sábado, janeiro 8

Não é de fiar (2)

Rumo a um Serviço Assistencialista de Saúde ?

Diz Cavaco Silva
no seu manifesto de candidatura:
«O debate em torno do Serviço Nacional de Saúde não deve ser marcado por preconceitos ideológicos, de um lado e de outro. Neste domínio, mais do que questionar a existência ou não do Serviço Nacional de Saúde – algo que, verdadeiramente, não importa sequer debater -, o que interessa é discutir que formas existem para garantir a sua sustentabilidade, garantindo o acesso de todos, independentemente da sua condição económica, aos cuidados de saúde.»
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Atente-se nos bolds. Em primeiro lugar, a ideia de que o debate sobre o SNS não deve ser marcado por “preconceitos ideológicos”. Ao considerar a “ideologia” – a política, em suma – como preconceituosa, Cavaco está a revelar o modo como ele próprio a entende: enquanto tarefa de “gestão” praticada por um estrito e opaco conjunto de tecnocratas. A expressão que se segue - “de um lado e de outro” - ajuda a salientar o carácter aparentemente neutral da actividade. Como se, no fundo, o que estivesse em causa fosse traçar uma bissectriz entre duas posições extremadas e encontrar a recomendável solução intermédia. Um meio-termo a-ideológico que neste caso concreto não passa de fumaça retórica. A defesa da integridade do SNS é uma posição extremada? O outro pólo de radicalismo é o aniquilamento completo do sistema? O meio-termo exige o financiamento da oferta privada de saúde de modo a que se possa criar um sistema paralelo robusto e competitivo?

No fundo, Cavaco Silva sabe que a saúde está na mira do apetite privado e o apetite privado sabe que tem em Cavaco o seu representante. Só que há trabalho a fazer. Num país onde ainda persistem fortes bolsas de pobreza e insegurança, o Serviço Nacional de Saúde constitui uma das mais fortes traves de confiança das populações. Portanto, convém frisar bem que a sua existência “não importa sequer debater”. O que importa debater é a sua “sustentabilidade”. Só que Cavaco não pretende falar da suborçamentação ou do despesismo no quadro de um serviço de saúde público e universal. Pretende, isso sim, terminar com uma pirueta arriscada, sugerindo que se calibre a busca de formas de sustentabilidade com a garantia de acesso à saúde de todos “independentemente da sua condição económica". Estará Cavaco a elogiar um sistema que se propõe tratar todos os cidadãos por igual, independentemente do seu rendimento? Ou, pelo contrário, considera que o Estado deve acarinhar o florescimento de uma alargada rede privada de saúde, que necessariamente remeterá o tratamento dos pobres para um serviço público de saúde mínimo e descapitalizado?

Quer-me parecer que a segunda hipótese é a que mais se aproxima do espírito do parágrafo. No fundo, o trecho está bem mais próximo do projecto de revisão constitucional do PSD do que da Constituição que Cavaco pretende jurar e fazer cumprir.

Miguel Cardina, arrastão

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