreas referidas sabe-se, há muito tempo, do que deve ser feito para racionalizar a despesa e diminuir o seu volume. As medidasm agora tomadas pecam apenas por ser tardias, pontuais e com efeito sistémico comprometido. Mas os Sindicatos e a maioria das organizações profissionais mais representativas, avisaram logo que não estarão disponíveis para avalizar cortes na despesa que comprometam a prestação de cuidados e a sua qualidade.
Como se não houvesse margem confortável para cortar, introduzindo mais eficiência na utilização de recursos e, nalguns casos, em vez de diminuir, promover a qualidade dos cuidados (note-se a importância do uso racional de medicamentos ou da adequada prescrição de meios complementares de diagnóstico, para a segurança e efectividade do processo terapêutico).
O tempo político não é propício à transformação desta ameaça numa oportunidade. A de se promover uma reforma estrutural, que reunisse o consenso alargado de forças políticas e associações profissionais e de doentes, e que assumisse o risco de cortar com interesses instalados e com lógicas de poder até agora intocáveis.
Para isso é necessária força política, clarividência e visão estratégica, que respaldem e liderem, consequentemente, as mudanças que se impõem no nosso SNS. Não para o desmantelar, antes pelo contrário, para o tornarmos mais eficiente e mais próximo dos cidadãos.
Uma das maiores áreas de desperdício prende-se com um problema estrutural (endémico) do nosso SNS: a postura excessivamente institucional dos serviços, as dificuldades de contacto e de acesso e a rigidez e distanciamento da resposta. Precisamos de um SNS mais próximo dos cidadãos, mais disponível para responder num horário mais alargado ao longo do dia, com capacidade de se envolver na comunidade e deslocar-se á casa dos doentes. Pagamos um elevado preço por estas lacunas, com serviços de urgência a abarrotar, baixa qualidade de serviço e elevadíssimos custos com pessoal, muitos deles perfeitamente desperdiçados.
Um Sistema de Saúde cuja principal porta de acesso é a Urgência, seja no Centro de Saúde, seja no Hospital, é necessariamente mais caro e apresenta menos qualidade, face a modelos que promovem o acompanhamento sistemático do cidadão, dispõem de profissionais bem disseminados na comunidade, directamente contactáveis e que assumem pessoalmente as suas responsabilidades. Nestes modelos, a prevenção primária e secundária torna-se eficaz, a prestação de cuidados é muito mais programável e, consequentemente, mais económica, mais personalizada e mais satisfatória para doentes e profissionais.
Invocam-se razões culturais, sociais e a “útil” falta de recursos, para se ir deixando ficar as coisas mais ou menos na mesma, ao longo de décadas, num sinal revelador da impotência para atacar este problema, ao fim e ao cabo, a raiz de todas as outras ineficiências e desperdícios do sistema.
Mas voltemos á realidade das medidas recentemente anunciadas. Há quem as acuse de demagógicas, meramente simbólicas e sem um efectivo impacto na despesa. Nalguns casos, temos que concordar, assim parece. Os cortes no “toner”,no papel higiénico e na água engarrafada, não merecem, realmente, grandes comentários. Já a eventual redução de vencimentos dos membros dos C.A. obriga-nos a alguma reflexão.
Poderiam ter um impacto significativo na redução da despesa se representassem um volume financeiro importante. Não é verdade.
Poderiam ser um gesto de solidariedade, com forte carga simbólica em época de crise, se as remunerações auferidas pelos membros do C.A fossem elevadas e deslocadas no contexto das outras remunerações. Nem uma coisa nem outra são verdadeiras. Admiro até os profissionais, competentes e prestigiados, que aceitam desempenhar cargos tão complexos e com tanta responsabilidade, ganhando entre 2.500 e 4.000 euros por mês, valores muito abaixo dos vencimentos dos que ocupam as posições top no ranking remuneratório dos hospitais. E sem poder acumular outras tarefas…
Diga-se, a propósito, que o estatuto remuneratório dos profissionais de saúde, principalmente da classe médica não fomenta a produtividade dos serviços, e é injusto. Remunera bem os que acumulam muitas horas de trabalho (principalmente em urgência) e prejudica, de facto, quem mais e melhor trabalha e/ou quem tem mais responsabilidade. Pela simples razão de que não consegue descriminar o volume e a qualidade de trabalho de cada médico, apenas contabilizando horários.
Esta situação implica uma profunda revisão das carreiras médicas e dos respectivos modelos remuneratórios, promovendo a competência e o mérito dos bons desempenhos e desincentivando o trabalho á peça e o valor das horas de urgência. Pois é, coisas muito difíceis de alterar, face ao peso das urgências, das prevenções e da acomodação de muitos profissionais a estas formas de remuneração. Será que o dramatismo da actual crise abrirá portas para soluções verdadeiramente inovadoras? Apesar da necessidade urgente, a esperança é pequena.
A Ministra da Saúde anunciou recentemente um pacote de medidas para o sector, cujo denominador comum é o corte de despesas em áreas em que se supõe haver desperdícios: horas extraordinárias, fornecimento de serviços externos não prioritários e/ou escandalosamente caros, contratações de mais pessoal e gastos com medicamentos.
Tratam-se, naturalmente, de medidas conjunturais, de ataque a uma situação económica crítica e à beira do colapso, mas que têm, no essencial, sentido. Nas áreas referidas sabe-se, há muito tempo, do que deve ser feito para racionalizar a despesa e diminuir o seu volume. As medidasm agora tomadas pecam apenas por ser tardias, pontuais e com efeito sistémico comprometido. Mas os Sindicatos e a maioria das organizações profissionais mais representativas, avisaram logo que não estarão disponíveis para avalizar cortes na despesa que comprometam a prestação de cuidados e a sua qualidade.
Como se não houvesse margem confortável para cortar, introduzindo mais eficiência na utilização de recursos e, nalguns casos, em vez de diminuir, promover a qualidade dos cuidados (note-se a importância do uso racional de medicamentos ou da adequada prescrição de meios complementares de diagnóstico, para a segurança e efectividade do processo terapêutico).
O tempo político não é propício à transformação desta ameaça numa oportunidade. A de se promover uma reforma estrutural, que reunisse o consenso alargado de forças políticas e associações profissionais e de doentes, e que assumisse o risco de cortar com interesses instalados e com lógicas de poder até agora intocáveis.
Para isso é necessária força política, clarividência e visão estratégica, que respaldem e liderem, consequentemente, as mudanças que se impõem no nosso SNS. Não para o desmantelar, antes pelo contrário, para o tornarmos mais eficiente e mais próximo dos cidadãos.
Uma das maiores áreas de desperdício prende-se com um problema estrutural (endémico) do nosso SNS: a postura excessivamente institucional dos serviços, as dificuldades de contacto e de acesso e a rigidez e distanciamento da resposta. Precisamos de um SNS mais próximo dos cidadãos, mais disponível para responder num horário mais alargado ao longo do dia, com capacidade de se envolver na comunidade e deslocar-se á casa dos doentes. Pagamos um elevado preço por estas lacunas, com serviços de urgência a abarrotar, baixa qualidade de serviço e elevadíssimos custos com pessoal, muitos deles perfeitamente desperdiçados.
Um Sistema de Saúde cuja principal porta de acesso é a Urgência, seja no Centro de Saúde, seja no Hospital, é necessariamente mais caro e apresenta menos qualidade, face a modelos que promovem o acompanhamento sistemático do cidadão, dispõem de profissionais bem disseminados na comunidade, directamente contactáveis e que assumem pessoalmente as suas responsabilidades. Nestes modelos, a prevenção primária e secundária torna-se eficaz, a prestação de cuidados é muito mais programável e, consequentemente, mais económica, mais personalizada e mais satisfatória para doentes e profissionais.
Invocam-se razões culturais, sociais e a “útil” falta de recursos, para se ir deixando ficar as coisas mais ou menos na mesma, ao longo de décadas, num sinal revelador da impotência para atacar este problema, ao fim e ao cabo, a raiz de todas as outras ineficiências e desperdícios do sistema.
Mas voltemos á realidade das medidas recentemente anunciadas. Há quem as acuse de demagógicas, meramente simbólicas e sem um efectivo impacto na despesa. Nalguns casos, temos que concordar, assim parece. Os cortes no “toner”,no papel higiénico e na água engarrafada, não merecem, realmente, grandes comentários. Já a eventual redução de vencimentos dos membros dos C.A. obriga-nos a alguma reflexão.
Poderiam ter um impacto significativo na redução da despesa se representassem um volume financeiro importante. Não é verdade.
Poderiam ser um gesto de solidariedade, com forte carga simbólica em época de crise, se as remunerações auferidas pelos membros do C.A fossem elevadas e deslocadas no contexto das outras remunerações. Nem uma coisa nem outra são verdadeiras. Admiro até os profissionais, competentes e prestigiados, que aceitam desempenhar cargos tão complexos e com tanta responsabilidade, ganhando entre 2.500 e 4.000 euros por mês, valores muito abaixo dos vencimentos dos que ocupam as posições top no ranking remuneratório dos hospitais. E sem poder acumular outras tarefas…
Diga-se, a propósito, que o estatuto remuneratório dos profissionais de saúde, principalmente da classe médica não fomenta a produtividade dos serviços, e é injusto. Remunera bem os que acumulam muitas horas de trabalho (principalmente em urgência) e prejudica, de facto, quem mais e melhor trabalha e/ou quem tem mais responsabilidade. Pela simples razão de que não consegue descriminar o volume e a qualidade de trabalho de cada médico, apenas contabilizando horários.
Esta situação implica uma profunda revisão das carreiras médicas e dos respectivos modelos remuneratórios, promovendo a competência e o mérito dos bons desempenhos e desincentivando o trabalho á peça e o valor das horas de urgência. Pois é, coisas muito difíceis de alterar, face ao peso das urgências, das prevenções e da acomodação de muitos profissionais a estas formas de remuneração. Será que o dramatismo da actual crise abrirá portas para soluções verdadeiramente inovadoras? Apesar da necessidade urgente, a esperança é pequena.
Manuel Delgado, GH n.º 46
Etiquetas: Crise e politica de saúde
1 Comments:
GUARDANDO AS MARGENS,
VELANDO OS LÍRIOS DO JARDIM...
...Como se não houvesse margem confortável para cortar, introduzindo mais eficiência na utilização de recursos e, nalguns casos, em vez de diminuir, promover a qualidade dos cuidados...
Manuel Delgado, GH n.º 46
Os cortes na[s] despesa[s] do SNS [e não só nos HH's], sempre com a retumbante advertência de que a qualidade não será afectada, terão no sentir dos profissionais de saúde que estão no terreno - gestores incluídos - margens cada vez mais apertadas. Independentemente de meidas anedóticas,todos julgamos que a famosa margem de desperdício [calculada em 2005 como de 25%]já sofreu variações. Ou, então, a gestão do SNS foi durante estes 5 anos um entretinimento lúdico, a investigar.
Repito: As margens se quisermos salvaguardar a qualidade da pestação de serviços..., são muito estreitas.
Toda esta lenga-lenga faz-me lembrar a canção:
...Enquanto a cidade inteira vai feliz na sua faina
E o sol boceja na ladeira ao som do martelo e da plaina
Saúdo a bruma e o orvalho e a luz do dia madrugado
Guardo as cartas no baralho meu sono é enfim chegado
Vou guardando as margens
Velando os lírios do jardim"
Carlos Tê
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